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Após a II Guerra Mundial, uma Europa devastada buscava superar a herança totalitária e de rivalidade entre seus componentes, passando a conceber a união entre eles como meio para construção de uma paz durável. Dessa forma, no próprio centro da iniciativa de integração europeia estava o desiderato de rejeitar o nacionalismo associado aos movimentos fascistas, de modo que os arquitetos das Comunidades Europeias empreenderam um esforço ativo para conceber desenhos e práticas institucionais que favoreceriam uma construção identitária para além do Estado-nação.

De fato, a estratégia neofuncionalista previa que a cooperação interestatal em séries de questões funcionais aprofundariam a integração pois gerariam a sua propagação para outros setores por meio do mecanismo de spill-over. Esse processo de contaminação entre os setores acabaria promovendo o desenvolvimento de identidades, compartilhadas inicialmente entre as elites burocráticas, depois se expandindo para o resto da população (HERRMANN e BREWER, 2004). Nesse sentido, Ernst Haas sugeria que as instituições regionais contribuiriam para a formação de um sentimento de comunidade:

Political integration is the process whereby political actors in several distinct national settings are persuaded to shift their loyalties, expectations and political activities toward a new centre, whose institutions possess or demand jurisdiction over the pre-existing national states37 (2004, p.16, grifo nosso).

Atores políticos engajados na construção europeia em suas primeiras décadas não se preocuparam, porém, com o aspecto simbólico, fundando-se sobretudo em um raciocínio utilitário. Entretanto, com o passar dos anos e distanciamento das memórias da guerra, esses

36 “Uma identidade comum e a ideia de comunidade são vistas como fornecedoras de apoio difuso que pode

sustentar instituições mesmo quando elas não sejam capazes de fornecer payoffs utilitários imediatos” (tradução da autora).

37 “Integração política é o processo onde atores políticos em diversos contextos nacionais são persuadidos de

mudar suas lealdades, expectativas e atividades políticas em direção a um novo centro, cujas instituições possuem ou reivindicam jurisdição sobre os Estados nacionais pré-existentes” (tradução da autora).

40 atores começaram a conscientemente desenvolver a dimensão simbólica da União, a qual inclui bandeira, hino e o próprio Euro (LAFFAN, 2004).

Surveys conduzidos pela Comissão Europeia (Eurobarômetro) mostram que a identidade europeia é assumida por boa parte dos cidadãos, verificando-se que 54% dos entrevistados no território de toda UE em 200638 responderam que se entendem como europeu adicionalmente à sua própria nacionalidade frequentemente ou às vezes – ante 43% que nunca o fazem39 (Figura 3.3). Em 1990, antes do tratado de Maastricht, a maioria afirmava nunca assumir essa identidade (51%), o que aponta para a eficiência da organização para fomentar identificações. Ressalte-se ainda que tal resultado se confirma em experimentos sócio- psicológicos (CASTANO, 2004)40.

Figura 3.3: Você alguma vez pensa em si não apenas como [nacionalidade], mas também como Europeu? Isso acontece frequentemente, às vezes ou nunca? (Abril 1990 e Setembro 2006)

Fonte: Elaboração da autora com dados do Eurobarômetro (COMISSÃO EUROPEIA, 2011).

Entretanto, essa identificação não parece se desenvolver de uma maneira constante no decorrer dos anos. A questão “Em um futuro próximo, você se vê como...”41, tendo como opções nacionalidade apenas, nacionalidade e europeu, europeu e nacionalidade, europeu

38 2006 foi o último ano em que esta pergunta sobre percepções identitárias figurou nas pesquisas do

Eurobarômetro.

39 Pergunta realizada pelo Eurobarômetro em inglês, conforme disponível em seus dados: “Do you ever think of yourself as not only (nationality) but also European? Does this happen often, sometimes or never?”

(COMISSÃO EUROPEIA, 2011)

40 O que não significa, porém, que as identidades coexistam de maneira pacífica em todas as ocasiões: estudos

mostram que identidades nacionais e europeias podem entrar em conflito, situação experimentada por exemplo por jornalistas e funcionários europeus, os quais devem trabalhar por um objetivo comum europeu mas, ao mesmo tempo, são representantes nacionais (RISSE, 2004).

41 Pergunta realizada pelo Eurobarômetro em inglês, conforme disponível em seus dados: “In the near future, do you see yourself as...?” (COMISSÃO EUROPEIA, 2011)

15% 30% 51% 3% 16% 38% 43% 2% 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60%

Frequentemente Às vezes Nunca Não sei

1990 2006

41 apenas e não sabe (em 2010 computaram-se, ainda, as respostas espontâneas “nenhuma”), apresenta uma ampla variação em seus resultados entre 1992 e 2010, como se verifica na Figura 3.4. Observa-se, por exemplo, um acentuado crescimento na identificação apenas à nacionalidade entre 1994 (33%) e 1996 (46%), bem como entre 2005 (41%) e 2010 (46%).

