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2 A LEI MARIA DA PENHA PERFORMA MASCULINIDADES? CONSIDERAÇÕES SOBRE AVANÇOS E ENTRAVES NA SUA IMPLEMENTAÇÃO

2.1. O lugar dos homens na Lei Maria da Penha

Saffioti (2004) argumenta que não é possível uma mudança radical de uma relação violenta quando se trabalha exclusivamente com a vítima.

Sofrendo esta [a vítima] algumas mudanças, enquanto a outra parte [o agressor] permanece o que sempre foi [...] a relação pode, inclusive, tornar-se ainda mais violenta. Todos percebem que a vítima precisa de ajuda, mas poucos vêem esta necessidade no agressor. As duas partes precisam de auxílio para promover uma verdadeira transformação da

relação violenta (p.68).

No Programa de Prevenção, Assistência e Combate à Violência Contra a Mulher, publicado pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, Medrado e Lyra (2003) enfatizam que:

Para entender a problemática da violência de homens contra mulheres, a partir da perspectiva de gênero, é preciso incluir análises sobre os processos de socialização e sociabilidade masculinas e os significados de ser homem em nossas sociedades (p. 22).

O Estado da arte, produzido pela UFSC indica que o estudo sobre homens autores de violência é uma tendência emergente na produção científica, sobretudo, na área da saúde (GROSSI; MINELA; LOSSO, 2006).

Nesse sentido, o que o texto da Lei Maria da Penha traz sobre os homens? Sendo uma medida de proteção à mulher, o texto da referida Lei tende a priorizar os aspectos relativos à punição do homem, especialmente na Seção II (Das Medidas Protetivas de Urgência que Obrigam o Agressor) e Seção III (Das Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida).

Méllo; Medrado e Bernardes (2009) trouxeram algumas contribuições sobre as ações previstas para o agressor, as quais se destacam especialmente nos artigos 20, 35 e 45:

 O artigo 20 determina que “Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial”;

 Já no artigo 35 (das Disposições Finais), a Lei determina que a União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar e promover, no limite das respectivas competências, entre outras coisas: “V - centros de educação e de reabilitação para os agressores”.

 O artigo 45, por sua vez, modifica a Lei de Execuções Penais, inserindo um parágrafo único ao art. 152 desta última, indicando que “nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação”.

Além disso, em uma análise textual, nota-se claramente que a lei não apresenta em nenhum momento a palavra homem, embora a palavra mulher (ou mulheres) apareça 60 vezes. Também é possível notar que para se referir ao homem e à mulher envolvidos em episódios violentos, empregam-se os termos agressor e ofendida: 19

ocorrências e 34 ocorrências, respectivamente. Destacamos tais nomeações, pois acreditamos que nomear é um ato que produz efeitos.

Também chama a atenção o uso do termo agressor para nomear o homem que cometeu violência contra sua companheira, especialmente a partir das considerações de Perucchi (2008), que afirma, baseada nas reflexões de Foucault sobre discurso e relações de poder, que a legislação produz subjetividades.

É nesse emaranhado de relações que os conceitos de gênero e violência se conectam e interconectam inúmeras vezes. Pensar dessa forma sugere que a identidade dos envolvidos em uma relação violenta é criada em meio a um constante movimento de espelhamentos e contrastes.

Para pensar os paradoxos que envolvem as relações violentas, em uma abordagem que não abandona as dinâmicas concretas e experiências de que elas são revestidas, adotamos a perspectiva que acredita na coexistência de vários núcleos de significado que se sobrepõem, se misturam, e estão permanentemente em conflito [...] Importa salientar que ao tratar de posições de gênero é preciso considerar que, certamente, existem padrões legitimados socialmente importantes na definição de identidades e condutas. Contudo, é preciso ter em mente que eles devem ser vistos como construções, imagens, referências compostas e adotadas de modo bastante complexo, pouco linear e nada fixo. Pensar em termos relacionais implica também não reificar ou estabelecer como determinação as assimetrias baseadas nos marcadores de gênero (DEBERT; GREGORI, 2008, p.178).

