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Eu sou o que vejo de mim em sua face. Eu sou porque você é. (Provérbio da tradição Zulu)

Os processos de formação da identidade e do acervo social do conhecimento são processos que acontecem simultaneamente na sociedade, sendo disso que a sociedade vive. Estar em sociedade significa, então, participar da dialética desse processo. Ser um ser social é fazer parte desse mecanismo de interiorizar, subjetivar e exteriorizar, objetivar (BERGER; LUCKMANN, 1999).

Brito (2004) afirma que o estudo de identidades permite conhecer a realidade social de uma organização e da estruturação das ações de um determinado ambiente, pois as identidades têm também o papel de estruturar as ações dos indivíduos, grupos ou organizações.

Brito et. al (2008) afirmam ser a identidade um constructo complexo devido a sua natureza multidimensional e seu estado de permanente mutação. Assim, a identidade é dinâmica e apresenta-se sob múltiplas formas, em permanente reconstrução, potencializando sua natureza complexa. Nessa perspectiva, as várias identidades se entrelaçam e se expressam no contexto organizacional conferindo-lhe maior complexidade. Para fins deste estudo, o eixo analítico sobre o qual fundamentaremos a pesquisa é a identidade social na perspectiva de Claude Dubar (2005). Segundo Dubar (1997, p. 13):

(...) a identidade humana não é dada, de uma vez por todas, no ato do nascimento: constrói-se na infância e deve reconstruir-se sempre ao longo da vida. O indivíduo nunca a constrói sozinho: ela depende tanto dos julgamentos dos outros como das suas próprias orientações e autodefinições. A identidade é um produto de sucessivas socializações.

Jacques (2000) destaca que a identidade não nasce com os indivíduos, mas ao contrário, constrói-se e reconstrói-se ao longo de seu processo de viver. Esta característica confere à identidade uma natureza dinâmica, social, histórica e, sobretudo, complexa. A identidade é, dessa forma, determinada pelo contexto ao mesmo tempo em que se faz determinante desse mesmo contexto. Este autor ainda defende que a identidade nada mais é que:

(...) um constante “estar sendo”, embora se represente com aparência de “ser”. Refere-se a movimentos que dizem respeito tanto à singularidade humana quanto a particularidade de grupos, segmentos, estratos, classes, culturas. É um conceito cujo entendimento exigem superarem-se dicotomias, pois sua compreensão envolve, ao mesmo tempo, o igual e o diferente, o permanente e o mutante, o individual e o coletivo (JACQUES, 2000, p. 127).

Dubar (2005) entende a identidade como sendo fruto da articulação entre a dimensão interna do sujeito com outra dimensão que é externa ao indivíduo e com a qual ele interage. Destaca, então, a dualidade inseparável da essência da identidade a qual é composta pela

relação permanente que existe entre a identidade para si e a identidade para o outro. São, pois, interdependentes dado que a identidade para si está relacionada ao outro e, sobretudo, o reconhecimento que ele lhe confere. Ressalta Dubar (2005, p.135): “Nunca sei quem sou a não ser no olhar do outro”.

A identidade, na ótica deste mesmo autor, é então estruturada pela percepção que temos de nós mesmos associada à percepção que o outro tem sobre nós. Esta última, para ser captada, exige um processo relacional e comunicativo. Este elemento comunicativo que é fundamental e necessário confere à identidade maior complexidade uma vez que não é possível ter certeza da consonância ente a minha identidade para mim e a minha identidade para o outro.

Ressalta-se que a identidade não é dada. Ao contrário, ela se constitui em um processo de construção e (re)construção permanente. Essa relação identidade para si e identidade para o outro pode ser analisada como constituinte do processo de socialização.

(..) a identidade nada mais é que o resultado a um só tempo estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural dos diversos processos de socialização que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem as instituições (DUBAR, 2005, p. 136 – grifo do autor).

Becker e Luckman (1973) ressaltam que o desenvolvimento da identidade social ocorre em duas etapas: a socialização primária e a socialização secundária. A socialização primária é aquela que ocorre no período da infância, especificamente localizada no espaço de mediação da escola e da família. É nessa etapa que o sujeito se insere na sociedade passando dela a fazer parte. Entretanto, este processo é isento de criticidade de tal forma que a criança assimila papéis, valores e atitudes de seus significantes mais próximos. A segunda etapa corresponde àquela que acontece na adolescência e na vida adulta a partir da interação com instituições sociais diversas. É nesse período que acontece a aquisição dos saberes ditos especializados, tais como os saberes profissionais. A formação profissional está inserida nesta segunda etapa constituindo-se como um evento de singular relevância na construção da identidade profissional. Entretanto, há que se destacar que é no enfrentamento direto com o mundo do trabalho que se encontra o desafio identitário mais significativo.

Dubar (2005) descreve os mecanismos de identificação por meio dos quais a dimensão subjetiva da dualidade social é expressa. Para tal identificação, são utilizadas categorias socialmente estabelecidas tais como denominações étnicas, regionais, profissionais dentre outras. As designações que buscam definir “que tipo de homem (ou mulher) você é”

(DUBAR, 2005, p.137) são denominadas de atos de atribuição os quais correspondem à identidade para o outro. São denominados atos de pertencimento as definições que expressam “que tipo de homem (ou mulher) você quer ser” (DUBAR, 2005, p.137) a qual diz respeito à identidade para si. Não necessariamente haverá uma correspondência entre elas.

