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HYPOKEIMENA, KINÊSIS KAI TO HEN

RECONSTITUINDO A DÉCIMA PRIMEIRA APORIA

1.3 HYPOKEIMENA, KINÊSIS KAI TO HEN

De acordo com a reconstituição que temos proposto até aqui – a qual, não nos esqueçamos, assume os relatos de Aristóteles sem colocar em questão o valor histórico deles – a noção de Um entrou em cena como uma decorrência dos princípios materiais introduzidos pelos milesianos. Na medida em que a Água, o Ar e o Fogo foram concebidos como princípios imanentes de todas as coisas, a filosofia encontrou todo o ensejo de que precisava para formular a tese de que tudo é um. Com efeito, se todas as coisas são fundamentalmente uma única e mesma coisa, a saber, Água, Ar ou Fogo, então, de fato, tudo é um. Assim, a noção de “um” – que, a princípio, atuava como uma espécie de quantificador singular em enunciados do tipo “todas as coisas são fundamentalmente uma (coisa): a matéria comum que as constitui” – foi promovida a termo conceitual, de modo a designar precisamente aquela única e mesma coisa que era pensada como princípio material, imanente em todas as coisas. A partir daí, a questão “o que é o Um?” ganhou sentido e obteve como possíveis respostas uma lista de denotata do termo “Um”. Na doutrina de Tales, o denotatum era a

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De fato, seria oportuno incluir o exame de alguns textos da Física, nos quais Aristóteles trata da noção de movimento (por exemplo, Física V 4, 227b 4ss.), bem como de alguns textos de Sobre o Céu, em que Aristóteles se pronuncia inúmeras vezes sobre o movimento circular, ao qual parece fazer rápida alusão em Iota 1 (1052a 26−28).

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Água, na de Anaximandro, o Ilimitado, na de Anaxímenes, o Ar, na de Heráclito, o Fogo, e assim por diante.

Por sua vez, na medida em que os princípios introduzidos pelos milesianos traziam de arrasto uma certa imobilidade11 que era incompatível com os aspectos dinâmicos e ordenados (kalôs) da realidade, surgiu a necessidade de buscar um novo princípio, um que fosse capaz de explicar o dinamismo organizado exibido por certos entes, ou ainda, a interação inteligente dos elementos, a qual, convém enfatizar, estava fora do alcance explicativo da natureza pura e simples dos hypokeimena e exigia a introdução de um princípio motor. Aristóteles aponta Anaxágoras e Empédocles como os principais proponentes de princípios de tal natureza, princípios que foram concebidos justamente para dar conta desse déficit explanatório que se instalou entre a imobilidade que resultava dos hypokeimena e o dinamismo organizado da realidade. Esse déficit explanatório transformou a noção de Um, que passou a ser pensada não apenas como um conceito cuja lista de denotata se perfazia por princípios materiais (Água, Ar, Fogo, etc.), mas como um princípio que deveria explicar a unidade e a ordenação que sobrevinha aos hypokeimena e que não podia ser explicada pelas características que lhes eram próprias. Assim, podemos dizer que o Um passou a designar um princípio motor, responsável pela promoção da unidade organizada que acometia os elementos constituintes dos entes mais complexos.

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Digo “uma certa imobilidade” porque, de fato, não se trata de uma imobilidade completa e absoluta (afinal, os corpos simples também possuem movimentos que lhe são próprios), mas daquela imobilidade que, em Metafísica Alpha, é pensada como resultado teórico indesejado, proveniente dos princípios materiais e que é evitada precisamente através da introdução dos princípios de movimento, os quais tinham por destino explicar, não qualquer movimento, mas os movimentos ordenados, belos, etc.

