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CAPÍTULO 4: DE ROMANCE PARA ROTEIRO

4.1 O NARRADOR: HUMBERT LITERÁRIO E HUMBERT DO

4.1.3 Humbert narrador do romance

Sabendo que no romance, o narrador principal corresponde a um Humbert Humbert autodiegético, de focalização externa que relata fatos passados em primeira pessoa do singular, faz-se relevante destacar que alguns aspectos da narrativa da personagem lhe concedem características específicas que permitem ao leitor uma relação de maior aproximação e talvez maior simpatia em relação a tal personagem, inicialmente dotada de uma moral bastante questionável.

Na obra literária, H. H. interage com o leitor frequentemente, tratando-o algumas vezes como membro do júri responsável por seu julgamento vindouro. São abundantes as passagens dotadas de humor e sarcasmo por parte da personagem, que se aproxima de seu leitor indicando saber

sobre sua presença, como por exemplo, no seguinte extrato: “Eu não sei dizer ao meu experimentado leitor (cujas sobrancelhas, eu suspeito, devem a esta altura ter viajado até a parte de trás de sua cabeça careca), eu não sei dizer a ele como o conhecimento chegou até mim [...].”56 (NABOKOV, 1995, p. 48). Tal recurso não compõe o roteiro fílmico, já que ao longo de todo o texto não existe qualquer passagem que indique que Humbert possua consciência da presença do leitor/expectador com ele interagindo.

No romance, Humbert também utiliza um artifício de distanciamento em sua narrativa. Não é incomum que durante seus relatos em primeira pessoa, o narrador refira-se a si mesmo em terceira pessoa do singular. Tal recurso parece fazer com que H. H. afaste-se da trama que narra, como por exemplo, em: “[...] e de qualquer forma, teria sido muito disparatado até mesmo para um lunático, supor que outro Humbert estivesse avidamente seguindo Humbert e a ninfeta de Humbert com fogos de artifício jovianos pelas grandes e feias planícies.”57 (NABOKOV, 1995, p. 217).

É possível identificar no romance de Nabokov os sentimentos de Humbert em relação às demais personagens, em especial Lolita e as mulheres maduras, visto que o narrador lança mão de uma larga escala de adjetivos (tanto positivos quanto negativos) para designar os integrantes da trama. Verifica-se o exposto através de extratos como o seguinte, no qual o narrador fala sobre a mãe de Lolita: “Ela não respondeu, a cadela louca, e eu coloquei os copos sobre o balcão próximo ao telefone, que havia começado a tocar.”58 (NABOKOV, 1995, p. 97).

Finalmente, são dignos de nota dois outros recursos empregados por Humbert que ensejam no leitor o contato com

56 I cannot tell my learned reader (whose eyebrows, I suspect, have by now traveled all the way to the back of his bald head), I cannot tell him how the knowledge came to me [...].

57 [...] and anyway it would have been too foolish even for a lunatic to suppose another Humbert was avidly following Humbert and Humbert’s nymphet with Jovian fireworks, over the great and ugly plains.

58 She did not answer, the mad bitch, and I placed the glasses on the sideboard near the telephone, which had started to ring.

uma dimensão subjetiva do narrador: o solilóquio e a interlocução. Tais foram as designações adotadas para as passagens em que o narrador divaga em franco monólogo pessoal, sobre suas percepções e sentimentos e, para as situações em que o narrador se comunica com uma personagem (fora do tempo da narrativa, visto que essa é uma rememoração de fatos passados) respectivamente. Como exemplo de interlocução, pode ser citado o seguinte excerto, no qual H. H. interrompe o fluxo da narrativa para comunicar-se com o carro que serviu de transporte durante os anos em que viajou com Lolita: “Eu estava prestes a ser retirado do carro (Oi, Melmoth, muito obrigado, velho amigo) [...].”59 (NABOKOV, 1995, p. 307).

Tais recursos presentes no romance parecem ilustrar o ponto de vista levantado com a segunda hipótese, já mencionada. É certo que a personagem de Humbert tangencia em sua essência, temas extremamente controversos e condenados pela sociedade da época (e até mesmo da atualidade). Dessa maneira, mesmo no formato de texto-fonte, o autor precisou lapidar a apresentação de tal personagem, de modo que o mesmo não se configurasse repelente ao público o suficiente para afastar o interesse em relação à obra, e sim peculiar a ponto de tornar-se intrigante. Tal empreitada mostra-se em geral eficaz, como ressalta Lionel Trilling, um dos defensores do romance em 1958:

E nos encontramos por demais chocados ao perceber que, ao longo da leitura do romance, chegamos virtualmente a corroborar com a violação que ele apresenta [...] fomos seduzidos à cumplicidade na violação, porque permitimos que nossas fantasias aceitassem o que sabemos ser revoltante.60 (TRILLING, 1958, p. 14).

59 I was soon to be taken out of the car (Hi, Melmoth, thanks a lot, old fellow) [...].

60 And we find ourselves the more shocked when we realize that, in the course of Reading the novel, we have come virtually to condone the violation it presents [...] we have been seduced into conniving in the violation, because we have permitted our fantasies to accept what we know to be revolting.

Esta dificuldade de posicionamento em relação a H.H. talvez seja uma das grandes qualidades do romance, que, em sua tradução para um formato diferente, demandou igual arranjo. Um dos recursos utilizados como ajuste na tradução para roteiro (e também na filmagem) foi a utilização da figura do narrador, conforme já explicitado. Nesta senda, é possível vislumbrar a utilização do narrador no texto-meta como alternativa aos recursos literários despendidos no texto-fonte, cujo efeito se mostrou através da aproximação e possibilidade de empatia do público pela figura de H.H. (a “humanização” do contraventor).

4.2 ESCOLHAS NA TRADUÇÃO DE LOLITA: ASPECTOS