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Identidade e Consumo

No documento Caio Fernando Abreu: narrativa e homoerotismo (páginas 122-130)

Gimme gimme gimme a man after midnight... ABBA

You are not half the man you think you are.

Madonna

METRÓPOLE. NELASEFAZHOMOCULTURA.

Mas, antes de chegar à metrópole, a homocultura passou por um longo caminho de incorporações e de apropriações intertextuais e inter-semióticas que lhe conPeriram um status de estética de minoria sexual. E a existência de uma linguagem homocultural só é possível em meio à urbanização multicultural. No interior do

Brasil, a experiência da iniciação homerótica será incomensuravelmente rastreada pela repressão e pela retórica da praça pública. Só se pode Palar, com a leitura de Caio Fernando Abreu, em resquício memorialista que recupera aqueles pedaços de repressão e os converte em Pantasia de uma idade adulta “na” metrópole e tendo em vista a sexualidade como objeto de consumo. Isto implica no estabelecimento de inúmeras relações, por ramiPicações e estratiPicações, na conPecção de uma cultura gay. Entretanto, visando à concisão, deter-me- ei em apenas duas: o diálogo com o cinema, com o pop americano e com a música.

A existência de uma cultura gay tem sido associada, em meio a dissensões teóricas, à existência de uma comunidade gay reunida em torno de determinados valores, ideais, partidarismos, aPetividades e códigos de convivência. Nesse sentido, é impossível Palar em comunidade gay no Brasil nos mesmos moldes discutidos, por exemplo, nos Estados Unidos, país que congrega, ao mesmo tempo, posturas bastante conservadoras e revolucionárias sobre os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. Um seriado de TV como Queer as folk (2001 – 2005) (Os Assumidos, no Brasil), que aborda a vida de um grupo de amigos gays de Pittsburgh, Estados Unidos, convivendo em um bairro gay, consumidores de produtos especíPicos para os gays, respaldados por políticos assumidamente ou simpatizadamente gays soa demasiado delirante para uma cultura em que ainda muito se associa a homossexualidade ao elemento naturalista do comportamento desviante ou à carnavalização do corpo, como a nossa. Ainda que existam guetos, digamos, ampliados o suPiciente para serem associados (conPusamente) a tais comunidades, não há elementos amadurecidos para que os coloquemos em pé de igualdade.

A homocultura, como vimos, está intimamente relacionada à cultura de consumo que se solidiPicou no Brasil a partir da década de 1970, com a modernização dos grandes centros

urbanos e da criação de veículos de inPormação especiPicamente destinados ao público gay (GREEN: 2000, 416). É cooptada pelo mercado consumista como um todo no sentido de que os bens materiais e simbólicos destinados à clientela com inclinações homoeróticas passam pelo crivo moral dos consumidores de classe média, tornando-se marginal ao que não é “de bom tom”. As relações de consumo obedecem, a partir de então, a certos trâmites em que valores Pinanceiros e simbólicos agem no sentido de sustentar e validar a presença de certos produtos no mercado. Surge uma pornograPia gay nos grandes centros, bem como objetos para estimulação erógena e práticas sadomasoquistas, vendidos em sex shops, ganham o gosto de certa clientela homoeroticamente inclinada. A pornograPia gay, barata e trash, alcança salas de cinema decadentes, que se transPormam em “pontos de pegação”, em vários momentos alvejadas por policiais que ali compareciam para extorquir dinheiro dos Preqüentadores, sob a ameaça de escândalo público e prisão por atentado ao pudor.

O principal veículo audiovisual, a televisão, objeto de consumo predileto do brasileiro, passa a caracterizar, de Porma cômica e estereotipada, os indivíduos homoeroticamente inclinados, vistos, durante os anos 70, 80 e 90, como ePeminados em excesso[42]. O homossexual é, com isso, uma imagem para o consumo e deleite

heteronormativizados. A homocultura é interpretada por um perPil televisionado que não condiz com a variedade das inclinações homoeróticas. Tal interpretação acaba por render discussões em torno da sustentação de um discurso homoPóbico por uma mídia com notáveis ePeitos no imaginário social, o que corrobora, a partir da década de 90, para a adoção de um tom mais ameno, tangenciando a espontaneidade, em algumas telenovelas[43].