A dualidade no social é considerada por Dubar (2005) como o ponto de partida da teoria sociológica da identidade. A proposta analítica do autor traz consigo a reafirmação da identidade como algo em construção e, portanto, inacabado. Este autor defende a existência de dois processos distintos de formação da identidade os quais freqüentemente são reduzidos como se fossem um único processo. O primeiro processo diz respeito ao ato de atribuição da identidade pelos indivíduos com os quais se estabelecem relações cotidianas ou pelas instituições onde há interação direta. Estes sistemas de ação são produtos de relações de força entre os atores envolvidos bem como da legitimidade das categorias utilizadas. Após legitimadas, essas categorias são formalizadas gerando um processo de imposição coletiva sobre os atores nele envolvidos. Cria-se uma espécie de rótulo, o qual é denominado de identidades sociais “virtuais” dos indivíduos.

O segundo processo refere-se à incorporação, ou seja, a assimilação interna da identidade pelos próprios indivíduos. Nesse processo, faz-se necessário incluir as trajetórias sociais dos sujeitos por meio das quais os indivíduos constroem sua identidade para si o que segundo Dubar (2005), corresponde à história que os indivíduos contam sobre o que são, o que corresponde à identidade social real. Pode existir uma dissonância entre esses dois processos a partir das quais têm origem as “estratégias identitárias” cujo intuito é diminuir essa lacuna entre as duas identidades (DUBAR, 2005).

Nessa perspectiva, a proposta analítica de Dubar (2005) acerca da identidade, no campo sociológico, assume relevância na medida em que se sustenta na discussão da socialização como forma de construção das identidades sociais e profissionais. Ao apresentar a referida proposta, o autor chama a atenção para o perigo desse tipo de empreendimento, haja vista a complexidade do tema. Destaca, ainda, o fato de a conceituação do termo identidade recusar qualquer tipo de distinção entre a identidade individual e a identidade coletiva, o que torna a identidade social uma articulação entre duas transações: uma transação „interna‟ ao indivíduo e uma „externa‟ estabelecida entre o indivíduo e as instituições e pessoas com as quais interage.

Segundo Dubar (2005), a divisão, própria da identidade, encontra-se ligada à dualidade e essa caracteriza sua própria definição, ou seja, “identidade para si e para o outro são inseparáveis e estão ligadas de uma forma problemática”. Indissociáveis porque a

identidade para si encontra-se diretamente ligada ao Outro, tanto em termos de relacionamento quanto em termos de reconhecimento. Assim sendo, “eu só sei quem eu sou” por meio do “olhar do Outro”. No que se refere à ligação problemática entre a identidade para si e para o outro, a mesma é explicada pelo fato de:

(...) a experiência do outro nunca ser diretamente vivida por si [...] de tal forma que nos apoiamos nas nossas „comunicações‟ para nos informarmos sobre a identidade que o outro nos atribui [...] e, portanto, para forjarmos uma identidade para nós próprios (DUBAR, 2005, p. 170)

Assim, não se pode garantir que nossa identidade coincida com essa mesma identidade para o outro, o que a torna nunca dada, mas sempre em construção e (re) construção (BRITO, 2004).

A relevância da noção de identidade apresentada por Dubar (2005) relaciona-se ao fato de a mesma introduzir, na essência da análise sociológica, a dimensão subjetiva, vivida e psíquica. Tal noção preserva a divisão do Eu, como realidade originária da identidade, instalando-a no próprio social e abordando-o por meio da expressão individual dos “mundos subjetivos”, os quais caracterizam-se, ao mesmo tempo, como denominados pelo autor de mundos vividos e mundos expressos e, portanto, passíveis de serem apreendidos de forma empírica.

Destaca-se que a configuração identitária do enfermeiro é um processo dinâmico, histórico, social, econômico e politicamente determinado. É composto, ainda, por um aspecto cultural ao considerar em sua gênese o feixe de representações, símbolos, imagens, atitudes e referências relativas ao corpo social. Trabalhar com identidade pressupõe manter as interfaces de um objeto que não se constitui sozinho, mas em um permanente movimento de troca sócio- histórica e cultural. A identidade, portanto, é construída e reconstruída a partir das interações estabelecidas entre as pessoas e seus grupos sociais (OLIVEIRA, 2006).

A análise da construção identitária do enfermeiro que atua na ESF traz em seu bojo, mesmo que sutilmente, os fios tecidos por meio dessa trama de legitimação de poder no qual se busca, mediante essa reflexão desvelar os mecanismos educacionais, sociais e simbólicos de dominação e poder aos quais estamos atrelados historicamente (VALLE, 2007).

Por ser a identidade um processo humano em permanente reconstrução, encontra-se diretamente atrelada ao processo relacional dos indivíduos e grupos. Tendo como pressuposto que as construções sociais associadas às trajetórias individuais subsidiam a construção das identidades sociais e profissionais, destaca-se a necessária reflexão acerca desse fenômeno

para a reconfiguração da identidade social do enfermeiro no cenário de mudanças gerado pela transformação do modelo assistencial em saúde. (BRITO et al, 2006). A construção da identidade do enfermeiro que atua na ESF é um processo socialmente determinado, mas singular e subjetivamente influenciado. A luta da categoria de enfermeiros inseridos nesse cenário profissional no que concerne à definição de sua identidade configura-se em um movimento político que traduz a necessidade de se buscar novas perspectivas de ação transformadora (SILVA et al, 2002).