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Características e sentidos das figurações heteromórficas em mosaicos hispano-romanos

1 – FIGURAÇÕES TERATOMÓRFICAS

1.1 – GEMINAÇÕES

1.1.1 – Geminações humanas

– GERIÃO

Gerião apresenta uma morfologia antropomórfica com teratomorfismo por geminação siamesa tripla. As diferentes versões literárias pagãs contemplam diversas manifestações fisionómicas deste fenómeno, que podem confiná-lo à cabeça tricefalia (como originalmente referiu Hesíodo) – ou estendê-lo ao resto do corpo – desdobramento de membros (como posteriormente indicaram Apolodoro e Vergílio):

Crisaor gerou o tricéfalo Gerião,

Depois de se unir a Calírroe, filha do ilustre Oceano.

HESÍODO, Teogonia, 287-288

Gerião tinha um corpo constituído por três homens fundidos num só da cintura para cima, e divididos entre três desde as costas e os músculos.

APOLODORO, Biblioteca, II, 5.10647

*…+ uma espectral figura de três corpos.

VERGÍLIO, Eneida, VI, 289

647 Tradução do castelhano por Cátia Mourão, a partir de APOLODORO, 2004, p. 109.

Pormenor de kylix de figuras negras com Hércules combatendo Gerião. 510 a.C. Museu d’Arqueologia de Catalu- nya. Barcelona.

Porém alguns autores, como São Justino (c. 100 – 165 d.C.), negam a trigeminação e entendem-na como uma metáfora que expressava a estreitíssima união de três irmãos, que embora tivessem cada um o seu reino defendiam, de igual modo, os territórios fraternos.648 Também Santo Isidoro de Sevilha (570 – 636 d.C.) perfilhou esta

interpretação e escreveu que «Gerião, rei da Hispânia, de quem se narra que teria sido gerado com três corpos; na realidade, tratou-se de três irmãos entre os quais existia tamanha concórdia, que em três corpos havia como que uma só alma.»649Por sua vez,

Sérvio Gramático (séc. VI d.C.) acreditava que a suposta geminação tripla de Gerião era apenas uma alegoria ao poder de um único soberano sobre três reinos: Hispânia, ilhas Baleares e Ebuso.650 Para a maioria, no entanto, Gerião seria, de facto um “monstro

humano trigeminado” que governava a ilha Erítia651, localizada «en las proximidades de

Cádiz, *…+ el extremo del mundo conocido, junto al Océano»652, e que possuía uma

vasta manada de bovídeos ruivos, guardados pelo pastor Eurítion e seu cão Ortos (irmão de Cérbero).

Não obstante as pontuais divergências, todos os autores literários e artísticos consideraram que Gerião era um símbolo bélico de defesa e, por conseguinte, um perigo latente para quem ousasse invadir os seus domínios ou tomar-lhe os pertences. Com efeito, no cumprimento do seu décimo Trabalho653, Hércules teve de roubar o

gado do portentoso guerreiro e viu-se em sérias dificuldades. Depois de aniquilar os guardadores, defrontou pessoalmente Gerião e travou com ele um combate que poderá ser considerado desigual, já que este possuía a força e o raciocínio de três

648

JUSTINO, XLIV, 4,16 (apud BLÁZQUEZ MARTÍNEZ, 1983, p. 28).

649 ISIDORO DE SEVILHA, Etimologias, XI, 3 (apud ECO, 2007, p. 41).

650 SÉRVIO, Comentário à Eneida, VII, 662 (apud BLÁZQUEZ MARTÍNEZ, 1983, p. 25).

651 BLÁZQUEZ MARTÍNEZ, 1983, p. 21. Na Orla Marítima, Rufo AVIENO localiza-a no Golfo Tartésico.

(AVIENO, apud BLÁZQUEZ MARTÍNEZ, 1983, p. 24)

652

BLÁZQUEZ MARTÍNEZ, 1983, p. 37.

