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Dentro da cidade, o único estabelecimento hospitalar público era o Hospital Real de Todos os Santos que, nas vésperas do Sismo de 1755, ocupava o espaço actualmente compreendido entre um dos quarteirões orientais do Rossio e a antiga Praça da Figueira (Praça D. João I), limitado a norte e a noroeste pelos edifícios e cerca do Convento de S. Domingos e a sul pela Rua da Bitesga. A horta do Hospital, localizada atrás do edifício hospitalar, confinava no seu extremo oriental com o palácio dos Condes de Monsanto (depois Marqueses de Cascais) e a Capela de S. Mateus.

Figura 9. O Rossio antes do Terramoto de 1755, segundo a “visão” de Zuzarte (1787): no lado oriental dessa praça, da esquerda para a direita, as fachadas da Ermida de Nª Srª da Escada e da Igreja de S. Domingos, as arcarias do dormitório conventual e do Hospital de Todos os Santos e fachada da respectiva igreja.

A decisão inicial da sua construção coubera a D. João II o qual, pretendendo reunir os meios económicos necessários para tal empreendimento, requereu (e conseguiu obter) a autorização do Papa Sisto IV para extinguir um bom número dos cerca de 43 hospícios então existentes (a maioria fundados e mantidos por doações e

43 testamentos de beneméritos particulares)87 e para transferir os respectivos rendimentos para o futuro Hospital.

Foi ainda D. João II quem lançou a primeira pedra, em Maio de 1492 mas, vindo o mesmo a falecer a 25 de Outubro de 1495, as obras prosseguiram já no reinado de D. Manuel I até ao ano de 150488 e, nesse mesmo ano, foi promulgado o Regimento do Hospital. Estruturado em várias secções e capítulos, regulamentava todos os aspectos do funcionamento hospitalar, desde os de âmbito administrativo e económico aos de carácter religioso, até aos concernentes aos agentes de saúde (físicos, cirurgiões, sangradores, enfermeiros) e aos funcionários da recepção, do alojamento e do tratamento dos doentes.

No capítulo I do Regimento, enumeravam-se os oficiais (funcionários) que prestariam serviço no Hospital - 2 capelães, 1 provedor, 1 vedor, 1 físico, 2 sollorgiaes (cirurgiães), 1 almoxarife, 1 escrivão do provedor, 1 escrivão do almoxarife, 4 enfermeiros maiores, 7 enfermeiros pequenos,1 despenseiro, 1 cozinheiro, 1 porteiro e guarda-portas, 1 boticário, 3 moços ajudantes de botica, 1 enfermeira de mulheres, 1cristaleira (encarregue de ministrar clísteres), 1 lavadeira, 1 alfaiata, 1 espritaleiro (responsável pela limpeza das enfermarias e roupas),1 barbeiro e 2 sangradores -, explicitando-se não só o valor dos respectivos vencimentos, como também se teriam ou não direito a alojamento (com ou sem direito a alimentação) no edifício hospitalar.

Nos diversos capítulos ou Titulos do Regimento, eram minuciosamente regulamentadas as funções desempenhadas por todos os oficiais do Hospital. Assim, no Título do Físico determinava-se, entre outras coisas, que o mesmo fizesse “a vizitação dos doentes duas vezes no dia, pela manhâ ao nascer do sol e à tarde até às duas horas (…) a começar pela enfermaria maior” e que visitasse os enfermos que estivessem nas enfermarias, observando “as aguas de cada hum que lhe [seriam] dadas pelos

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Pelas informações recolhidas nas Memórias paroquiais de 1758, referentes à freguesia da Madalena, o Hospital dos Palmeiros, que fora criado em 1330 como “Albergaria de pobres a quem davão cama, agua, e candea por tres dias” manteve-se em funcionamento até 1755.

