• Nenhum resultado encontrado

INTRODUÇÃO GERAL

3. Housing First e o Processo de Recovery

a. Uma Leitura Ecológica sobre a Percepção da Escolha/Controlo e da Qualidade da Casa como Percursores Naturais do Recovery no Modelo

Housing First

Segundo Case (1996) e Moore (2000) a concepção de casa (“lar”), desempenha um papel de influência crítica, no processo sobre o qual as pessoas definem e experienciam o seu contexto ambiental e social. A aquisição de uma habitação percepcionada como sendo de qualidade, permite o desenvolvimento progressivo de sentimentos que se prendem com o conforto e a comodidade, assim como permite o crescimento de sentimentos de segurança física e emocional, que constituem os pilares para a estruturação do desenvolvimento de rotinas diárias, enquadradas numa perspectiva de controlo e de empowerment (Borg et al., 2005). Ao abordar a questão da qualidade da habitação, é importante salientar ambas as componentes e características físicas e psicossociais. A qualidade física da habitação, refere- se à qualidade estrutural e contextual da casa, abrangendo aspectos como o conforto e a decoração interior, contemplando questões como o estado de conservação habitacional, incluindo o estado dos móveis da casa, do chão, das paredes e odores que possam eventualmente manifestar-se. Engloba igualmente aspectos do âmago contextual, como os níveis de ruído do contexto local, a facilidade de acesso à habitação, os recursos comunitários locais, entre outros (Evans, 2003; Nelson et al., 2007). Por outro lado, a dimensão psicossocial da qualidade da habitação, está relacionada com a promoção do sentimento de pertença, com a identificação com o contexto habitacional, fomentando deste modo a cidadania, a privacidade e o sentimento de segurança nas pessoas (Cuba, & Hummon, 1993; Nelson, Hall, & Walsh- Bowers, 1998; Ornelas, Martins et al., 2014; Smith, 1994; Townley, Miller, & Kloos, 2013; Ware et al., 2008; Wells & Harris, 2007; Wright & Kloos, 2007). Como tal, a percepção da qualidade da habitação, considerando ambas as dimensões, detém uma grande influência na vida das pessoas, uma vez que é onde as mesmas geralmente passam a maior parte do seu tempo (Evans, Wells, & Moch, 2003; Evans, Wells, Chan, & Saltzman, 2000; Nelson et al., 2007). Fisk et al. (2007) argumentam neste sentido, defendendo que a promoção de um ambiente seguro e estável, geralmente fornecido pelo contexto habitacional, potencia simultaneamente sentimentos de capacitação e fortalece as redes de suporte social nas comunidades locais, onde as pessoas residem (Fisk et al., 2007; Sachetto et al., 2018). Este aspecto detém um papel de relevo em torno do contexto ambiental

em que as pessoas se encontram inseridas, facilitando a emergência de um estatuto de cidadania plena e de reconstrução do capital social das pessoas (Fisk et al., 2007; Ornelas, Duarte et al., 2014; Zimmerman, 1995).

Outro processo que é afectado pela percepção da qualidade da habitação, é o nível de escolha percebida ou de controlo pessoal, uma vez que as pessoas geralmente sentem-se melhor e apresentam melhorias a nível da sua saúde mental, quando sentem que vivem em habitações de qualidade e possuem controlo sobre a escolha nos contextos onde residem (Evans, 2003; Krieger, & Higgins, 2002). O princípio da escolha dos residentes, como foi mencionado anteriormente, constitui uma das grandes temáticas centrais do modelo HF, onde as práticas interventivas baseadas nas preferências individuais dos residentes, estão desenhadas para deterem um papel activo na promoção do empowerment das pessoas (Greenwood et al., 2005). Martins et al. (2016), ao conduzirem uma investigação no âmbito do modelo HF, descobriram que a percepção da qualidade da habitação tem um impacto significativo na percepção da escolha dos residentes, sendo que este aspecto influencia positivamente os resultados ao nível da saúde mental (Ver Capítulo 2). Assim Tsemberis et al. (2003), enaltecem a importância dos serviços contemplarem a escolha individual das pessoas, uma vez que a existência da mesma sobre as opções habitacionais, está directamente correlacionada com maiores níveis de satisfação e de estabilidade habitacional, assim como de bem-estar psicológico. Adicionalmente, quando o residente tem a possibilidade de escolher onde e como vive, ganhando uma “voz” activa sobre os serviços de suporte que melhor se adequam às suas necessidades, o número de internamentos tende a diminuir substancialmente e o número de experiências positivas em locais comunitários como o trabalho, escola e actividades sociais aumentam significativamente.

