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IDÉIAS E PRÁTICAS CORRENTES

A linguagem oral está presente no cotidiano e na prática das instituições de educação infantil à medida que todos que dela participam: crianças e adultos, falam, se comunicam entre si, expressando sentimentos e idéias. As diversas instituições concebem a linguagem e a maneira como as crianças aprendem de modos bastante diferentes.

Em algumas práticas se considera o aprendizado da linguagem oral como um processo natural, que ocorre em função da maturação biológica; prescinde-se nesse caso de ações educativas planejadas com a intenção de favorecer essa aprendizagem.

Em outras práticas, ao contrário, acredita-se que a intervenção direta do adulto é necessária e determinante para a aprendizagem da criança. Desta concepção resultam orientações para ensinar às crianças pequenas listas de palavras, cuja aprendizagem se dá de forma cumulativa e cuja complexidade cresce gradativamente. Acredita-se também que para haver boas condições para essa aprendizagem é necessário criar situações em que o silêncio e a homogeneidade imperem. Eliminam-se as falas simultâneas, acompanhadas de farta movimentação e de gestos, tão comuns ao jeito próprio das crianças se comunicarem. Nessa perspectiva a linguagem é considerada apenas como um conjunto de palavras para nomeação de objetos, pessoas e ações.

Em muitas situações, também, o adulto costuma imitar a maneira de falar das crianças, acreditando que assim se estabelece uma maior aproximação com elas, utilizando o que se supõe seja a mesma “língua”, havendo um uso excessivo de diminutivos e/ou uma tentativa de infantilizar o mundo real para as crianças.

O trabalho com a linguagem oral, nas instituições de educação infantil, tem se

restringido a algumas atividades, entre elas as rodas de conversa29. Apesar de serem

organizadas com a intenção de desenvolver a conversa, se caracterizam, em geral, por um monólogo com o professor, no qual as crianças são chamadas a responder em coro a uma única pergunta dirigida a todos, ou cada um por sua vez, em uma ação totalmente centrada no adulto.

Em relação ao aprendizado da linguagem escrita, concepções semelhantes àquelas relativas ao trabalho com a linguagem oral vigoram na educação infantil.

A idéia de prontidão para a alfabetização está presente em várias práticas. Por um lado, há uma crença de que o desenvolvimento de determinadas habilidades motoras e

29 A roda de conversa tem se transformado em estratégia comum nas instituições de educação infantil, marcando um

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intelectuais, necessárias para aprender a ler e escrever, é resultado da maturação biológica, havendo nesse caso pouca influência externa. Por meio de testes considera-se possível detectar o momento para ter início a alfabetização. Por outro lado, há os que advogam a existência de pré-requisitos relativos à memória auditiva, ao ritmo, à discriminação visual etc., que devem ser desenvolvidos para possibilitar a aprendizagem da leitura e da escrita pelas crianças. Assim, os exercícios mimeografados de coordenação perceptivo-motora, como passar o lápis sobre linhas pontilhadas, ligar elementos gráficos (levar o passarinho ao ninho, fazer os pingos da chuva etc.), tornam-se atividades características das instituições de educação infantil.

Em uma outra perspectiva, a aprendizagem da leitura e da escrita se inicia na educação infantil por meio de um trabalho com base na cópia de vogais e consoantes, ensinadas uma de cada vez, tendo como objetivo que as crianças relacionem sons e escritas por associação, repetição e memorização de sílabas. A prática em geral realiza-se de forma supostamente progressiva: primeiro as vogais, depois as consoantes; em seguida as sílabas, até chegar às palavras. Outra face desse trabalho de segmentação e seqüenciação é a idéia de partir de um todo, de uma frase, por exemplo, decompô-la em partes até chegar às sílabas. Acrescenta- se a essa concepção a crença de que a escrita das letras pode estar associada, também, à vivência corporal e motora que possibilita a interiorização dos movimentos necessários para reproduzi-las.

Nas atividades de ensino de letras, uma das seqüências, por exemplo, pode ser: primeiro uma atividade com o corpo (andar sobre linhas, fazer o contorno das letras na areia ou na lixa etc.), seguida de uma atividade oral de identificação de letras, cópia e, posteriormente, a permissão para escrevê-la sem copiar. Essa concepção considera a aprendizagem da linguagem escrita, exclusivamente, como a aquisição de um sistema de

codificação30 que transforma unidades sonoras em unidades gráficas. As atividades são

organizadas em seqüências com o intuito de facilitar essa aprendizagem às crianças, baseadas em definições do que é fácil ou difícil, do ponto de vista do professor.

Pesquisas realizadas, nas últimas décadas, baseadas na análise de produções das crianças e das práticas correntes, têm apontado novas direções no que se refere ao ensino e à aprendizagem da linguagem oral e escrita, considerando a perspectiva da criança que aprende. Ao se considerar as crianças ativas na construção de conhecimentos e não receptoras passivas de informações há uma transformação substancial na forma de compreender como elas aprendem a falar, a ler e a escrever.

A linguagem oral possibilita comunicar idéias, pensamentos e intenções de diversas naturezas, influenciar o outro e estabelecer relações interpessoais. Seu aprendizado acontece

30 Na construção de um sistema de codificação, os elementos e as relações entre eles são prédeterminados, por exemplo, a

transcrição das letras do alfabeto em código morse. Ao contrário, a construção de um sistema de representação original, como a escrita, passa por um longo processo histórico antes que esse sistema se torne propriedade coletiva. A escrita é um sistema de representação da língua e não um sistema de codificação das unidades fonéticas.

