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Da ideia de natureza em Das Wesen des Christentums (1841)

No documento Sobre a natureza em Ludwig Feuerbach (páginas 100-104)

5 SOBRE A NATUREZA EM FEUERBACH

5.2 Da ideia de natureza em Das Wesen des Christentums (1841)

Onze anos após a publicação dos Pensamentos, depois de uma série de tentativas frustradas de conseguir uma vaga de professor universitário em Heidelberg, Feuerbach passa a viver no campo, em Bruckberg, já casado, e lá redige seus escritos mais populares entre os círculos acadêmicos alemães de inspirações antihegelianas. A primeira e mais impactante obra dessa série de escritos, que se dão após sua retirada da vida acadêmica, é A Essência do Cristianismo. Nela, o pensamento feuerbachiano se afasta completamente de qualquer 209 CHAGAS, E. F. A natureza como negação da imortalidade da alma no jovem Feuerbach. Op. Cit., p. 43.

abordagem filosófica que comporte a imagem, mesmo que alegórica, de Deus. A partir daí, um novo caminho filosófico se apresenta para Feuerbach, que passará a defender de forma absoluta suas convicções acerca do valor da Natureza para a filosofia em detrimento da especulação e do misticismo que, segundo ele, se apoderaram do pensamento filosófico moderno.

Em A Essência do Cristianismo, encontramos a abordagem da noção de Natureza a partir da negação da Natureza em tal religião. Como já explicitado em linhas atrás, nesse escrito, Feuerbach foi acusado de deixar de lado a origem da essência humana e, portanto, de não esclarecer de onde, enfim, ela surge, algo que seria devidamente explicitado mais tarde, em suas Preleções Sobre a Essência da Religião. De fato, em A Essência do Cristianismo, há uma atitude mais objetiva em se deixar ver porque o cristianismo é uma contradição com a realidade concreta e porque o homem cria Deus nessa religião, segundo Feuerbach. Nos deteremos, nas próximas linhas, a explicitar o primeiro ponto, acreditando ser o segundo uma consequência direta do primeiro.

Seguindo a leitura Feuerbachiana acerca do cristianismo, nessa religião, há uma inversão. O cosmos, o universo e suas leis, não representam o que há de mais necessário para a existência humana. Ele, o universo, é fruto de uma vontade, uma vontade superior que o trouxe à existência para tornar a vida humana um lar de bem-aventuranças. Dessa forma, a Natureza não é autônoma. Suas leis e tudo que nela há foram criadas por um Ser fora dela. 210

O caráter crítico que perpassa toda a Obra está centrado univocamente na tese de que o Cristianismo, bem como o Judaísmo, afasta a Natureza para satisfazerem suas doutrinas. Para Feuerbach, a Natureza é preterida na religião cristã porque ela representa um limite para a vontade humana satisfazer todos os seus anseios, ou seja, como, na Natureza, só ocorrem eventos e fenômenos que dependem unicamente dela, a vontade humana, no arrogo de sua presunção em contrariar a Natureza, teria criado um ser superior e dotado de todas as qualidades excelentes do homem, para, através desse ser, impor à Natureza o direito. Os escritos oriundos dessas religiões, como mostra Feuerbach, negam e anulam a Natureza para que a vontade (de Deus) seja feita em favor dos fiéis, bem como para demonstrar exemplos da

210 “O princípio do mundo é o princípio do seu fim. Como conseguido, assim, roubado. A vontade chamou-o à existência e a vontade chama-o de novo para o nada. Quando? O tempo é indiferente. A sua existência ou não- existência depende somente da vontade.”. (FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Op. Cit., p.120).

onipotência divina. Portanto, a Natureza deixa de ser necessária nessas religiões servindo apenas de cenário para a atuação de um querer sobrenatural.

O tema de Natureza em A Essência do Cristianismo se entrevê menos em sua objetiva descrição do que através da crítica ao Cristianismo. Para Feuerbach, a Natureza é indissociável da essência humana, ela é garante da subsistência dos seres terrestres, e o homem, enquanto tal, não está fora dessa cadeia causal. Somente através do espírito o homem pode imaginar-se livre dessa condição e é precisamente o fator espiritual que determina o que Feuerbach expõe como uma “inversão” do mundo.

Pelo pensar, a Natureza deixa de ser determinante para ser determinada por uma causa externa a ela. O pensamento é um ato sublime, porém, natural, do gênero humano, o que “diviniza” o homem em relação às demais espécies que com ele convive. O pensamento, sem a Natureza, no entanto, não existe. Para Feuerbach, não existem espíritos, fantasmas ou outras entidades sobrenaturais. Um corpo sem estar no espaço ou tempo é um corpo imaginado. Tudo que viola o existir na forma em que é dado a possibilidade de existência na terra, não pode existir em lugar algum.

