Balanço Crítico
HUMANISMO VERSUS PRATICISMO
O falso dilema humanismo-praticismo é geralmente discuti do da forma mais ingênua, como se houvesse que optar entre
um humanismo definido como a atitude de honoráveis herdei ros do legado do saber humano e a mediocridade ou estreiteza de pessoas sem nenhuma sensibilidade em relação àquele lega do, que se preocupassem somente com coisas práticas, inclusive com as experiências científicas e tecnológicas. No tempo atual — temos que dizê-lo com tôda a clareza — um humanismo que não esteja fundamentado na ciência não é, de nenhuma maneira, um humanismo. Pior ainda que a mediocridade conse qüente de uma superespecialização científica, é o pseudo-hu- manismo que se contenta em desfrutar as conquistas espirituais do passado alheio. A erudição gratuita é a mais grave das en fermidades da inteligência porque converte a mais fecunda das ofáapti? humanas — o saber — num culto de tradições de ou tras sociedades ou de tempos pretéritos e leva ao desinterêsse pelos problemas do tempo em que se vive e ao desprêzo da sociedade de que se participa.
Naturalmente, uma das funções capitais da universidade é fazer o maior número possível de cidadãos herdeiros do patri mônio artístico, literário e intelectual da humanidade; porém, coisa muito distinta é converter esta função num culto que se encerra no passado, incapaz de absorver os conhecimentos mo dernos e incapaz de comover-se com as idéias e os valores que se debatem na sociedade em que vive, como esforços de ques tionar suas instituições e de buscar novas e melhores soluções para todos os problemas.
CIEN TIFIC ISM O VERSUS PROFISSIONALISMO
O segundo dilema que preocupa muitos universitários la tino-americanos se expressa na oposição irredutível entre cien- tificismo e profissionalismo, entendida esta opção como a esco lha entre o cultivo da ciência e o repertório de treinamento no uso de suas aplicações práticas. Como no caso anterior, trata-se de uma falácia, já que ninguém poderia optar por um ou outro campo sem causar danos irreparáveis à cultura nacional.
É função da universidade dominar a ciência de seu tempo no nível mais alto possível de conhecimento e de investigação, porque a ciência é o discurso do homem sôbre sua experiência na terra, a explicação mais completa e responsável de suas
observações sôbre a natureza e sôbre as relações entre as coisas e seus nexos causais. Êste discurso, entretanto, pode ser con vertido numa nova erudição quando se reduz a lições verbalís- ticas. Então já não será ciência, porque terá perdido suas qualidades essenciais de indagação permanente frente ao mundo e de instrumento único de experimentação e comprovação do saber alcançado sôbre a natureza das coisas e dos sêres. É tarefa irredutível da universidade cultivar e ensinar, a todos os estudantes, as bases do método empírico-indutivo, os funda mentos da abordagem experimental e da observação e compro vação sistemática, assim como o acervo sempre provisório e renovável de suas proposições.
O ensino profissional não se opõe, entretanto, ao científi co . Ao primeiro, corresponde a docência das aplicações de prin cípios científicos a determinados campos da atividade humana. Como tal, tem muitas exigências extracientíficas, como o treina mento em certas rotinas, cujo ensino criterioso é também tarefa insubstituível da universidade.
Uma variante desta falácia, que se formula às vêzes como uma oposição entre a ciência e a tecnologia, é apresentada como inevitável para as nações pobres que, não tendo recursos para cultivar as big sciences, deveriam contentar-se em importar seus frutos e somente cuidar do ensino e da investigação tecnológica. Esta é uma atitude tipicamente colonialista que traz implícita uma aceitação do atraso presente como uma fatalidade contra a qual não se pode combater. Se o Japão houvesse adotado esta atitude, que alguns desejam impor à América Latina, segura mente jamais teria conseguido romper as condições de subde senvolvimento que pesavam sôbre seu povo.
Ainda que a ciência seja uma atividade complexa e alta mente dispendiosa, seu domínio é imperativo para aquêles que não desejam continuar dependentes do avanço alheio e importa dores dos produtos do saber desenvolvidos fo ra. A isto se acres centa que somente em programas de investigação científica e de preparação de novas gerações de pesquisadores se pode pre parar maciçamente técnicos com suficiente domínio do mé todo científico, dos procedimentos da experimentação controla da e do acervo do saber para aplicá-los aos problemas nacio nais mais concretos, em forma de pesquisas de motivação mais imediata.
É necessário reiterar que a ciência não é um discurso aca dêmico sôbre o saber e, por isso, somente pode ser ensinada lá onde se faz ciência e durante o próprio processo de investi gação. Isto tem uma importância capital para a universidade, porque nos adverte do fato de que cada pesquisa tem vir- tualidades educativas que é necessário explorar ao máximo. Isto é, que as universidades dos países subdesenvolvidos não somente devem dedicar-se à pesquisa por ser esta indispen sável, mas, também, que devem fazê-lo levando em conside ração as virtualidades educativas que cada uma delas oferece.
Esta afirmação se opõe francamente à orientação de al guns pesquisadores universitários que não se interessam pelo ensino e, no afã de levar adiante seus trabalhos científicos, consideram as atividades educativas como um obstáculo. Esta atitude é inadmissível nas universidades, sobretudo porque, os cientistas mais fecundos em seu campo de investigação reco nhecem o dever de orientar estudantes graduados e freqüente mente o fazem de maneira altamente proveitosa ao desenvol vimento de seus próprios estudos. Por tudo isso, deve ser tida como falaz a oposição entre pesquisa e ensino, assim como o falso dilema entre ciência e tecnologia.
Conclui-se, portanto, que cumpre à universidade lati no-americana dedicar-se imperativamente ao cultivo da ciên cia, no nível mais alto possível, orientando-a, no que seja viá vel, em direção ao compromisso com a luta contra o subdesen volvimento. E exigindo-lhe também a obrigação de transmitir, simultânea e integradamente, um ensino profissional da melhor qualidade possível. Em certas circunstâncias, êstes dois imperati vos podem sofrer deformações, não por uma falsa opção entre êles, mas por falta de fidelidade a suas exigências elementares. Assim, quando a ciência se adjetiva para ingressar nos curricula profissionais e ali se reveste de superexigências, como se de cada estudante se devesse fazer um cientista, se pode falar do cientificismo como um dano. Da mesma maneira, quando o ensino profissional se reduz ao adestramento das aptidões num repertório de artes práticas, sem nenhum esforço por dominar os princípios científicos em que se baseiam, pode-se falar do profissionalismo como uma deformação equivalente.