653 APOLODORO, Biblioteca, II, 2.10. José Maria BLÁZQUEZ MARTÍNEZ pensa que Gerião seria um rei-

pastor autóctone da Hispânia agrícola e pastoril, especificamente da região de Tartessos, (BLÁZQUEZ MARTÍNEZ, 1983, p. 31 e 32) e defende que «probablemente la riqueza ganadera del sur de Híspanla pudo influir algo en la localización en el sur del robo de los rebaños de los toros. Esta interpretación fue ya seguida por Estrabón (III, 169)» (BLÁZQUEZ MARTÍNEZ, 1983, p. 38).

homens, ao passo que Hércules contava somente com as valências próprias de um único homem. Neste sentido, a efectiva vitória do herói reveste-se de uma relevância maior e exalta a sua coragem e bravura.

Consoante os autores, Gerião terá mesmo sido morto por Hércules (como referiu Hesíodo654) ou por Alcides (como disse Vergílio655). Em qualquer das circunstâncias

ressalta a mesma ideia de heroicidade enfatizada pela vitória conseguida numa situação de desvantagem.

Nas artes figurativas, a iconografia de Gerião torna por demais evidente a inferioridade numérica de Hércules. No entanto, as várias representações podem sugerir diferentes concepções sobre as mais-valias do primeiro, mostrando-o ora como uma única figura com desdobramento triplo da cabeça e dos membros, ora como uma conjugação de três corpos aparentemente unidos pela perspectiva. Na Península Ibérica foram encontrados dois mosaicos que apresentam estas duas soluções visuais e que integram as únicas representações ibéricas da luta entre Hércules e Gerião656, contextualizadas

nos doze trabalhos do herói.

No primeiro pavimento, conservado in situ na Villa de Marbella (Cártama, Málaga)657,

Gerião apresenta-se como uma criatura teratomórfica siamesa. Surge de perfil, ostenta três cabeças, três braços e três pernas e encontra-se sozinho num dos quinze rectângulos dispostos em torno de Hércules. A primeira e a última cabeças apresentam graves ferimentos, sangram e estão caídas, como que sem vida. Só a do meio se mantém erguida e vigilante, comandando um corpo que prossegue em movimento de corrida. Esta figuração exibe um monstro visivelmente enfraquecido pela perda de duas partes capitais do seu corpo, mas ainda vivo e capaz de manter a luta, continuan-

654

«A esse matou-o o forte Héracles, / Junto dos seus bois de patas curvas, em Eriteia rodeada pelo mar.» (HESÍODO, Teogonia, 288-290)

655 «Alcides, o grande justiceiro, / orgulhoso da morte e dos despojos / do triplo Gerião.» (VERGÍLIO,

Eneida, 321-323)

656

BLÁZQUEZ MARTÍNEZ, 1983, p. 36.

do a constituir uma ameaça real para a vida singular do herói. Esta excepcional – e claramente vantajosa –

capacidade sobrehumana

demonstra-se, contudo,

insuficiente perante a força e a astúcia de Hércules.

No segundo exemplar, ori- undo da Líria (Valência) e ex- posto no Museu Arqueológico Nacional658, Gerião parece resultar da união perspética

de três seres idênticos. Ostenta três cabeças e cinco ou seis pernas, parecendo ter também dois ou três troncos (os braços estão ocultados pelo escudo), e divide o emblema com o herói. Este fixa o inimigo nos olhos (demonstrando uma atitude frontal, nobre e destemida, portanto virtuosa), agarra-lhe o escudo com a mão esquerda e com a mão direita prepara-se para lhe desferir um golpe de clava (o que desgarra da lenda, dado que Gerião foi abatido com flechas). A ausência de trajo na figura de Hércules – que reduz a personagem à sua essência e simultaneamente realça a sua desprotecção e a sua valentia, a sua vulnerabilidade e a sua robustez física demarca-o de Gerião, que por sua vez enverga trajo bélico completo (escudo, arma, túnica curta e elmos gregos – pormenor este que atesta a origem helénica do trigémeo659). Nesta representação sobressai a vitória do “herói humano” no confronto

corpo a corpo com um “monstro humano” triplamente mais dotado e apetrechado do que ele.