2.1.1. A Lei performa práticas?

A Lei Maria da Penha e seus instrumentos de aplicação podem ser entendidos como uma tecnologia de governo de si e dos outros (FOUCAULT, 1994). Assim, opera como um agente na produção de sentidos e na constituição das pessoas. Podemos afirmar ser um marco histórico a promulgação de uma Lei que determina que um conflito entre um casal, que antes era tido como um problema de marido e mulher, passe a ser nomeado violência conjugal. Além de que essa lei prevê as penalidades do código penal para o homem que a cometer. Mais uma vez enfatiza-se a relevância das contribuições trazidas pela referida Lei. Contudo, a judicialização das relações sociais (conjugais) não dá conta desse problema.

Em texto que debate a criação e a aplicação da Lei Maria da Penha, Batista (2008) problematiza que, entre as duas correntes criminológicas do Brasil, o feminismo não desfrutou da criminologia crítica e teve que se entender com a positivista. Na

descrição das características político-criminais da Lei 11.340, esse autor recorda que os sistemas penais do capitalismo pós-industrial no Brasil estão divididos em dois grandes campos: o do menor potencial ofensivo e o dos crimes hediondos. O crime da violência conjugal está nesse segundo campo, ao qual se aplicam as penas privativas de liberdade, sofrimento penal físico (encarceramento e privações correlatas).

A Lei Maria da Penha foi inspirada diretamente na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, e sua principal característica político-criminal é expressar uma demanda alarmante de sofrimento penal físico. Ao vedar a aplicação das penas de pagamento de cestas básicas, faz uma recusa ao sofrimento penal moral ou patrimonial para os homens autores de violência contra a mulher. Assim, uma das possibilidades para esses homens passa a ser a prisão.

Um dos avanços da Lei foi a criação de medidas protetivas de urgência, as quais estabelecem providências que podem ser tomadas para assegurar o encaminhamento de solução de conflitos domésticos e patrimoniais. Porém, existe perigo no abuso dessas medidas, principalmente no tocante à suspensão de visitas aos filhos. Essa medida pode ser usada como forma de punir o homem (denunciado) de não poder ver os filhos, a despeito da agressão contra a mãe (denunciante), nos casos em que a relação entre o pai e os filhos não estiver afetada. Há casos em que, mesmo que não haja motivo para privar o homem de ver seus filhos, essa medida é instaurada.

“A formação do sujeito ocorre no interior de um campo de poder” (BUTLER, 2008, p.23). É sobre esse campo do saber jurídico institucionalizado que nos debruçamos. O poder circula nesse espaço de produção de verdades. Antes de prestar depoimento, os envolvidos no processo são chamados a um saber-poder no qual a verdade é chamada à tona a todo instante: “Você promete dizer a verdade em tudo o que for conversado aqui? Você sabe que faltar com a verdade perante a justiça é crime grave?”

Méllo, Medrado e Bernardes (2009) apresentam uma discussão sobre a Lei Maria da Penha, entendendo-a como tecnologia de governo ou de gestão da vida que resulta em modos de ser. O sistema jurídico, suas materialidades e sociabilidades inscrevem e estão inseridos em jogos de poder. As tecnologias são entendidas, de acordo com Rose (2007), como conhecimentos, ferramentas, pessoas, cultura, espaços físicos, etc., que agem como dispositivos que atuam na rede de práticas discursivas e não discursivas.

O governo da vida exercido pela lei estabelece novos regimes de verdade sobre a violência conjugal, talvez a forma de violência mais afetada pelo processo de legitimação pública dessa lei, visto que regula relações consideradas de âmbito privado.

Retomando nosso foco de pesquisa, cujo objetivo foi investigar como são performadas masculinidades e negociados posicionamentos nas audiências que ocorrem no juizado de violência doméstica e familiar contra a mulher, destacamos que para entender como estão organizadas as relações sociais e como se vivem as relações de produção é necessária a análise da linguagem. Para isso apresentamos os principais conceitos e fundamentos que orientaram nosso estudo.