Neste sentido, o papel da percepção da qualidade da casa aliada à percepção da escolha/controlo como uma prática ligada ao princípio de empowerment, constituem elementos condutores para a promoção do processo de recovery na saúde mental, cimentados em princípios ecológicos (Greenwood et al., 2005; Greenwood, & Manning, 2016; Kelly, 2006; Martins et al., 2016; Nelson et al., 2007; Ornelas et al., 2014; Patterson, Rezansoff, Currie, & Sommers, 2013; Zimmerman, 2000) Uma vez que a perspectiva ecológica, encontra o seu fundamento ideológico na contemplação de factores de ordem individual e contextual, é de realçar a importância desta perspectiva aliada ao papel central do processo de recovery, na abordagem a pessoas que se encontravam em situação de sem-abrigo, com problemáticas associadas de doença mental (Gillis et al., 2010; Kelly, 2006; Martins et al., 2016; Nooe, & Patterson, 2010; Ornelas et al., 2017; Macnaughton et al., 2016; Manning, & Greenwood,

2018; Tsemberis, 2010). Como tal, o modelo HF ao efectuar uma leitura ecológica entre a interacção de elementos de ordem contextual e individual, incorpora aspectos tais como a percepção da escolha/controlo e a qualidade da casa, como veículos catalisadores do processo de recovery individual (Greenwood, & Manning, 2016; Kirst et al., 2014; Martins et al., 2016; Nelson et al., 2007; Ornelas et al., 2010; Ornelas et al., 2014; Tsemberis et al., 2012) (Ver Capítulo 2). Assim, consoante a conceptualização proposta por Piat et al. (2015) e por Manning e Greenwood (2018), a natureza multidimensional do processo de recovery pode ser espoletada pela mudança de contextos que toldam os diferentes percursos que as pessoas podem optar no seu processo individual. Neste sentido, a inexistência de uma habitação percepcionada como segura e estável coloca sérias limitações na fomentação e na manutenção dos processos de recovery individuais (Gillis et al., 2010; Greenwood et al., 2005; Kirst et al., 2014; O’Campo et al., 2016; Piat et al., 2015; Polvere, Macnaughton, & Piat, 2013; Shinn, 2007; Tsemberis & Eisenberg, 2000). Para Deegan (1988), o processo de recovery surge como uma oportunidade no meio de uma situação de crise e que pode fomentar a alteração do modo de vida da pessoa, abrindo assim caminho para a descoberta de novas possibilidades e potencialidades únicas. A conceptualização contextual de Gillis et al. (2010), de Greenwood e Manning (2016), tal como Piat et al. (2015) vai neste sentido, ao descrever o papel basilar da existência de uma habitação estável na potenciação do processo de recovery, através de um processo profundamente pessoal e único de mudança de atitudes, valores, sentimentos, objectivos, competências e papéis, que conduz a uma forma de viver a vida com satisfação e esperança gerando o desenvolvimento de novos significados (Deegan, 1988; Kirst et al., 2014; Piat et al., 2015; Polvere et al., 2013). Assim, a esperança desempenha um papel proeminente na consolidação e desenvolvimento deste processo, permitindo às pessoas o restabelecimento dos níveis de confiança nos próprios e nas redes de suporte social, maximizando deste modo a crença que é possível reganhar controlo sobre as suas próprias vidas (Deegan, 1988; Gillis et al., 2010; Greenwood & Manning, 2016; Manning & Greenwood, 2018; Martins et al., 2016; Zimmerman, 2000). Contudo, estes processos, como Davidson, Sells, Sangster e O'Connel (2005), e Ralph (2005) salientaram, não surgem num vazio privado de um contexto ambiental. Os serviços que intervêm junto das pessoas que se encontram em situação de sem-abrigo com doença mental, deverão mobilizar esforços no sentido de adoptar práticas e políticas, que embora baseados em princípios orientados para o recovery, actuem englobando valores ecológicos que possibilitem às pessoas, a reaquisição de controlo sobre as suas vidas, promovendo oportunidades de acesso a papéis sociais relevantes na comunidade (Gillis et al., 2010; Kirst et al., 2014). Assim, o modelo HF além de deter um papel fulcral na finalização

definitiva das situações de sem-abrigo, assume uma importância vital na promoção do aumento da percepção de escolha por parte das pessoas em relação ao “house matching” e em relação à tipologia de tratamento mais adequado às suas necessidades, potencializando uma melhoria significativa em termos da sua saúde física, mental e consequentemente, da sua qualidade de vida (Greenwood et al., 2005; Nelson et al., 2007; Polvere et al., 2013; Srebnik, Connor, & Sylla, 2013).