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Esse percurso dá sinais de ser corroborado por algumas passagens nas quais, de fato, Aristóteles relaciona o conceito de Um com a noção de movimento. Em Metafísica Delta 6, por exemplo, Aristóteles parece se referir aos entes naturais quando descreve os entes providos de unidade no sentido mais adequado do termo. Segundo Aristóteles, “[...] as coisas que são contínuas (synechês) por natureza possuem mais unidade/são mais ‘um’ do que aquelas que são contínuas por técnica. E contínuo se denomina aquilo (considerado em si mesmo) cujo movimento é um e não pode ser de outro modo” (1016a 4ss.). É bom lembrar que o capítulo 6 de Metafísica Delta, do qual retiramos essa passagem, é dedicado inteiramente à noção de hen. Além do mais, o capítulo 1 do Livro Iota da Metafísica não fica para trás no que diz respeito a essa ligação entre as noções de hen e de movimento. Nele, Aristóteles também insiste nessa vinculação entre unidade e movimento. Entre as coisas que são ditas “um” por si mesmas, Aristóteles aponta o contínuo (synechês), “[...] sobretudo o que é contínuo por natureza, e não por contato, nem por amarração [...]” (1052a 19ss.), e acrescenta que, entre tais itens, “[...] possui mais unidade/é mais ‘um’ aquele cujo movimento é mais indivisível e mais simples [...]” (1052a 20ss.). Algumas linhas à frente, Aristóteles aponta “[...] o todo que possui uma configuração e uma forma, sobretudo se for algo de tal tipo por natureza [...] e se possuir em si mesmo a causa pela qual ele mesmo é contínuo. E há de ser de tal tipo porque seu movimento é único e indivisível pelo lugar e pelo tempo”. Na imediata seqüência, ainda acrescenta, em tom conclusivo: “[...] por conseguinte, é evidente que, se algo possui por natureza o primeiro princípio do movimento primeiro (quero dizer: da locomoção, a circunvolução), essa grandeza será primeiramente uma” (1052a 26−28). Outra associação entre as noções de

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“um” e de “movimento” aparece em Metafísica Delta 26, texto dedicado à noção de “todo” (holos) e no qual Aristóteles nos diz que “[...] algo é contínuo e limitado, quando há uma só coisa constituída de muitas [...]”, e acrescenta: “Entre esses casos, são de tal tipo as coisas por natureza, mais do que as que se dão pela técnica (como dissemos também a respeito do “um”, pois o todo é uma certa unidade)” (1023b 26ss.). Embora Aristóteles não faça, aqui, uma associação explícita entre as noções de hen e de movimento, o fato de descrever a noção de “todo” como sendo o contínuo (synechês) indica que a noção de movimento deve estar presente nos bastidores, já que o contínuo por natureza “possui mais unidade” na exata medida em que seu movimento é mais indivisível e mais simples (1052a 19ss.).

Tudo indica que aquilo que comporta unidade em sentido mais apropriado é também algo que possui movimento, o que nos faz crer que, de fato, o Um, na medida em que promove essa unidade que se revela indissociável do movimento, deve ser um princípio motor. Como essa unidade se realiza em sentido mais completo e apropriado nas substâncias, é sensato supor que o princípio motor capaz de promover essa unidade seja também o mais promissor no que diz respeito a figurar como sendo “o Um” entre os princípios. Talvez seja esse o caminho pelo qual devamos compreender o que Aristóteles prepara em Metafísica Iota 1 (1052a 33−34), precisamente no trecho em que, depois de apresentar os vários sentidos em que algo se diz “um” por si mesmo, conclui que “[...] será primeiramente um a causa do um para as essências”, como se dissesse que é mais digno do título de Um aquele

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princípio que é responsável por promover a unidade que é característica das substâncias12. Tratando-se especificamente das substâncias sublunares, podemos imaginar que essa unidade não seja outra senão aquela que podemos descrever como uma unidade orgânica dos seres vivos, constituída dos hypokeimena.

Já se sabe que Aristóteles explica essa unidade por meio de sua teleologia (cf. Angioni, 2006 e 2009). Nos capítulos 8−9 do Livro II da Física, Aristóteles não apenas apresenta sua teleologia, mas o faz assumindo como ponto de partida exatamente o insucesso dos princípios motores de Anaxágoras e Empédocles. Note-se que Aristóteles chega a manifestar uma certa decepção com o pouco uso que cada um deles faz, respectivamente, da Inteligência, em um caso, e dos princípios antagônicos Amor e Ódio, em outro caso, na tentativa de explicar aquilo que se manifesta ajustado nos entes. Segundo Aristóteles, “[...] mesmo se mencionam uma outra causa [além dos hypokeimena], abandonam-na tão logo a tenham tocado; um, o Amor e o Ódio, outro, a Inteligência” (198b 10ss.). Essa decepção se constata também em Metafísica Alpha 4, em passagem que já tivemos a oportunidade de citar. De fato, em tal texto, Aristóteles nos relata que Anaxágoras e Empédocles “[...] quase não se utilizam delas [sc. as causas motoras], a não ser em pequena medida. Anaxágoras utiliza-se ao léu da Inteligência em sua cosmogonia; isto é, quando tem impasse em saber por que causa algo se dá necessariamente, ele a arrasta, mas, nos demais casos, declara como causa do que vem a ser, em vez da Inteligência, qualquer outra coisa. Empédocles utiliza-se dessas causas mais do que ele, mas tampouco o faz suficientemente, nem

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Castelli (2010, p. 150) tem uma leitura diferente: “It is probably with respect to the characterization of universals as units for scientific knowledge that we must read Aristotle’s remark in X1 ‘in such a way that what causes substances to be one must be one in the primary sense’ […]”.