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A tipologia arquitectónica do Hospital Real de Todos os Santos, tal como o respectivo Regimento de 1504, inspiraram-se, pelo menos parcialmente, nos hospitais italianos de Santa Maria Nova de Florença e de Santa Maria de Siena. Tido como um hospital moderno no séc. XVI, foi elogiado pelos estrangeiros e pelo nosso humanista Damião de Góis que, por ser muito viajado, afirmou com conhecimento de causa, que o nosso Hospital podia “(…) reivindicar a primazia sobre todos os hospitais reais, embora muito numerosos e célebres, que se encontram através da Espanha ou das restantes regiões do mundo cristão”. Até 1530, a administração do Hospital pertenceu à Coroa, sendo esta que designava o Provedor ou Enfermeiro-Mor; de 1530 a 1564, a administração passou à Congregação de S. João Evangelista e, a partir de 1564, à Misericórdia de Lisboa.

44 Enfermeiros pequenos” devendo, após tal observação, decidir “sobre o remedio de cada hum paciente, [ordenando] as mezinhas de cada hum, segundo [o] que lhe melhor [parecesse], [e mandando-as] compor, e ordenar ao Boticário do dito Esprital, que com elle nas vezitações [estivesse] prezente”.84

Além de visitar duas vezes por dia os doentes internados, acompanhado pelo cellorgião (cirurgião) e pelo boticário, também cumpria ao Fizico “ver todos os enfermos que à porta do Esprital [viessem] e de ally à porta de lhe ver suas agoas (na casa das águas, ou futuro banco de urgências) e tomar seus pulços, e [daria] todo conselho, e remedio, que para suas curas lhe [parecesse]”.89

No Título de cirurgiões (um interno e outro externo) determinava-se que visitassem duas vezes ao dia os doentes de cirurgia e os das boubas e ainda que o cirurgião residente lesse todos os dias uma lição aos dois ajudantes que o auxiliavam, para que estes aprendessem teoria e prática.

No Título do Boticário determinava o Regimento que se escolhesse um que soubesse “muito bem do ofício” e tivesse prática dele e fosse “muy prestes e despachado”, sendo sua obrigação acompanhar “nas visitações aos enfermos os fizicos e os sollorgiões (…) [levando] uma imenta (livro de registo) (…) onde faria dois títulos, um das purgas, apartado por si, e outro de todas as mezinhas místicas que se haviam de fazer”.90

No Título dos enfermeiros determinava-se que os enfermeiros “maiores” acompanhassem o(s) Físico(s) e os cirurgiões na visita diária aos doentes e que “nas suas tábuas” assentassem as dietas e rações de comida e que se encarregassem do serviço aos doentes: refeições, distribuição e aplicação dos remédios, limpeza dos doentes e das suas camas, etc.

O Título do barbeiro e sangrador determinava que esse oficial tinha a obrigação de fazer todas as barbas e de tosquear todos os doentes e também de os sangrar “em todas as horas e tempos para que [fosse] requerido, e pelo Fízico [fosse] ordenado”.91

O Regimento regulamentava igualmente a casa dos engeitados 92(localizada nos edifícios voltados à Rua da Betesga), as funções do pessoal administrativo – almoxarife,

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ANTT, Hospital de José, livro 939, Regimento do Hospital

90 Carmona, Mário, O Hospital Real de Todos os Santos da Cidade de Lisboa, Lisboa, 1954, pp. 180-182 91 Idem, p. 184

45 vedor, provedor, despenseiro e hospitaleiro - e a contratação e as obrigações de serviçais como o espritaleiro (responsável pela manutenção das roupas brancas e de vestir, dos colchões), o hortelão, o medidor do celeiro, o atafoneiro,a amassadeira, a forneira, o aguadeiro, os homens do esquife, o coveiro, entre outros.

Embora o Regimento do Hospital tivesse vigorado até ao século XVIII, nem sempre as suas normas foram cumpridas por razões muito diversas mas, sobretudo, pela falta de provedores capazes e pelo desinteresse e incompetência dos oficiais contratados. Por vezes, até os físicos tentavam fugir ao cumprimento das suas obrigações, evitando ou reduzindo as visitas diárias aos doentes internados, como parece sugerir um despacho da Mesa da Misericórdia, datado de 1715,93 no qual se ordenava aos dois oficiais da fazenda que acompanhassem (e vigiassem?) os dois médicos residentes na visita diária aos doentes.