Curiosamente, esses aspectos podem ser rastreados em suas obras de juventude, pois, a imortalidade da alma, como vimos, não pode ser uma doutrina válida, uma vez que implica em projeções especulativas a partir da vida na terra, além de desconsiderar o espaço e o tempo como elementos necessários. A ideia de projeção da personalidade humana é um fator que prepondera na crítica Feuerbachiana, seja ao misticismo, à teologia ou à filosofia especulativa. Dessa forma, o pensamento, quando se refere a qualquer objeto que não caia na forma que limita o homem a considerar algo como existente, a saber, a matéria (que já pressupõe o espaço e o tempo) é apenas uma divagação sobre si mesmo, nunca sobre seres reais.

Dessa forma, o papel do pensamento é fazer nem menos, nem mais o que as coisas são, mas tomá-las de modo objetivo. Pensar já pressupõe um conteúdo objetivo. O pensamento é, para Feuerbach, oriundo da tríade razão-vontade-coração. Os objetos que inerem sobre cada uma dessas “forças essenciais” advêm da experiência concreta dos homens, uns para com os outros ou para com a Natureza. O sentimento religioso gera-se, dessa forma, a partir do homem tomando a si próprio como objeto e como meta, pois, de acordo com Feuerbach, para o homem, nada possui maior valor comparado a sua própria vida.

No entanto, no Cristianismo, segundo Feuerbach, a vida do homem não é a vida corpórea, concreta. O corpo não possui qualquer valor. Daí, segue-se que ao retirar a

dimensão corpórea do homem, retira-se, também, a Natureza. Por isso a Natureza não tem importância primária no Cristianismo. É verdade que todo ser necessita de um corpo para sobreviver, mas aqui trata-se de uma negação pensada, especulada. É pelo corpo que o homem existe; é por ele que o homem subsiste na terra. O corpo é o mais básico vínculo do homem com a Natureza.

Rejeitado, portanto, o corpo, resta, por outro lado o espírito. Aqui o espírito é a consciência. A consciência, portanto, é o traço distintivo por meio do qual a religião enriquece sua concepção de Deus. Pela consciência, o homem se revela para si, embora seja através de um movimento dialético ou “elíptico” que se dá pela saída do plano singular ao comunitário. A multiplicidade de homens enriquece o gênero e amplia as qualidades do mesmo. Deus, portanto, possui as mesmas qualidades que elevam o homem à excelência, a saber, o bem, a justiça, a verdade, etc., porém, no primeiro, são elas ilimitadas e perfeitas. Quanto mais rico o gênero humano, mais pobre o homem é em relação a Deus. 211

Nesse sentido, seguindo o pensamento feuerbachiano, no Cristianismo, a subjetividade acentua o papel do homem diante da Natureza. Tudo que é natural, deve, pois, se curvar a subjetividade humana, na medida em que essa, pelo pensamento, projeta-se para fora do homem para ser tomada como diferente. Na Natureza, nada é eterno, tudo possui um tempo, um lugar, tudo muda e está em constante processo. A finitude é a condição de todo ser. Homens, animais, plantas, minerais, etc. Tudo na Natureza nega a perduração eterna. Somente através da razão posso imaginar um ser que não está sob essa condição. Por isso, para Feuerbach, a Natureza é anulada no Cristianismo, pois, a negação dela consiste na afirmação da liberdade do homem através do pensamento, e, dessa forma, a possibilidade da ideia de Deus.

A Essência do Cristianismo é uma obra claramente direta no que concerne ao subjetivismo no cristianismo. Nela, a vontade figura como um atributo que nega radicalmente a realidade concreta em nome da Fé. O objetivo do homem, na religião, é ele mesmo. Seu desejo de continuidade em paralelo ao desgaste de seu ser no tempo configuram a marca

211 “Quanto mais humano é Deus quanto à essência, tanto maior é aparentemente a diferença entre ele e o homem, isto é, tanto mais será negada pela reflexão sobre a religião, pela teologia, a identidade, a unidade da essência humana e divina, e tanto mais será rebaixado o humano tal como ele é para o homem um objeto de sua consciência.”. (FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Op. Cit., p.55).

primordial desse escrito feuerbachiano que dá, sob viés antropológico, a base da religião cristã.212

Dessa forma, como tudo fora do homem é um limite ou indica a sua perecibilidade, o homem não aceita tal condição e submete a própria Natureza, ou seja, aquilo do qual detém sua base e subsistência ao pensamento, para, depois, tomá-la como distinta de si. No cristianismo, é rompida toda possibilidade de reconhecimento da Natureza exatamente porque não há uma Natureza real, mas pensada, uma Natureza fantástica que, sob a tutela de Deus, não pode causar nenhum verdadeiro mal ao espírito humano, isto é, não pode consistir em uma real fronteira para a realização absoluta da vontade humana.

No documento Sobre a natureza em Ludwig Feuerbach (páginas 100-104)