658 Vide VOLUME II, p. 193 e 194.

659 Sobre esta origem, uide BLÁZQUEZ MARTÍNEZ, 1983, p. 37. O autor acrescenta que «Estesícoro de

Himera, la colonia griega muy en contacto con el mundo semita siciliano, es el causante de la localización del mito de Gerión en las proximidades de Cádiz».

À esquerda: pormenor de mosaico com Gerião. Villa de Marbella, Málaga (Bætica). À direita: pormenor de mosaico com Gerião. Líria (Tarraconensis).

1.1.2 – Geminações não humanas

– CÉRBERO

Cérbero apresenta uma morfologia zoomórfica de canídeo com teratomorfismo por geminação siamesa múltipla de manifestação policéfala. A quantidade de cabeças é variável, podendo chegar a cinquenta (como referiu Hesíodo) ou reduzir-se a três (como apontou Vergílio660, entre outros):

A ela [Equidna] – dizem – se uniu com amor Tífon, *…+ e ela concebeu e deu à luz filhos ferozes. Primeiro nasceu o cão Ortos, que foi de Gerião;

*…+ O sanguinário Cérbero, o cão de voz de bronze de Hades, Com cinquenta cabeças, implacável e fero *…+

HESÍODO, Teogonia, 306-312

Alguns autores, como o grego Apolodoro e os romanos Ovídio e Vergílio, também conceberam Cérbero com um hibridismo por justaposição zoomórfica de répteis na cauda e no dorso661, ou no pescoço662. No entanto, esta situação constituiu uma

recriação literária hiperbólica sem expressão nas artes figurativas, talvez em virtude da excessiva complexidade visual que tal solução provocaria e da ineficácia do seu averbamento em peças de dimensões assaz reduzidas.

Irmão de outras criaturas ctónicas monstruosas e cruéis, como o leão de Nemeia, a Esfinge, a Quimera, a Hidra de Lerna e o cão Ortos (morto por Hércules no décimo segundo Trabalho, contra Gerião), Cérbero tinha a ingrata função de guardar a entrada

660 VERGÍLIO, Eneida, VI, 417 e Geórgicas, IV, 483-484. 661 APOLODORO, Biblioteca, II, 5.12.

662 OVÍDIO, Metamorfoses, X, 21-22: «as três goelas desse vosso monstro, / o rebento de Medusa,

cobertas de víboras como pêlos»; e VERGÍLIO, Eneida, VI, 419: «o enorme Cérbero faz ressoar estes reinos com um latido que sai de três fauces. A este *…+ já se lhe eriçavam os pescoços com cobras».

Pormenor de topo direito de sarcófago com Hades e Cérbero. Finais do Séc. II d.C.. Santa Pola (Elx). Museu d’Arqueologia de Catalunya. Barcelona.

do mundo subterrâneo, reino do deus Hades e de sua esposa Perséfone, reservado aos mortos663. Certos autores, como Hesíodo664, afirmavam que não se opunha à entrada

dos vivos, mas que impedia o regresso destes ao mundo superior, sob ameaça de morte por antropofagia, condenando-os a uma vida errante no mundo dos mortos ou a uma morte efectiva. Outros autores, como Vergílio665, insinuavam que só permitia a

entrada de mortos, pelo que ele mesmo matava todos os vivos que tentassem entrar no seu território.

Pesando embora as divergências de opinião sobre os critérios de selecção e de actuação deste monstro, Cérbero sobressai como uma personagem antitética e, de certo modo, apotropaica, que simultaneamente ameaça e protege, na medida em que assegura a separação entre os dois mundos e contribui para o equilíbrio universal, baseado na harmonia dos opostos. É com esta simbologia que o animal mítico surge, por vezes, na arte funerária. No entanto, vários heróis lograram ludibriá-lo quando se aproximaram do antro funesto, colocando, assim, em risco esse equilíbrio: Eneias foi ajudado pela sibila de Cumas, que adormeceu Cérbero com um pedaço de carne impregnado de narcótico soporífero666; Orfeu conseguiu encantá-lo tocando a sua

lira667; Hércules capturou-o no seu décimo primeiro Trabalho668.