O Hospital Real de Todos os Santos quando começou a funcionar, nos primeiros anos do século XVI, era composto pela parte hospitalar - enfermarias e respectivas áreas de apoio -, pela Igreja e por diversas outras secções ou casas como a albergaria dos peregrinos (casa dos pedintes andantes), o hospício dos inválidos, a casa dos engeitados, as casas de aposentadoria, etc., uma vez que ao herdar os rendimentos dos antigos hospícios (como atrás referimos), também assumira muitas das suas obrigações religiosas e assistenciais.

As enfermarias (inicialmente, apenas as de S. Vicente, de S. Cosme e de Santa Clara) e a Igreja constituíam a parte edificada mais importante e inseriam-se numa planta cruciforme fechada num quadrilátero irregular, cujas fachadas principais viravam para o Rossio e para a Rua da Bitesga.

Segundo uma descrição de meados do século XVI, o interior do Hospital apresentava “quatro crastas [claustros], com suas árvores e poços em cada huma, quadradas todas, com seus arcos de cantaria e por cima suas varandas, com seus mármores; e as mais casas de dentro (…) edificadas sobre abóbadas, e os baixos [ficavam] para despejos e coisas necesárias”.94

92 As crianças abandonadas eram entregues às amas até aos 3 anos e depois mantidas no Hospital até aos

7 anos, devendo nessa idade começar a trabalhar “à soldada” ou como aprendizes de ofícios.

93 ANTT, Hospital de S. José, livro 942, fl. 64

94Brandão, João, Grandeza e abastança de Lisboa em 1552, Lisboa, ed. Livros Horizonte, col. “Cidade de

46 Das três enfermarias principais, as masculinas – as de S. Vicente e de S. Cosme - albergavam um total de 36 doentes, instalados em leitos individuais “cada um com suas cortinas, colchões e almofadas” e a enfermaria feminina – de Santa Clara – comportava 16 doentes. Existiam ainda outras duas enfermarias destinadas a doenças venéreas (uma masculina com 24 leitos e outra feminina com 19 leitos), que se encontravam “apartadas das outras, e [tinham] forno e cozinha apartados” e ainda outra enfermaria apartada, a dos beguinos capuchos, “onde sempre [estavam] dez ou dozes beguinos doentes”.95

Por baixo do corpo principal do Hospital, virado ao Rossio, existia uma grande galeria com “mais vinte e cinco arcos 96de pedraria, com sua abóbada (…) [com arcos de] setenta e três braças de comprido [160,6m] e trinta e cinco de largo[77m]”97 pela qual se acedia a um albergue com 20 leitos para homens e outros 20 para mulheres “onde [agasalhavam] peregrinos (…) [aos quais se davam apenas] camas e água para beber”.98

Reportando-nos ainda a meados do século XVI, sabemos que o Hospital recebia, anualmente, entre 2500 e os 3000 doentes e que o número de doentes internados oscilava entre os 130 e os 150.99

Talvez por já nessa altura, ser insuficiente o número de leitos disponíveis, o Hospital Real anexou dois pequenos hospitais para aí internar os “entrevados” e “incuráveis”: o Hospital de Santana, às Fangas da Farinha, para os “males incuráveis” e o de Nossa Senhora da Vitória, no Poço do Chão, para “os enfermos desamparados que têm enfermidades incuráveis”.100

No início do século XVII, o Hospital Real conheceu as primeiras obras de renovação e ampliação, na sequência do incêndio ocorrido a 27 de Outubro de 1601. Porém, o número de camas disponíveis continuou a ser limitado, não tendo o Hospital capacidade de resposta para o acréscimo de doentes que se verificou aquando do deflagrar dum novo surto pestífero em 1631.

