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Iconografia enquanto comunicação política e património cultural

REVOLUCIONÁRIO (1974-1975)

1. Iconografia enquanto comunicação política e património cultural

O campo da comunicação política apresenta-se como um guarda-chuva de grande amplitude e envolve aspetos como a cultura, a sociedade, a política, a economia, a psicologia e a história (Ryfe, 2001). As reflexões sobre o papel da comunicação política ocupam há muito a atividade de pensadores. No século IV a.C., a obra de Aristóteles aborda o estudo sistemático de diferentes ramos do conhecimento e confere destaque a disciplinas como a retórica e a política. As questões da comunicação, do discurso e da política na sua dimensão individual (ética) e coletiva (doutrina moral social) encontram no filósofo grego um importante trampolim intelectual. Mas é a partir de meados da última centúria que se começam a definir as linhas concetuais que conferem forma aos estudos da comunicação política tal e qual os conhecemos hoje. A evolução dos sistemas políticos e as dinâmicas de governação dos Estados tornam-se sempre mais relevantes a partir do momento em que determinados acontecimentos adquirem impacto profundo no modo de conceber as campanhas eleitorais (Nimmo, & Swanson, 1990) e as ações dos governos.

A comunicação política é, no século XXI, um conceito indispensável para governos, partidos, movimentos, jornalistas, especialistas de comunicação e cidadãos, sendo que o debate em torno do seu conteúdo tem suscitado várias perspetivas. Parece, no entanto, consensual que a comunicação política consiste num processo que apresenta diferentes dispositivos de enunciação e protagonistas (Mesquita, 2003), com personalizadas escalas de ação, mas não autónomas, em que a relação com o acontecimento e o seu significado e utilização estratégica se processam em patamares distintos. Brian McNair (2011) e Gianpietro Mazzoleni (1998) sublinham a intencionalidade de um processo comunicativo sobre política que abarca todas as formas de comunicação realizadas por atores do campo político com determinados objetivos (políticos, especialistas de comunicação e sondagens), bem como a

comunicação dirigida a esses atores por outros não políticos (eleitores, jornalistas,

opinion makers). Se os atores políticos e os meios de comunicação cedo se constituem

no objeto de estudo privilegiado e a coluna vertebral do conceito (Nimmo, & Swanson, 1990), a categoria dos atores não políticos encontra-se, também, no centro dos interesses de alguns dos mais proeminentes historiadores da comunicação política (Herbst, 1994; Peters, 1999, 2005; Schudson, 1998). Essas duas categorias de atores são o pilar de um debate político que não se esgota, por outro lado, no espaço público, remetendo, ainda, para o campo privado das discussões em cafés, das negociações à porta fechada de governantes ou das sigilosas fontes de informação que alimentam o trabalho dos jornalistas (McNair, 2011, p. 4).

Em suma: a comunicação política abrange as esferas pública e privada e todos os dispositivos de enunciação do discurso político (cartazes, desdobráveis, jornais, televisão, internet, redes sociais...) verbal (ou enunciados escritos) e não verbal, como signos visuais derivados da roupa, maquilhagens, gestos e, entre outros, artefactos vários (Mazzoleni, 1998, p. 13; Maarek, 2002, p. 18; McNair, 2011, p. 4). O campo não verbal sugere, deste modo, mensagens que assumem elementos semânticos extralinguísticos, tais como liturgias, ritos secularizados – ingredientes musicais, saudações, marchas militares, toponímia (José Canel, 1999; Mota Oreja, 2001) – ou, por exemplo, cartoons, caricaturas, fotomontagens ou imagens plásticas.

Os desenhos satíricos e humorísticos, ou de imprensa, podem ser extremamente ricos do ponto de vista das mensagens políticas, sobretudo num período como o da transição para a democracia em Portugal. A proliferação incontrolada de imagens comunicantes constitui, efetivamente, uma das mais sugestivas particularidades do 25 de Abril de 1974 e do período revolucionário subsequente (PREC). A linguagem visual na sua dimensão configurativa e cromática prolonga o sentido das mensagens políticas e amplia as formas de intervenção no espaço público. Banda desenhada, imagens plásticas, cartoons, fotomontagens e caricaturas enformam todo um conjunto de elementos expressivos que testemunham a nova ordem comunicacional em Portugal. Trata-se de uma heterogénea emissão discursiva impossível de alimentar no tempo estadonovista porque a censura asfixiava e a iniciativa política era reduzida.

O ângulo de abordagem escolhido, entendido enquanto esforço para compreender os comportamentos, as ações, os dispositivos de enunciação e os acontecimentos, adquire verdadeira pertinência uma vez que a história, com nota David Ryfe (2001), não tem merecido o estatuto de campo de estudo, institucionalizado e

reconhecido, no âmbito da comunicação política. Em History and political

communication: an introduction, Ryfe (2001) constata que as revistas científicas de

comunicação política não incluem, normalmente, trabalhos históricos e os profissionais desta área não reconhecem os métodos históricos como válidos para a disciplina.

Ancorada na perspetiva histórica da comunicação política, esta reflexão enquadra no património cultural as representações gráficas e as imagens plásticas veiculadas aquando da Revolução Abril. Por património cultural entende-se o conjunto de elementos, objetos ou símbolos, religiosos, culturais e ideológicos, do individual ao coletivo, do material ao intangível, de um passado mais remoto a um passado mais recente (Prats, 1997, 2012; Silva, 2000). Determinados processos políticos tornam-se hegemónicos e estabelecem as fronteiras do património cultural, uma vez que conseguem representar simbolicamente uma identidade através de uma elite que, por sua vez, determina o imaginário coletivo (Silva, 2000). Contrariamente, a Revolução de Abril não se desenvolve em sentido único sob a liderança de uma determinada elite, assistindo-se à emergência de diversas identidades sociopolíticas e culturais que, lutando entre si no quadro de relações de poder, adquirem, como refere Woodward (2000, p. 8), sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais são representadas. As imagens plásticas e os desenhos satíricos e humorísticos, ou de imprensa, são, no Portugal revolucionário do biénio 1974-1975, um instrumento ao serviço dessas identidades sociopolíticas e culturais, nomeadamente a sociedade militar e a sociedade civil, bem como as correntes ou tendências políticas e culturais que as atravessam.