Não apenas produtos são consumidos. Agora, trata-se, também, de um consumo de identidades, de modelos de vida e de expressividade. E que esses produtos sejam aceitos

como normais, a Pim de que ganhem o gosto de uma clientela ainda maior.

Nenhum outro produto de veículo audiovisual, entretanto, teve tanto impacto sobre o imaginário tribal gay do que a MTV (Music Television), que, uma década após ter sido lançada nos Estados Unidos (1983), atinge outros mercados consumidores ao redor do globo. No Brasil, a transmissão dos programas da MTV tem início em 1990, inaugurando uma era em que música e moda são articuladas ao mercado consumidor dito alternativo, abrangendo os gays, que assistem, nesse novo veículo, à mutabilidade das divas, sendo também inPluenciados por uma série de produtos, além de musicais, indumentários. Teremos, assim, o que se pode chamar de um “estilo MTV”, com uma linguagem em Porma de patchwork, que se apropria de outros elementos na composição de produtos multiPacetados. Por romper, em parte, com o bom-mocismo, a MTV passa a ser sinônimo de um discurso alternativo[44]às grades de programação das grandes emissoras.

A geração das divas da MTV, que tem início em 1983, com a apresentação de Madonna no VMA (Video Music Awards), da MTV americana, vestida de noiva e cantando o hit Like a Virgin, é o Pundamento de uma cultura do videoclipe que optará pelo pastiche, ou seja, pela retomada, para recriar a si mesma enquanto veículo expressional de geração em crise. Posteriormente, com o clipe Material Girl, Madonna revisitará intertextualmente o Pilme Os homens preferem as louras, de Howard HAWKS. Para E. Ann KAPLAN, o clipe de Madonna “oPerece um pastiche do número de Marylin Monroe, Diamonds are a girl’s best friend, embora renuncie a qualquer comentário crítico sobre esse texto” (1993, 54).

O surgimento da MTV é o resultado de um processo disruptor de certos parâmetros de gosto popular e da Pormação de novas propostas estéticas oriundas das relações de consumo. O “estilo MTV” é híbrido, multicultural, mas sua recepção pode tender à

homogeneização dos costumes. Segue, proeminentemente, uma linha paródica em que os discursos da alta cultura são desconstruídos pela Pundamentação na imagem do pop. É, pois, o resultado do que Mike FEATHERSTONE nomeia como uma contemporânea “estilização da vida”:

A preocupação da nova onda de Plâneurs urbanos com a moda, a representação do eu, o look, aponta para um processo de diPerenciação cultural que sob diversos aspectos é o anverso das imagens estereotipadas das sociedades de massa, nas quais se concentram Pileiras compactas de pessoas vestidas de maneira semelhante (1995: 137).

No Brasil, esse estilo diPerenciador e Plâneur é interrogado por uma devoção pelas divas da MPB, mais introspectivas e sistemáticas, como Maria Bethania. As linhas divisórias entre alta cultura, MPB e “estilo MTV” demarcam territórios e diPerentes estetizações de vida, por vezes excludentes. Agir de Porma consumista no interior de tais territórios signiPica retomar o sentido original do termo consumir: destruir, desgastar, esgotar. E “desperdiçar”. Ao se pôr em atitude consumista diante de imagens e sonhos, o indivíduo homoeroticamente inclinado que opte por um estilo de vida homocultural tende à absorção desbastadora dos objetos consumidos. O objeto artístico, em nosso caso a literatura homoerótica de Caio Fernando Abreu, caminha no sentido de se apropriar intertextualmente das imagens que lhe chegam a partir de diversos mediadores culturais pós-modernos, como o cinema, o pop e a televisão. O excesso de bens simbólicos, imagens e inPormações é traduzido, pela Picção, como um olhar transbordante e pasmo diante dos textos sobrepostos e dos hipertextos segundo os quais o humano é reiPicado em meio à “circulação de imagens com sugestão de prazeres e desejos alternativos, do consumo enquanto excesso, desperdício e desordem” (Ibid., 41) .

inconscientemente um espaço como consumidor. O relaxamento dos padrões normais de vestuário veio com a contracultura, a partir dos anos 60, mas será, por Porça da televisão, sobretudo da MTV, que a nova desordem, impondo-se sobre a antiga ordem televisiva, ganha status de repertório sistematizado de objetos de consumo em larga escala. Vendem- se, através da televisão, imagens que se materializam em produtos, comprados por telePone ou nas milhares de lojas de departamento e nas griPes tendentes ao patchwork fashion, rePorçando-se o caráter catártico do consumo. Os Shopping Centers são, com notável propagação nos anos 80, outra conquista dessa sociedade assolada pela ânsia consumista.