Relativamente à evidência científica neste âmbito, Raine e Marcellin (2007) defendem que o modelo HF promove o aumento dos níveis de saúde dos residentes no plano físico e mental, tendo igualmente influência na adopção de hábitos alimentares mais saudáveis e na diminuição dos níveis de stress dos residentes. Como tal a aquisição de uma habitação estável e segura permite o restabelecimento de ciclos de sono padronizados e a consolidação de um sentimento de segurança duradouro, sendo estes factores essenciais na promoção e manutenção do processo de recovery. De modo complementar, Meshede (2007), verificou que diversos residentes inseridos num programa HF, apresentavam altos níveis de satisfação com as suas casas, verificando-se igualmente um aumento exponencial dos níveis de independência, autonomização e controlo sobre diversas áreas das suas vidas. Assim, Brown et al. (2016) sustentam que a fomentação de um ambiente habitacional considerado como seguro e estável, possibilita a edificação e o reforço de redes de suporte social, assim como potencializa a ostentação de processos de participação activa em actividades promovidas de significado para as pessoas em áreas como a educação ou o emprego, indispensáveis para a emergência e posterior sustentação do processo de recovery (Yanos et al., 2007). Por sua vez, Tsemberis et al. (2012), defendem a importância totalmente fulcral do papel da casa e do suporte da equipa, na potencialização da estabilidade habitacional e na promoção do processo de recovery individual. Deste modo, algumas investigações apontam para a importância fulcral da existência de uma escolha individual, que possibilite a satisfação dos residentes em relação às suas casas, o que fundamenta a catalisação de variados elementos, subjacentes aos serviços orientados para o recovery, como o envolvimento participativo em atividades promovidas de significado para as pessoas e uma redução significativa de potenciais consumos ou situações de “crise”, factores estes totalmente basilares para a promoção e conservação do processo de recovery (Collins et al., 2012; Henwood, Stanhope, & Padjett, 2011; Kertesz, Crouch, Milby, Cusimano, & Shumacher, 2009; Mericle, & Grella, 2016; Robbins, Callahan e Monahan, 2009).

Figura 4 – Modelo esquemático da influência da habitação e do contexto habitacional na promoção do recovery

Como tal, com o princípio da integração comunitária a assumir centralidade entre os objectivos programáticos dos serviços e programas no âmbito da saúde mental comunitária, o processo de recovery surge como um resultado psicológico esperado ao nível individual. O recovery na doença mental pode ser por isso, progressivamente conotado como o restabelecimento da participação na vida da comunidade (integração) e do poder pessoal de cada indivíduo em relação à sua própria vida (empowerment) (Greenwood et al., 2005; Fisher, 2011; Nelson et al., 2014; Ornelas et al., 2017). Assim, através do reconhecimento que as pessoas abrangidas por programas de base comunitária poderão estar em diferentes etapas do seu processo de recovery e que a eficácia da intervenção, poderá encontrar-se parcialmente ancorada na consideração desse factor, cada pessoa deverá ter a possibilidade de escolha (consumir álcool ou não; tomar a medicação ou não) sendo que o suporte disponibilizado e as suas respostas habitacionais, não sejam colocados em risco (Tsemberis et al. 2004). Ao equacionar e disponibilizar a percepção de escolha/controlo às pessoas, considerando as suas preferências e objectivos individuais e pessoais, assiste-se a uma proliferação de melhorias

Qualidade da casa

Fonte: Greenwood et al., 2005; Piat et al., 2015; Wrigh e Kloos, 2007; Jorge- Monteiro e Ornelas, 2016

nos resultados ao nível da saúde mental, em concomitância com uma maior satisfação perante os diversos serviços disponíveis, o que contribui por sua vez para uma maior adesão e permanência nesses mesmos serviços (Calsyn et al., 2003; Ornelas et al., 2014; Padgett, Henwood, Abrams, & Davis, 2008) Um olhar sobre a evidência, demonstra que os níveis de escolha percepcionados em relação às opções habitacionais, têm sido correlacionados com uma maior satisfação com a habitação, maior estabilidade habitacional, maiores níveis de bem-estar psicológico e maior integração comunitária (Brown et al., 2016; O’Connel, Rosenheck, Kasprow, & Frisman, 2006; Srebnik et al., 1995; Yanos et al., 2004). Deste modo, os serviços que seguem uma orientação de recovery, como o modelo HF, deverão promover o aumento de oportunidades de escolha aos seus residentes, respeitando as suas preferências individuais e a qualidade habitacional percepcionada, uma vez que o conceito de escolha é considerado como central, numa perspectiva orientada para a integração e para o recovery da doença mental em pessoas com experiência de sem-abrigo (Martins et al., 2016; O’Connel et al., 2006; Padgett et al., 2008). Como tal, de acordo com Ornelas et al. (2014), apesar de o recovery ser um processo profundamente individual, detém uma dimensão social e política que suplanta o plano meramente individual. Neste sentido, os autores defendem que a adopção de uma leitura ecológica, permite-nos aceder a aspectos contextuais e individuais relevantes, que podem ser maximizados por programas de inovação social, fundamentais para a criação e desenvolvimento de um sentimento progressivo de cidadania, de advocacy e do envolvimento activo por parte das pessoas (como cidadãos actuantes), na edificação e consolidação de comunidades mais diversificadas.