663 Consoante os autores, o destino dos mortos era variável. Para Vergílio, por exemplo, era o Orco

(VERGÍLIO, Geórgicas, IV e VERGÍLIO, Eneida, II, 398; IV, 242 e 699; VI, 273; VIII, 296; IX, 527 e 785), que se dividia em várias zonas destinadas a diferentes defuntos, considerados de acordo com os actos que tinham praticado em vida e com o tipo de ritual fúnebre que receberam. Para outros autores havia também as Ilhas dos Afortunados, destinadas aos defuntos que haviam levado uma vida virtuosa (HERÓDOTO, III, 26, 7-8, apud BAUZÁ, 1993, p. 102-110. Vide também ELIANO, História dos Animais, XII, 6 e MOURÃO, 2008, p. 18-21, 55). A suposta existência destas ilhas era ainda contemplada no Séc. XIV, tal como comprova o Atlas Catalão (c. 1375, na Biblioteca Nacional de França), que as situa a Leste do Mar Cáspio.

664 HESÍODO, Teogonia, 769-773. 665 VERGÍLIO, Eneida, VI, 419-424. 666 VERGÍLIO, Eneida, VI, 419-422. 667

VERGÍLIO, Geórgicas, IV, 483-484. Vide também GRIMAL, 1992, p. 83.

Fazendo uso da inteligência, da arte ou da força, todos estes heróis transgrediram uma regra natural. Estas transgressões, que se afirmavam como actos de hýbris, foram vitórias efémeras e de sabor amargo, pois acabaram por se revelar negativas para os seus protagonistas: Eneias sofreu ao ver Dido virar-lhe as costas669 (a rainha líbia que se

suicidara quando o herói a abandonou para cumprir o seu desígnio fundador670); Orfeu

viu a amada Eurídice morrer pela segunda vez (como consequência de ter olhado para trás, quebrando assim a promessa que fizera de olhar sempre em frente)671; Hércules

foi obrigado a levar de volta Cérbero para as portas do mundo inferior (porque Euristeu sentiu medo da alimária) 672. Ainda que as consequências sofridas pelos heróis

não tenham sido fatais para as suas vidas, foram certamente terríveis para as suas emoções.

Mais do que um símbolo da temível fronteira entre a Vida e a Morte, este monstro animal funcionava, pois, como advertência para as consequências das transgressões humanas. Talvez por essa razão tivesse sido considerado como uma divindade por alguns, categoria essa que Cícero rejeitou673. A espécie canina à qual pertence (ainda

que na forma monstruosa desdobrada) parece aludir à obediência e à fidelidade que caracterizam os cães, porquanto Cérbero se revela um insigne servo dos seus donos subterrâneos e, ao mesmo tempo, um dos protectores da ordem cósmica.

Cérbero está representado em dois mosaicos hispânicos, sendo que em ambos integra composições com a ilustração dos Doze Trabalhos de Hércules e apresenta sempre um teratomorfismo caracterizado pela triplicação de cabeças (de acordo com as versões extra-teogónicas), sem qualquer indício de hibridismo (em conformidade com a versão teogónica).

669

VERGÍLIO, Eneida, VI, 446-476.

670 VERGÍLIO, Eneida, I-IV.

671 APOLODORO, Biblioteca, I, 3.2; VERGÍLIO, Geórgicas, IV, 485-506; OVÍDIO, Metamorfoses, X, 60-64.

Vide também GRIMAL, 1992, p. 341.

672

GRIMAL, 1992, p. 83.

No primeiro mosaico, conservado in situ na

Villa de Marbella674, o

monstro ostenta três cabeças e duas patas dianteiras e tem a metade traseira do corpo parcialmente ocultada por uma caverna (indicativa da entrada subterrânea), da qual parece sair e à qual está preso por correntes e coleiras (demonstrativas da sua condição cativa). Todas as cabeças estão vigilantes e a ladrar, atestando o cumprimento das funções do animal que assim se afirma como eficaz guardião.