Figura 3.4: Em um futuro próximo você se vê como...? (1992-2010)

Fonte: Elaboração da autora com dados do Eurobarômetro (COMISSÃO EUROPEIA, 2011)42.

Pode-se tentar encontrar razões atinentes à satisfação com a União Europeia para explicar essas variações: no primeiro período, poder-se-ia, por exemplo, apontar a influência das tratativas sobre o Pacto de Estabilidade e Crescimento que fora assinado em 1997 com critérios orçamentários a serem respeitados pelos países candidatos a formar a zona euro, afetando portanto a soberania dos Estados; enquanto no segundo período seria possível identificar o fator da crise econômica de 2008. Entretanto, no intuito de observar se há uma correlação entre a variação nas respostas sobre identificações sociais e a daquelas concernentes a percepção de auferir benefícios com a União Europeia, estimamos o coeficiente de correlação linear de Pearson entre os dados referentes à questão “Em um futuro próximo você se vê como...” e aqueles relativos aos mesmos marcos temporais para a questão: “Tomando tudo em consideração, você diria que seu país tem se beneficiado ou não de ser um

42 Figura inspirada em gráficos do Eurobarômetro.

0% 5% 10% 15% 20% 25% 30% 35% 40% 45% 50% Nacionalidade apenas Nacionalidade + Europeu Europeu + Nacionalidade Europeu apenas Não Sabe Nenhuma (espontânea)

42 membro da Comunidade europeia (mercado comum)43?”. Foram encontrados valores de coeficiente de correlação não significativos entre as respostas sobre as prognoses de vínculos identitários e as opiniões sobre se o país do entrevistado se beneficiara ou não com a integração, como se verifica no Apêndice 1.

Por outro lado, em estudo empírico aprofundado sobre o tema, Hooghe e Marks (2005) demonstram que aqueles que incorporam a Europa em seu senso de identidade tendem a apoiar a União Europeia mais do que os que se atêm unicamente às identidades nacionais, o que mostra a ligação entre identidade coletiva transnacional e legitimidade da organização regional. Os autores adicionam, ainda, que uma identificação exclusiva com o Estado-nação tem mais poder de explicar a oposição à integração europeia do que cálculos de custos e benefícios econômicos.

Bruter (2004), diferenciando uma identidade de base cultural (forjada sobre similaridades sociais como história, etnicidade, símbolos) de uma de base cívica (identificação dos cidadãos com uma estrutura política em particular), sugere que a identidade cultural formaria parte substancial do processo de identificação dos cidadãos com a Europa. Nesse sentido, é interessante examinar iniciativa da Comissão Europeia em parceria com o governo português intitulada Preparar o Futuro da União Europeia44, compreendendo projetos pedagógicos de comunicação dos assuntos europeus a serem desenvolvidos em Portugal, voltados especialmente para alunos e professores de estabelecimentos de ensino e formação. Observa-se que o material elaborado no quadro dessa iniciativa45 explica uma identidade europeia que reside, de um lado, em percursos históricos semelhantes, raízes cristãs, multiculturalismo e valores democráticos e, de outro, na cidadania europeia e nos direitos auferidos por todos os cidadãos europeus. Nesse caso, a prática discursiva procura entrelaçar a base cultural à base cívica, o que sugere uma estratégia de vincular os significados de uma aos da outra.

De todo modo, ainda que a identidade seja europeia mais que da União Europeia, consoante sugere Bruter (2004), a organização regional enquanto agente discursivo ativo

43 Pergunta realizada pelo Eurobarômetro em inglês, conforme disponível em seus dados: “Taking everything into consideration, would you say that (your country) has on balance benefitted or not from being a member of the European community (common market)?” (COMISSÃO EUROPEIA, 2011)

44 A iniciativa está disponível em: http://www.prepararfuturo-ue.eu. Acesso em 19 jan. 2012.

45 Projeto Preparar o Futuro da União Europeia, Ficha Temática “A Identidade Europeia”. Disponível em:

http://www.prepararfuturo-ue.eu/files/fichas_tematicas/Ficha%20Tematica_Identidade%20Europeia.pdf. Acesso em: 19 jan. 2012.

43 atingiu uma hegemonia em termos de influenciar na definição do que significa pertencer à Europa. A União Europeia está atualmente inserida nas estruturas normativas e cognitivas dos diversos países da Europa, presente com profundidade em seus discursos políticos, sociais e econômicos (LAFFAN, 2004). Assim, embora tenha raízes em uma herança histórico-cultural mais ampla, a ideia de Europa e sua identidade hoje perpassa inevitavelmente a instituição regional, bem como a influência da identidade transnacional na reconstrução das várias identidades nacionais tem a organização como vetor, como mostram Marcussen et al. (1999).