Face a tão grave situação, em Maio desse ano, os médicos e cirurgiões do Hospital apresentaram uma exposição ao monarca sobre “a qualidade das fevres que

95 Idem, p. 125

96 Desses 25 arcos, 17 pertenciam ao edifício hospitalar e 8 ao dormitório do Convento Dominicano,

encontrando-se, de permeio, a Ermida de Nossa Senhora do Amparo.

97 Idem, ibidem 98 Idem, p. 126 99 Idem, p. 127 100 Idem, p. 129

47 [havia] nelle, e da quantidade dos doentes, e o que [diziam] sobre se curarem em lugar separado (…) advertindo-se que (…) não havia já ordem nem lugar de receber mais doentes.”101

Desconhecemos se a resposta da Coroa a essa exposição foi imediata, mas as obras de ampliação e (ou) melhoria das instalações hospitalares acabaram por se realizar, tendo sido criadas mais seis enfermarias até final do século XVII.

Com a criação dessas novas enfermarias e com o aumento do número dos doentes internados, tornou-se impossível para o único Físico existente cumprir todas as obrigações que lhe estavam consignadas, vendo-se, por isso, a Mesa da Misericórdia obrigada a reforçar o número dos médicos residentes, como se deduz do seguinte despacho: “Por nos constar ser muito conveniente á asistencia dos Enfermos do Hospital Real, por aver crescido grande numero de doentes, e não poderem dar expedição os dous Medicos que nelle há, e nos constar da Sciencia, e bom procedimento do Doutor Roque da Costa (…) Havemos por bem de o prover em o primeiro Lugar dos dous, que novamente creamos para asistencia dos Enfermos do Hospital”.102

As várias intervenções sofridas pelo edifício hospitalar até inícios do século XVIII, não alteraram substancialmente nem a estrutura geral do edifício nem a fachada principal virada ao Rossio, se levarmos em conta as descrições e os documentos iconográficos elaborados até às primeiras décadas do século XVIII.

Segundo uma descrição datada dos primeiros anos de Setecentos, o Hospital Real estruturava-se numa “Cruz de quatro braços iguaes, ficando-lhe em os quatro ângulos quatro claustros muy grandes, lageados de pedraria, & hum poço de agua no meyo de cada hum, excepto o claustro, sobre que cae a cozinha, que para sua limpeza [tinha] o poço a hum canto (…) Hum dos braços desta Cruz [ocupava] huma fermosa, & grande Igreja, que ficando com a porta sobre o Rocio, se [subia] para ella por huma famosa escada de pedra, de vinte e hum degráos (…) [Entava-se] nesse Templo por hum portal de obra muy custosa, todo de pedraria lavrada, que o [fazia] ser hum dos melhores, que [havia] neste Reyno. No outro braço desta Cruz que [atravessava] para a parte direyta, [ficava] a enfermaria dos feridos com o título de S. Cosme. Em o outro braço opposto a este, [estava] a enfermaria das mulheres com o título de Santa Clara, & no que [ficava] no direyto da Igreja [havia] huma enfermaria de febres com o titulo de

101 Freire de Oliveira, Eduardo, Elementos para a História do Município de Lisboa, vol. III, p. 436 102 ANTT, Hospital de S. José, livro 942, fl. 56

48 S. Vicente, & nestas tres enfermarias [estavam] os leytos postos em repartimentos dentro de huns arcos, de modo que [ficassem] livres os corredores para mayor limpeza, & o corredor da enfermaria de S. Vicente [tinha] cento & cincoenta & sete palmos de comprido, & vinte de largo, & trinta de altura (…) A enfermaria das mulheres [tinha] cento & trinta & tres palmos de comprido, & de largo, & altura os mesmos, que os de S. Vicente. A enfermaria de S. Cosme [era] do mesmo comprimento, altura & largura que a das mulheres (…) A Capella mór da Igreja, que [era] muy alta, & larga, [ficava] no fecho da Cuz deste edificio do Hospital, & em tal sitio, que por tres janellas, que nella havia, ouvião missa os doentes no Altar mór, estando deytados nos seus leytos ”.