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encontra nelas coerência” (985a 10ss.). Até mesmo no diálogo Fédon, Platão traz um relato cujo tom revela um certo desapontamento com o pouco uso que Anaxágoras faz da Inteligência na tentativa de explicar as feições ordenadas dos entes. Na tradução de Paulo F. Flor (in Os Pensadores - Pré-Socráticos, 2000), Sócrates diz o seguinte: “Ora, dessa maravilhosa esperança, ó companheiro, logo me afastava, quando prosseguindo na leitura vejo que o homem [sc. Anaxágoras] não fazia uso do espírito, nem o assinalava em certas causas para ordenar as coisas, mas sim o ar, o éter, a água e muitas explicações desconcertantes” (97b).

Todo esse desapontamento nos faz ver que havia razoável expectativa de que os princípios motores de Anaxágoras e Empédocles pudessem explicar o modus operandi de natureza organizada que certas realidades exibiam. Essa leitura é corrobora no capítulo 4 de Metafísica Alpha, em passagem na qual Aristóteles tece alguns comentários sobre o que ele próprio relatou no último parágrafo do capítulo anterior, a saber, a introdução de um princípio de movimento. Segundo Aristóteles, ao lado de Anaxágoras, Empédocles e Hesíodo, até mesmo Parmênides teria proposto um princípio motor, precisamente o amor (erôta), como “[...] ‘primeiro de todos os deuses’ [...], como sendo preciso que exista entre os entes uma causa que possa mover e congregar (kinêsei kai synaxei) as coisas” (984b 23ss.). Em seguida (984b 32ss.), Aristóteles nos oferece mais um relato da doutrina de Empédocles e não deixa dúvidas de que o princípio de movimento proposto por ele, o Amor, tinha por destino explicar, não um movimento qualquer, mas sim um movimento de natureza organizada. Vejamos o texto:

54 ἐπεὶ δὲ καὶ τἀναντία τοῖς ἀγαθοῖς ἐνόντα ἐφαίνετο ἐν φύσει, καὶ οὐ µόνον τάξις καὶ τὸ καλὸν ἀλλὰ καὶ ἀταξία καὶ τὸ αἰσχρόν, καὶ πλείω τὰ κακὰ τῶν ἀγαθῶν καὶ τὰ φαῦλα τῶν καλῶν, οὕτως ἄλλος τις φιλίαν εἰσήνεγκε καὶ νεῖκος, ἑκάτερον ἑκατέρων αἴτιον τούτων. εἰ γάρ τις ἀκολουθοίη καὶ λαµβάνοι πρὸς τὴν διάνοιαν καὶ µὴ πρὸς ἃ ψελλίζεται λέγων ’Εµπεδοκλῆς, εὑρήσει τὴν µὲν φιλίαν αἰτίαν οὖσαν τῶν ἀγαθῶν τὸ δὲ νεῖκος τῶν κακῶν· ὥστ’ εἴ τις φαίη πρότον τινὰ καὶ λέγειν καὶ πρῶτον λέγειν τὸ κακὸν καὶ τὸ ἀγαθὸν ἀρχὰς ’Εµπεδοκλέα, τάχ’ ἂν λέγοι καλῶς, εἴπερ τὸ τῶν ἀγαθῶν ἁπάντων αἴτιον αὐτὸ τἀγαθόν ἐστι [καὶ τῶν κακῶν τὸ κακόν].

Por outro lado, como os contrários das coisas boas também estavam presentes de modo manifesto na natureza (isto é, não apenas ordem e beleza [taxis kai to kalon], mas também desordem e feiúra [ataxia kai to aischron]), e as coisas ruins [ta kaka] eram mais numerosas que as coisas boas [tôn agathôn], assim como as feias [ta phaula] eram mais numerosas que as belas [tôn kalôn], alguém, deste modo, introduziu Amizade e Ódio; cada um deles como causa respectiva dos opostos. De fato, se alguém acompanhar e compreender pelo pensamento e não por aquilo que Empédocles balbucia, descobrirá que a Amizade é causa das coisas boas [tôn agathôn], e o Ódio, causa das coisas ruins [tôn kakôn]. Por conseguinte, se alguém disser que Empédocles de certo modo afirmou e afirmou pela primeira vez que o bem e o mal [to kakon kai to agathon] são princípios, plausivelmente dirá com acerto, dado que a causa de todas as coisas boas [tôn agathôn] é o que é bom em si mesmo (e a das ruins [tôn kakôn], o mal).