O Plerte entre a homocultura e o consumismo desenPreado é estimulado com as primeiras maniPestações públicas anti-homoPóbicas nos anos 70. Uma das estratégias utilizadas pelo Movimento Gay Brasileiro, a partir da Pormulação de suas propostas de base, é salientar a importância dos indivíduos homoeroticamente inclinados no mercado consumidor, a Pim de que, com tal argumento, sejam reduzidas as resistências contra os gays, que passam a ser considerados, por um mercado mais rePinado, como consumidores compulsivos soPisticados e, portanto, lucrativos. O perPil do consumidor determinará, segundo a lógica capitalista, o tipo de cidadão em que ele se tornará.

O Movimento Gay, tal como o conhecemos hoje, ensaia diPerentes atitudes nos diversos países cujos grupos sexualmente minoritários a ele emprestam suas vozes, de acordo com as cores locais e determinadas sutilezas que sobremaneira acentuam o caráter móvel das sexualidades homoeroticamente inclinadas. Seu crescimento Poi um Penômeno constatado, com maior Puror, nas décadas de 1980 e 1990, quando houve maior assimilação do mercado da moda e da música por este movimento e, uma troca que Punciona como ePeito de tal recepção de mercado, será nesses decênios que a moda e a música pop

assumirão, de vez, o lado lucrativo dos estilos chamados “alternativos” (vide as imagens e os nomes construídos por Boy George, Elton John, George Michael, Madonna, David Bowe etc).

Compreendamos, logo, que a poética de Caio Fernando Abreu não aderiu a espaços de solidiPicação de uma visibilidade, mas deles Pez parte integrante em sua “gestação”. Pois, como poética de transição de um período conservador rumo a um movimento de errância, a partir do hippie[45], a obra do autor não logrou encontrar-se com estes espaços em que as

visibilidades poderiam ser “democraticamente selecionadas”, por exemplo, ao se navegar pela TV a cabo, ancorando-se aqui ou ali em programas assumidamente gays e explicitamente direcionados ao Pilão consumidor gay (Penômeno de globalização incorporado pela mídia televisiva brasileira a partir da segunda metade da década de 1990). Trata-se, ao invés, de uma poética que submergia em uma geração maldita de escritores que cultivam o escapismo e a depressão como veículo para a construção de um discurso alternativo (não à toa uma escritora como Ana Cristina CÉSAR é citação reiterada).

Encontramos dois perPis identitários básicos que podem, em determinados aspectos, ser chamados de homoculturais e, noutros, ser conPundidos com a cultura gay: a identidade homossexual, de herança oitocentista, e a identidade gay. A obra de Caio Fernando Abreu, conPorme tenho insistido em salientar, está na divisão extrema desses dois perPis, não podendo ser “qualiPicada” como representante de nenhum deles. Embora se relacione abertamente com o universo do Camp, mais propenso ao diálogo com uma política de costumes gay, o autor não se deixou enredar pelo discurso radical das minorias, o que representaria, em grande medida, o declínio da individualidade de seus narradores e personagens e, por conseguinte, o do psiquismo transbordante e revelador de sutilezas e de

hipersensibilidades. O “outro social” se Paz presente nas narrativas do autor como um canal de interlocução simbólica entre uma voz interiorizada pela repressão ou pelo caos individual e outras, externas, pertencentes a um mundo do qual a Picção se põe à parte.

Ainda assim, este “pôr-se à parte” será assombrado por tendências de um estilo alternativo consumista do universo gay. É como se, após se deixar encantar pelo mundo dos espetáculos desregrados e das divas, os seres de linguagem se pusessem a meditar sobre o valor disso tudo. E a conclusão os conduz ao lugar de origem, de onde nunca deveriam ter saído: a solidão. E o camp, enquanto consumo paródico ou pastichoso de outros textos e estilizações de vida, é a melhor maneira de observar a construção de entre-lugares identitários em narrativas do autor.

No documento Caio Fernando Abreu: narrativa e homoerotismo (páginas 122-130)

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