No segundo exemplar, oriundo de Líria (Valença) exposto no Museu Arqueológico Nacional 675 , Cérbero ostenta um único corpo, com número de membros

aparentemente regular (apesar da posição em que se encontra não permitir a leitura cabal dos dois membros traseiros) e três cabeças, estando apenas uma delas (a central) a ladrar, pormenor que denuncia o seu progressivo amansamento. Sentada à entrada da caverna, a criatura tem a cabeça central acorrentada (em conformidade com a descrição de Ovídio676) e é puxada pelo herói, que exibe a vigorosa nudez e a

característica pele de leão sobre os ombros. Este prende-a por uma trela, enquanto brame uma clava no ar, em jeito de ameaça. Nesta figuração sobressai o domínio físico que o “herói humano” exerce sobre o feroz “monstro animal”.

674 Vide VOLUME II, p. 179 e 180. 675

Vide VOLUME II, p. 193 e 194.

676 OVÍDIO, Metamorfoses, X, 65-66: «o cão do Estígio, o dos três pescoços, / acorrentado pelo do meio».

À esquerda: pormenor de mosaico com Cérbero. Villa de Marbella, Málaga (Bætica). À direita: pormenor de mosaico com Cérbero. Líria (Tarraconensis).

1.2 – GIGANTISMOS

1.21.1 – Gigantismos humanos

– POLIFEMO

Polifemo era um Ciclope e, como tal, caracterizava-se por uma morfologia antropomórfica com teratomorfismo por gigantismo e ciclocefalia.

*Da Terra e do Céu+ nasceram também os Ciclopes *…+ *…+ Eles eram, em tudo o resto, semelhantes aos deuses, mas tinham um único olho no meio da testa.

HESÍODO, Teogonia, 139-145

Apesar do rigor descritivo impresso na literatura, as represen- tações de Polifemo na arte figurativa do mosaico mostram usualmente o gigante com três olhos, em vez de um só, tal como se observa no emblema hispânico de Córdoba, no painel tunisino de El Djem e na composição italiana da Vila Romana del Casale, na Sicília. Ao contrário da visão monoftálmica, que constitui uma limitação de capacidades, esta multiplicação de olhos funciona como uma sobredota- ção da personagem pela superlativação dos seus poderes. Com efeito, os Ciclopes eram sempre apresentados como seres extremamente robustos, sendo que «em todas as suas obras havia força, violência e perícia»677. Ora a representação com maior quan-

tidade de olhos do que a normal compreende não só uma visão mais apurada, mas também uma superior aptidão para a vigilância e para a atenção. Esta extrapolação de sentidos aumenta o potencial de risco no Ciclope Polifemo e valoriza o desempenho heróico de quem o defrontava e vencia. Aliás, para além da superioridade física desta portentosa criatura, os heróis tinham ainda de enfrentar o seu terrível perfil psicoló- gico, marcado pela referida perícia e também pela índole maléfica, pois todos os Ciclopes eram «donos de um coração insolente»678 e cultivavam a arrogância e a sober-

677

HESÍODO, Teogonia, 146.

678 HESÍODO, Teogonia, 139.

Polifemo (com três olhos). Pormenor de mosaico com Ulisses e Polifemo. Séc. IV d.C. Vila del Casale. Sicília. Itália.

ba, achando-se melhores do que Zeus e os bem-aventurados679. Como se não bastasse,

estes monstros tinham modos rudes e hábitos primitivos, dado que viviam em grutas, alimentavam-se de carne crua – amiúde humana, o que constitui uma forma dupla- mente punível de antropofagia: o canibalismo –, eram socialmente desorganizados e sem lei680 (ainda que não fossem indigentes, pois dedicavam-se ao fabrico de armas681 e

à edificação das moradas de alguns deuses, como Ceres e Hades682) e praticavam actos

de hýbris contra os humanos, matando e comendo todos quantos se atrevessem a pisar os seus domínios683. Neste sentido, Polifemo e os seus congéneres encarnavam o

paradigma da correspondência entre a deformidade corporal, a distorção moral e a actuação imoral. No entanto, Homero realçou em Polifemo alguns hábitos que o tornavam diferente dos congéneres, pois, ao contrário deles, este dedicava-se à pastorícia, apascentava os animais, ordenhava-os, fabricava queijo e algumas alfaias queijeiras684, preferindo ainda viver isolado dos restantes monstros685. A primeira

diferença afigura-se-nos como um sinal de maior evolução relativamente aos demais Ciclopes, já que a pecuária e a manufactura são actividades mais pacíficas do que o fabrico de material bélico (obviamente ligado à guerra) e mais livre do que a construção de habitações para os deuses superiores (que denuncia uma inferioridade e um servilismo). Já a segunda característica parece-nos conter um certo paradoxo, uma vez que o isolamento social pode ser antiteticamente entendido como uma virtude, quando se destina à reflexão e ao afastamento de uma realidade demasiado material e perniciosa, ou como um defeito, quando denuncia uma incapacidade de