Essa passagem, uma vez mais, nos indica que a introdução de um princípio de movimento, tal qual Inteligência ou Amor, não tinha por propósito explicar um movimento qualquer, mas sim um tipo de movimento que se revela provido de organização e beleza, e que, por isso mesmo, superava a capacidade explanatória dos movimentos provenientes dos princípios materiais que precederam à chegada dos princípios motores – tal como relata

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Aristóteles nos capítulos 3 e 4 de Metafísica Alpha. Embora a noção de movimento não apareça de modo explícito no texto citado, podemos crer que ela ainda se faz presente, sobretudo porque o Amor (e, em certo sentido, também o Ódio) é um princípio de movimento. Certamente, aquilo que Aristóteles quer enfatizar no trecho acima é que Empédocles introduziu princípios opostos porque julgou que um princípio que explicasse apenas os aspectos ordenados da realidade seria deficitário justamente por não explicar aqueles aspectos da realidade que são desprovidos de organização. Era isso o que ocorria na cosmologia de Anaxágoras, na qual não há um princípio capaz de explicar a desordem, mas apenas a ordem. No entanto, o fato de não haver menção explícita à noção de movimento de modo algum a coloca fora de cena. Pelo contrário, na medida em que a passagem ainda trata de princípios de movimento, devemos lê-la como um relato que pressupõe a noção de movimento e, mais do que isso, como um relato que a associa às noções de ordem, beleza e bem. É assumindo essa associação que Aristóteles dirá, mais à frente, que “[...] aqueles que propõem a Inteligência (Nous) ou o Amor (Philia) consideram tais causas a título de Bem (agathos); no entanto, não as propõem como se algo fosse o caso ou viesse a ser em vista delas, mas como se os movimentos procedessem delas” (988b 6ss.). Note-se que, ao criticar o fato de os princípios motores de Anaxágoras e Empédocles serem pensados como causas das quais procedem os movimentos e não como causas em vista das quais os movimentos se dão, Aristóteles dá indício de que o seu próprio princípio de movimento (supondo que ele tenha proposto um) atuará como uma causa final (um princípio teleológico), em vista da qual os movimentos dos entes serão executados. Ainda não é preciso aprofundar esse assunto. Por ora, limitemo-nos a dizer que, no relato de 984b

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32ss., citado há pouco, Aristóteles nos revela que, para Empédocles, não bastava introduzir um princípio de movimento que explicasse a mobilidade ordenada da realidade, como o fez Anaxágoras ao introduzir a Inteligência, mas era preciso também introduzir um princípio de movimento que explicasse a mobilidade desordenada. O resultado disso é o par de motores opostos, Amor e Ódio.

No que diz respeito aos nossos interesses mais imediatos, convém enfatizar, para concluir esta seção, que há uma forte ligação entre movimento e unidade, ligação que se dá sobretudo por meio de noções tais quais eu, kalos, agathos, taxis, etc., que apontam para aspectos da realidade que são assumidos como explananda para os quais os princípios de movimento entram em cena. Assim, os movimentos para os quais Anaxágoras e Empédocles propuseram princípios que os explicassem foram pensados por Aristóteles como processos organizados, cujos resultados eram tipos de unidades que se realizavam pela interação altamente ordenada dos hypokeimena que as constituíam, interação que, na opinião de Aristóteles, devia envolver finalidade teleológica e que, por isso mesmo, não podia ser reduzida à natureza pura e simples dos hypokeimena (cf. Física II 8−9). O promotor dessa unidade, em última instância, parece ser descrito como sendo o Um, de modo que a inclusão da Inteligência e do Amor entre os candidatos ao título de Um na Aporia 11, a partir de agora já se vê mais bem justificada, muito embora, conforme apontamos acima, Aristóteles tenha desqualificado tais princípios, na medida em que não atuam propriamente como princípios teleológicos.

Pois bem, se, na cosmologia de Anaxágoras, o papel de Um foi concedido, por Aristóteles, à Inteligência, e, na de Empédocles, ao Amor, o que diremos desse papel na filosofia (ou

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cosmologia) do próprio Aristóteles? Teria ele também proposto um princípio cosmológico que promova essa unidade? Supondo que Aristóteles tenha proposto um tal princípio, qual seria ele, isto é, o que seria o Um de Aristóteles? Além do mais, qual seria a relação entre esse princípio cosmológico e a sua teleologia natural? Todas essas questões interessam ao presente estudo. Porém, a última delas, em especial, envolve dificuldades que ainda estão fora do alcance explicativo dos resultados a que chegamos. Por isso, ela será deixada de lado. Assim, concentraremos esforços nas demais questões citadas acima.

Na próxima seção, passaremos a reconstituir a outra perspectiva rivalizada na Décima Primeira Aporia, a saber, aquela inaugurada pelos Pitagóricos e endossada por Platão.