O mesmo documento informa-nos que a capacidade do estabelecimento hospitalar era, nessa altura, de aproximadamente 300 leitos, repartidos pelas diversas enfermarias: 22 na de S. Vicente, 22 na de Santa Clara, 18 na de S. Cosme, 22 na de S. Damião, 14 na do camarentos, 45 na dos feridos, 25 na dos “males das mulheres”, 77 na dos “males dos homens, corredor & outras casas”, 12 na dos convalescentes, 30 na de S. Diogo, 30 pelas “casas de doudos” e pelos corredores.

Como já atrás foi referido, o piso superior do edifício principal do Hospital de Todos os Santos foi, desde o início, ocupado pelas três enfermarias mais importantes - as de S. Vicente e de S. Cosme para homens e a de Santa Clara para mulheres - enquanto o piso térreo foi ocupado pelos alojamentos do pessoal residente, num número aproximado de 50 oficiais (funcionários), englobando dois capelães, um físico (médico), dois cirurgiões, dois ajudantes de cirurgião, um boticário, três ajudantes de boticário, doze enfermeiros, um barbeiro-sangrador, uma cristaleira (que administrava os clisteres), o almoxarife, o escrivão, o hospitaleiro, o provedor, o vedor, o despenseiro, a costureira, o cozinheiro, a lavadeira, a alfaiata, etc.

Também se localizavam no piso térreo do edifício principal, a já citada casa de pedintes andantes (com porta de acesso sob a galeria, ao lado da Igreja) e, no piso térreo dos quatro claustros, distribuíam-se diversos compartimentos como o refeitório, a botica, a casa da fazenda, a cozinha e a casa dos engeitados e, por detrás dos edifícios, encontrava-se uma grande horta onde se situava “huma enfermaria de Capuchos (…) para curarem os Capuchos enfermos, aos quaes o Hospital [dava] em abundancia todo o necessario (…)”.103

49 Por documento datado de 8 de Junho de 1715, sabemos que a Mesa da Misericórdia determinou a realização das necessárias obras de reparação e ampliação de algumas enfermarias que se apresentavam arruinadas e “(…) por cuja conta temos feito algûas despezas ”.104

Passaram então, a existir vinte enfermarias, cada uma com o nome do respectivo santo patrono, sendo as masculinas as de “S. Cosme, febres, S. Francisco, febres, S. Damião, febres, S. Francisco Xavier, febres, S.Lourenço, febres, P.es Capuchos, febres, S. Pedro, febres, S. Bernardo, febres, S. Vicente, febres, S. João, doudos, S. António, galico e feridas, S. Domingos, feridas, S. Caetano, feridas; [e as femininas as de] Santa Clara, febres, Santa Izabel, camarentas e tizicas, Santa Catarina, feridas, Santa Anna, doudas, Santa Maria Magdalena, galico, S. Jorge, camaras e tizicas, S. Marco, feridas”.105

Mas, três décadas mais tarde, a vida do Hospital Real foi, mais uma vez, perturbada pela deflagração de um devastador incêndio, na madrugada de 10 de Agosto de 1750, que foi assim descrito: “Corrião as três da manhã (…) Começou este lastimoso incendio em huas poucas de apáras das obras, na casa que chamão das tinas, que he aonde se aquenta agua par os banhos dos doentes. Dalli foi discorrendo até à casa do Irmão maior, e Ermida dos enfermeiros, em que havia já dous rombos, que fazião já sair pela Sacristia muito fumo, e não pouco fogo. Foi-se logo communicando á enfermaria de S. Cosme, e Damião; daqui às casas dos doudos, e dos mortos, e á enfermaria de S. Pedro: não perdoou a sua viloencia á de S. Lourenço (…) chegou ás duas de S. João de Deos, e de S. Francisco de Sales, situadas ambas superiormente á casa das amas dos engeitados (…) Passou dalli á enfermaria de S. Francisco Xavier pegando também no novo corredor de S. Camillo de Lelis; e já ardia com summa voracidade na habitação dos feridos, convalescença, e casa da Anatomia. Chegou á cozinha, ás enfermarias de Santa Clara, e de Santa Joana, das mulheres feridas e doudas. Ameaçou também a de Santa Madalena (…) ”.106