679 HOMERO, Odisseia, IX, 106 e 275-276: «Nós, os Ciclopes, não queremos saber de Zeus detentor da

égide, / nem dos outros bem-aventurados, pois somos melhores que eles.»

680 HOMERO, Odisseia, IX, 105 e 112. Sobre esta ausência de leis, uide MORGAN, 1984, p. 243-245. 681 VERGÍLIO referiu que fabricavam as armas dos deuses e de alguns heróis, como Eneias, no interior da

terra (VERGÍLIO, Eneida, VII, 416ss). CLAUDIANO confirmou esta última função dos Ciclopes (CLAUDIANO, O Rapto de Proserpina, I, 175 e 251). Vide também GRIMAL, 1992, p. 86 e p. 384.

682

CLAUDIANO, O Rapto de Proserpina, I, 238-239 e 114-118.

683 VERGÍLIO, Eneida, III, 991-1027.

684 HOMERO, Odisseia, IX, 216-223 e 237-251.

685 HOMERO contou que a maior parte dos Ciclopes não se dedicava à pastorícia nem à agricultura,

deixando o gado e as terras por cultivar (HOMERO, Odisseia, IX, 116-124). No entanto, afirmou que Polifemo «sozinho apascentava / os seus rebanhos» (HOMERO, Odisseia, IX, 187-188).

integração no seio de uma colectividade (que normalmente implica organização e legislação, situações inexistentes nos Ciclopes). Na verdade, Homero parece igualmente ter vacilado entre estas duas hipóteses, pois considerou que o facto de Polifemo não conviver com os outros fazia dele, por um lado, «um monstro medonho»686, e, por outro, um ser mais metódico, hábil e quase civilizado.

Algures no limbo entre a barbárie e a civilização, Polifemo seria diferente dos demais Ciclopes e, talvez por isso, os artistas tenham entendido representá-lo de forma tam- bém diversa dos seus congéres, dotando-o com mais olhos. No entanto, embora bene- ficiasse de uma visão mais ampla, Polifemo não tinha maior previdência do que os heróis que o defrontaram. Monstrando a discrepância entre as valências físicas e as capacidades intelectuais (num jogo de opostos entre o excesso de visão, enquanto sentido, e o defeito da previsão, enquanto raciocínio), o gigante deixou-se enganar por Ulisses, quando este regressou de Tróia com os companheiros, e bebeu o vinho que o herói lhe ofereceu, acabando por adormecer embriagado e vulnerável. Tendo previsto este desfecho, os troianos cegaram-no, triunfando neste episódio onde sobressai a valorização do raciocínio sobre a força e a vitória da astúcia sobre a estultícia687:

*Polifemo+ é gigantesco e toca as altas estrelas. *…+ Nutre-se das entranhas de infelizes e de sangue negro. *…+ Despedaçava contra uma rocha os corpos de dois dos nossos *…+; vi-o comer os membros que ressumavam sangue negro e as articulações quentes a serem esmigalhadas sob os dentes. Mas não foi impunemente que ele fez isto: Ulisses não tolerou tais coisas *…+. Furámos com um pau agudo o olho enorme, o único que tinha, profundamente situado sob a torva fronte, qual escudo argólico ou lâmpada de Febo, e finalmente vingámos com alegria as almas dos companheiros.

VERGÍLIO, Eneida, III, 991-1027

Era este o episódio que surgia parcialmente ilustrado no mosaico de Tarragona688, já muito lacunar à época da descoberta mas que então ainda preservava a figura do Ciclope, sentado numa rocha, com um carneiro a seu lado (que evoca a pastorícia),