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Esse é o momento no qual todo o palco da feira muda de cenário e, portanto, de atores. O excedente que ainda permanece em bom estado é devidamente guardado em caixotes e sacos para serem vendidos no próximo ponto de feira. O espaço é tomado por pessoas de menor – ou quase nenhum – poder aquisitivo que comprarão por menores preços os produtos por sua vez, de qualidade reduzida devido à intensa e frenética manipulação de muitas mãos.

Porém o cliente atento selecionará o que de melhor poderá ser extraído da banca em vias de ser fechada. Vendo com outros olhos, ali está o que resistiu a numerosos apertos, apalpações, cheiro, provas, experimentações. É na hora do grito em que a negociação perde propositalmente seu caráter de irredutibilidade e dá lugar à conversa mais íntima e solidária. Reforçam-se os laços de cooperação e todos desfazem suas bancas fazendo um balanço de tudo o que se construiu, lucrou, perdeu e o que pode melhorar. Para mim, entre percalços, desencontros e encontros, foi uma jornada de lucro (como que num esforço dar brandura à expressão mercantilista).

Visualizar a feira-livre como um espaço no qual se faz concreta uma ecologia dos conhecimentos e da aprendizagem e perpetuação de nuances de uma cultura e de um saber em construção ao longo de muitas gerações, é substituir a noção mercadológica e depositária de conhecimentos provados e autorizados, pela idéia de comunicação de saberes que se dão por meio da experimentação do erro, do acerto e, sobretudo, da incerteza.

Seguindo uma tendência de monopolização e privatização dos espaços comerciais, as grandes redes de supermercados criaram numa tentativa de substituição às feiras-livres com as sessões de frutas e verduras com clima e iluminação controlados, espaços esterilizados e fechados. Essas “feiras-privadas” têm caráter puramente capitalista que oculta os sujeitos do processo de comercialização priorizando a comercialização de produtos produzidos em massa, in

vitro e com preços pré-estabelecidos por máquinas de marcação e pesagem digital

que distancia-se do tumulto corpo-a-corpo das negociações entre comprador- vendedor.

Na feira o saber se espacializa numa estratégia bricoleur que agrega sentidos novos e necessários a fragmentos com sentidos isolados; Constitui-se em foco de resistência que não pode ser comparado à idéia de saudosismo e sim de uma pulsão de sobrevivência e permanência operada por meio de uma criatividade necessária para não sucumbir à superficialidade e efemeridade da atualidade.

Percebi que não se trabalha na feira apenas por um motivo utilitário ou para sanar os imediatismos mais pungentes. Não se pode negar que tais fatores levam numerosos grupos de pessoas a tentar formas outras de subsistência, mas, o contato com aqueles meninos e suas famílias me fez perceber que na feira, trabalha-se também pelo prazer de trabalhar; prazer de estar ali, sentir-se parte do todo, sobretudo, pela possibilidade de circunscrever sua marca. Trabalha-se para sanar necessidades, em alguns casos de maneira forçada, mas também trabalha-se com uma alegria movida pela vontade de entreajudar-se. Como se fosse uma forma de reafirmar o que costuma-se confabular entre os ditos populares, por meio dos discursos dos meninos e meninas da feira, é nítida a percepção de uma busca por dignificar-se na relação digna e formação de parceria com o outro.

Os feirantes são exímios comerciantes errantes usam o grito e os peculiares gestuais para fazer-se vitrine, recepção, colaboração, mas também, por meio de um “espírito de independência criativa” – aquela “capaz de remodelar a visão do mundo ao qual pertence” – faz-se educador, aquele que improvisa soluções pontuais; que trata informações preliminares e as transforma em conhecimento pertinente, aquele dotado de sentido em relação ao meio.

Uma escola aberta aos apelos, realidades e subjetividades da rua e da comunidade em que está inserida talvez conseguisse diminuir a evasão de crianças e adolescentes que acostumaram-se a construir saberes in vivo. A escola não precisa necessariamente ter caráter itinerante assim como a feira-livre, tampouco precisa diferenciar os níveis de ensino, pois isso abriria ou alargaria o fosso criado socialmente entre alunos em contexto de rua e os que não vivenciaram tal situação.

Ensinar e aprender na feira – e talvez essa devesse ser não a metáfora, mas a metonímia de todo aprendizado – é lapidação minuciosa como os esforços empreendidos no trabalho de armação de barraca. Move-se pela esperança, mas

não uma esperança mortificada pela sensação que as três primeiras sílabas da palavra podem vir a suscitar – o que lembra o ato de esperar que as coisas aconteçam como que por obra divina e mágica. Ser movido por esperança é estar sempre apto a armar a barraca em um lugar diferente a cada dia; é distribuir e organizar minuciosamente os produtos sobre a banca com a certeza incerta de que aquele dia será um grande dia de vendas. É ser itinerante, mas não sentido efêmero do tipo que não finca raízes em lugar nenhum. É mais uma lógica de um espírito de itinerância que abre mão de zonas de conforto, mas deixa sua marca, semeia e colhe o que há de melhor de cada lugar por onde passa e principalmente, sem descartar a possibilidade de que tudo pode voltar ao início, mas será sempre um novo começo. É passear com o carro de mão empunhado com destreza por invisíveis caminhos da feira e negar diuturnamente a tentação do desalento.

As crianças e adolescentes da feira aprendem numa espécie de estética do movimento seja ele corporal que se traduz na manipulação direta dos produtos, alimentos, pesagem, medidas, carregamento de mercadoria... e cognitivo que envolve mente cálculos, números, letras, cifras e espírito: responsabilidade pela banca e pelo manuseio e conservação dos produtos, sensibilidade para prestar atenção e dialogar, ludibriar, atrair e seduzir o cliente e as leituras outras dos sinais que orientam para a negociação com o possível comprador adulto e a partir daí fazer movimentação de preços e de escolha de produtos. Esses sinais – invisíveis para quem não foi iniciado nessas atividades – também dão o tom da chamada “hora do grito” que marca os momentos finais daquele dia de feira.

O sol vai se despedindo. Seus últimos raios visíveis no horizonte já não lembram aquela patriarcal força que até poucas horas atrás se mostrava com tamanha “clareza”... Desmontam-se as bancas... Amanhã tem mais... Mas nunca será um reinício para quem tem pulsante no peito aquele espírito de itinerância.

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