Dadas as gigantescas proporções desse incêndio, que destruiu quase todo o conjunto edificado do Hospital, excepto a sua fachada principal virada ao Rossio

104 ANTT, Hospital de S. José, livro 942, fl. 98 105 ANTT, Hospital de S. José, livro 942, fl. 64

106 Relação verdadeira, e individual do formidável incendio, que se ateou no Hospital real de Todos os

Santos da Cidade de Lisboa, em 10 de Agosto, deste anno de 1750, Lisboa, ed. Officina de Manoel Soares, 1750, pp. 2-3.

50 (englobando a fachada da Igreja) e a enfermaria de Santa Madalena, a maior parte dos doentes (seriam cerca de 723 nessa altura) foram de imediato evacuados para o contíguo Convento de S. Domingos, com a total concordância dos “Reverendos Padres Dominicos”, que “ajudarão a trazer os pobres doentes para o seu Convento, depositando as mulheres na Igreja, e os homens nas casas do seu Capitulo, e Portaria, e os doudos que erão desaseis, nos carceres”.107

Além do Convento de S. Domingos, também o Convento do Desterro e algumas casas particulares garantiram o alojamento temporário aos doentes do Hospital Real. O monarca, que se mostrara “sumamente sensível” perante tão grande tragédia, ordenou que se tomassem todas providências necessárias para que se repararem os danos existentes.

É provável que o monarca tivesse pensado em aproveitar a ocasião não só para reconstruir as enfermarias afectadas pelo grande incêndio, mas também para ampliar as instalações hospitalares, o que resolveria o já antigo problema da sobrelotação do espaço. Só assim se compreende que tenha sido ordenada a elaboração de uma planta topográfica abarcando a área do Hospital Real e das zonas envolventes, a qual antecedeu, sem dúvida, a elaboração do projecto de reconstrução do edifício hospitalar.

A planta em questão, abaixo reproduzida, apresenta a seguinte legenda: Planta Topographica, e exacta do Sitio, que comprehende a Ilha em que estava edificado o Hospital Real de todos os Santos desta Cidade, o Convento de São Domingos, e Cazas asim do Ill.mº e Exmº Marquês de Cascaes, como as dos particulares, a qual foi tirada na prezença do Sargento Mor Philippe Roiz de Oliveira108, pello Ajudante Guilherme Joaquim Pais de Menezes e o Discípulo Thomas Roiz da Costa,a que assistirão também outros Discipulos todos do dito Sargento Mor, e se finalizou a 9 de Dezembro de 1750.109

107 Idem, p. 5

108 Segundo Nuno Luís Madureira, opus cit., p. 18, posteriormente ao terramoto de 1755, o sargento-mor

Filipe Roiz de Oliveira foi encarregado pelo Duque Regedor de apresentar um plano de urbanização para a zona noroeste da cidade, tendo para tal elaborado a Planta do Andaluz e seus confins que compreendia as zonas entre os limites de S. Sebastião da Pedreira, Portas de Santo Antão, Largo da Cotovia e Largo do Rato.

51 Trata-se de uma planta pouco conhecida110, apesar das relevantes informações que apresenta concernentes às áreas compreendidas entre o lado oriental do Rossio e o Borratém e quanto à toponímia existentes até ao Terramoto de 1755.

Figura 10. Planta topográfica representando as áreas ocupadas pelo Hospital Real de Todos os Santos e edifícios contíguos, realizada em 1750.

Como podemos observar, foram aí representados os espaços então ocupados pelo Hospital Real, pelo Convento de S. Domingos e pelo Palácio do Marquês de Cascais e quase todas as artérias limítrofes dessas áreas, algumas das quais viriam a desaparecer com a implantação do Plano de Renovação da Baixa Pombalina - Rua detráz de S. Domingos, Rua dos Álamos (a nordeste); Pocinho de entre as hortas, Beco da Estalajem, Praça da Palha, Lagar do Sebo (do lado sul), etc. - ou seriam bastante

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