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dentro de um contexto. As palavras só têm sentido em enunciados31 e textos que significam

e são significados por situações. A linguagem não é apenas vocabulário, lista de palavras ou sentenças. É por meio do diálogo que a comunicação acontece. São os sujeitos em interações singulares que atribuem sentidos únicos às falas. A linguagem não é homogênea: há variedades de falas, diferenças nos graus de formalidade e nas convenções do que se pode e deve falar em determinadas situações comunicativas. Quanto mais as crianças puderem falar em situações diferentes, como contar o que lhes aconteceu em casa, contar histórias, dar um recado, explicar um jogo ou pedir uma informação, mais poderão desenvolver suas capacidades comunicativas de maneira significativa.

Pesquisas na área da linguagem tendem a reconhecer que o processo de letramento32

está associado tanto à construção do discurso oral como do discurso escrito. Principalmente nos meios urbanos33, a grande parte das crianças, desde pequenas, estão em contato com a

linguagem escrita por meio de seus diferentes portadores de texto, como livros, jornais, embalagens, cartazes, placas de ônibus etc., iniciando-se no conhecimento desses materiais

31 “Enunciado” refere-se a algo que alguém falou para outro em certo momento e em certo espaço; e esse ato é chamado de

“enunciação”.

32 Letramento: produto da participação em práticas sociais que usam a escrita como sistema simbólico e tecnologia. São

práticas discursivas que precisam da escrita para torná-las significativas. Dessa concepção decorre o entendimento de que, nas sociedades urbanas modernas não existe grau zero de letramento, pois nelas é impossível não participar, de alguma forma, de algumas dessas práticas.

33 Algumas crianças que vivem em ambientes cuja escrita não se faz necessária e presente podem vivenciá-la por meio da

televisão, por exemplo.

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gráficos antes mesmo de ingressarem na instituição educativa, não esperando a permissão dos adultos para começarem a pensar sobre a escrita e seus usos. Elas começam a aprender a partir de informações provenientes de diversos tipos de intercâmbios sociais e a partir das próprias ações, por exemplo, quando presenciam diferentes atos de leitura e escrita por parte de seus familiares, como ler jornais, fazer uma lista de compras, anotar um recado telefônico, seguir uma receita culinária, buscar informações em um catálogo, escrever uma carta para um parente distante, ler um livro de histórias etc.

A partir desse intenso contato, as crianças começam a elaborar hipóteses sobre a escrita. Dependendo da importância que tem a escrita no meio em que as crianças vivem e da freqüência e qualidade das suas interações com esse objeto de conhecimento, suas hipóteses a respeito de como se escreve ou se lê podem evoluir mais lentamente ou mais rapidamente. Isso permite compreender por que crianças que vêm de famílias nas quais os atos de ler e escrever têm uma presença marcante apresentam mais desenvoltura para lidar com as questões da linguagem escrita do que aquelas provenientes de famílias em que essa prática não é intensa. Esse fato aponta para a importância do contato com a escrita nas instituições de educação infantil.

Para aprender a ler e a escrever, a criança precisa construir um conhecimento de natureza conceitual: precisa compreender não só o que a escrita representa, mas também de que forma ela representa graficamente a linguagem. Isso significa que a alfabetização não é o desenvolvimento de capacidades relacionadas à percepção, memorização e treino de um conjunto de habilidades sensório-motoras. É, antes, um processo no qual as crianças precisam resolver problemas de natureza lógica até chegarem a compreender de que forma a escrita alfabética em português representa a linguagem, e assim poderem escrever e ler por si mesmas.

Nessa perspectiva, a aprendizagem da linguagem escrita é concebida como: • a compreensão de um sistema de representação e não somente

como a aquisição de um código de transcrição da fala34;

• um aprendizado que coloca diversas questões de ordem conceitual, e não somente perceptivo-motoras, para a criança; • um processo de construção de conhecimento pelas crianças por meio de práticas que têm como ponto de partida e de chegada o uso da linguagem e a participação nas diversas práticas sociais de escrita.

34 Como a escrita alfabética pode transcrever tudo o que é dito, há a tentação de considerá-la como representação completa

da emissão do falante. Porém, a escrita não é mera transcrição da fala e representa apenas parte de seu sentido. Uma frase falada em tom irônico, como “Você está linda!”, é escrita da mesma forma que a mesma frase dita em tom sério. Dentre outras coisas, a forma gráfica não determina completamente a interpretação, que precisa ser inferida do contexto.

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Quais são as implicações para a prática pedagógica e quais as principais transformações provocadas por essa nova compreensão do processo de aprendizagem da escrita pela criança? A constatação de que as crianças

constroem conhecimentos sobre a escrita muito antes do que se supunha e de que elaboram hipóteses originais na tentativa de compreendê-la amplia as possibilidades de a instituição de educação infantil enriquecer e dar

continuidade a esse processo. Essa concepção supera a idéia de que é necessário, em determinada idade, instituir classes de alfabetização para ensinar a ler e escrever. Aprender a ler e a escrever fazem parte de um longo

processo ligado à participação em práticas sociais de leitura e escrita.

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A CRIANÇA E A LINGUAGEM