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2 SURDEZ E EDUCAÇÃO DE SURDOS

2.3 IDENTIDADE E O SUJEITO CULTURAL

Falei na educação dos surdos, em suas dificuldades, em sua cultura e na importância em pensar este grupo através de conceitos culturais, por isso a preocupação em espreitar essa realidade por meio dos Estudos Culturais de forma a sustentar um entendimento mais completo sobre a comunidade surda. Assim, as reflexões sobre a identidade dentro de grupos culturais específicos se caracterizam como ponto de culminância no entendimento do sujeito surdo a que me coloco na tarefa de estudar e compreender.

Para entender esse conceito, cito Hall (2002, 38) quando diz que “a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na sua consciência no momento do nascimento. (...) Ela permanece sempre incompleta, está sempre em processo, sempre sendo formada”.

Isso significa que, assim como se vê como homem ou mulher, branco ou negro, brasileiro, e assim por diante, em tantos aspectos que nos fazem ser quem somos, apesar de uma pessoa nascer com uma surdez, ela não é surda identitariamente desde o momento do nascimento; é através de suas experiências, da sua vivência, de sua consciência e de seu contato com outros iguais, e também com os diferentes, que poderá passar a sê-lo. Pode ocorrer que, mesmo nessa situação, passe sua vida toda sem ver-se como surda, sem aceitar essa condição diferente, provavelmente, de seus pais e talvez irmãos e demais membros da família4. Há casos em que, mesmo em situação de completo afastamento de uma comunidade surda, a partir de um primeiro contato com ela, a organização subjetiva da pessoa se modifica imediatamente, como se estivesse à espera do gatilho para confirmar o que já sentia interiormente. Mas também pode ocorrer que isso nunca aconteça, vendo-se então como um ouvinte imperfeito, um deficiente da audição, ou ainda sem ver-se em “nada”, em grupo algum, numa busca incessante por algo que lhe parece inatingível e muitas vezes que não sabe nomear.

Silva (2000, p. 96-97) afirma que

A identidade não é uma essência; não é um dado ou um fato – seja da natureza, seja da cultura. A identidade não é fixa, estável, coerente, unificada, permanente. A

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Devemos pensar que apenas 10% (ou menos) dos surdos são de famílias também surdas ou têm pais surdos. A grande maioria dos casos ocorre em lares onde os pais são ouvintes e a estrutura familiar construída se dá a partir de uma organização como ouvintes, o que, obviamente, é estendido ao filho surdo também.

identidade tampouco é homogênea, definitiva, acabada, idêntica, transcendental. Por outro lado, podemos dizer que a identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. A identidade está ligada a sistemas de representação. A identidade tem estreitas conexões com relações de poder.

Acredito que analisar o conceito de identidade relacionando à surdez não significa querer provar que uma é melhor ou superior à outra, pensando no dualismo entre surdos e ouvintes, ou ainda afirmar que são contrárias, ou que uma é mais definida que a outra, mas sim que são complementares ou ainda que coexistem (ou podem coexistir) culturalmente porque são independentes em uma sociedade repleta de diferenças. Dessa forma, entendo que nem o surdo nem o ouvinte chegam a um momento de entendimento, acabamento e finalização do processo de constituição de identidade, ou seja, qualquer pessoa, seja surda ou ouvinte, está permanentemente construindo suas relações identitárias em virtude do meio ao qual pertence, das relações estabelecidas e das situações vividas.

(...) o que isto sugere é que a identidade emerge, não tanto de um centro interior, de um “eu verdadeiro e único”, mas do diálogo entre os conceitos e definições que são

representados para nós pelos discursos de uma cultura e pelo nosso desejo

(consciente ou inconsciente) de responder aos apelos feitos por estes significados, de sermos interpelados por eles, de assumirmos as posições de sujeito construídas para nós [...] em resumo, de investirmos nossas emoções em uma ou outra daquelas imagens, para nos identificarmos (...). O que denominamos “nossas identidades” poderia provavelmente ser melhor conceituado como as sedimentações através do tempo daquelas diferentes identificações ou posições que adotamos e procuramos “viver”, como se viessem de dentro, mas que, sem dúvida, são ocasionadas por um conjunto especial de circunstâncias, sentimentos, histórias e experiências única e peculiarmente nossas, como sujeitos individuais. Nossas identidades são, em resumo, formadas culturalmente. (HALL, 1997, p. 25)

Assim, trazer os conceitos de cultura e identidade quando discuto a surdez é significativo em virtude de que apresentam o sujeito em relação, primeiro à sua língua, linguagem e, em seguida, às relações que estabelece socialmente. Pensar por esse prisma implica em considerar o sujeito linguístico carregado de significados culturais, o que leva a considerar, no caso dos surdos, que usam um sistema linguístico em modalidade diferente da dos ouvintes a partir de tais conceitos e, por isso, carregam experiências culturais também diversas.

Por isso, não é mera retórica a defesa da LS para surdos, quer pelo significado que terá em ambiente educacional ou pelos argumentos cognitivos relacionados ao desenvolvimento da linguagem, mas é em função desse entendimento de que na língua repousam diferentes aspectos que somente podem ser compreendidos quando se analisa em conjunto com a

diversidade cultural que representam. Portanto, essa defesa deixa de ser circunstancial, passando também a ser política, psicológica e social, já que, em virtude de não usarem a linguagem oral na sua comunicação, ela tampouco sustenta a constituição da identidade com ouvintes, pois assim não são, e por isso não podem identificar-se com esses. A língua é o elo entre os surdos e outros surdos, e suas experiências particulares jamais experimentadas por um ouvinte e vice-versa. A língua, nesse caso, é mais que um meio de comunicação, é o que faz do sujeito um sujeito, subjetivo, capaz de participar do grupo maior em que está inserido a partir do lugar que conquista por seu próprio olhar social e constituição individual.

Assim, a defesa por levar as crianças surdas ao contato com outros surdos fluentes em LS repercute em sua vida toda como possibilidade real de ser o que é, assim como é, surdo, sem que isso signifique problemas ou isolamento social em qualquer nível que seja. Ao contrário, essa aproximação fornece instrumentos que o tornam capaz de ser, de forma integral, na sociedade e como sujeito, fortalecendo-o para as necessidades implícitas numa sociedade não tão igual, não tão compreensiva. E, finalmente, esse mesmo pensamento se amplia para o aspecto educacional, pois somente a partir da compreensão dessas diferenças linguísticas e culturais o surdo pode realmente participar no processo de ensino-aprendizagem como qualquer outro sujeito.

3 LINGUAGEM