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Identidade, raça e etnicidade no cinema brasileiro nos anos 1960-70: Tropicália e retóricas da descolonização e do subdesenvolvimento

Depois de acompanhar o início da formação do campo do cinema brasileiro em torno da imagem de um povo integrado racial e etnicamente e de verificar como as disputas por falar em nome deste povo continuaram, em linhas gerais, a configurar o discurso de seus agentes na década seguinte, encerramos o capítulo anterior anunciando o início de um processo que, paulatinamente, conduziria a mudanças de postura no engajamento dos intelectuais.

Em resumo, poderíamos invocar a crise em que o intelectual de esquerda viu-se mergulhado após o Golpe civil-militar de 1964 e o acirramento político em fins de 1968, já amplamente analisado em vários campos da cultura (Schwarz, 1978; Xavier, 1989, 1993; Ridenti, 2000; Bernardet, 1967, 1982, 2003; Stam, 2008; Buarque de Holanda, 1978; Favaretto, 1979; Basualdo, 2007; Calado, 1997; Sales Gomes, 1976).

A título de apresentação dos nossos objetivos, vale resgatar a intervenção crítica proposta por Bernardet a respeito do papel dos intelectuais, uma vez que esta ocorreu à época em que os agentes do campo do cinema brasileiro encontravam-se diante de alguns impasses perante o novo regime. Lançado em 1967, logo após a criação do INC (Instituto Nacional do Cinema) pelo governo militar, Brasil em Tempo de Cinema identificava a atuação dos intelectuais ligados ao cinema à sua posição de classe (média) e, através de sua argumentação, tentava verificar como algumas contradições surgiam na relação entre práticas artísticas e regimes de representação do povo articulados através dos filmes e do debate crítico que a eles sucedia.

O início dessas contradições encontrava-se na própria definição de povo encampada pelos intelectuais ligados ao cinema. Valendo-se da obra de Nelson Werneck Sodré, Bernardet (2007) infere que nesta categoria “eliminam-se a burguesia representante dos capitais estrangeiros e os latifundiários; integram-se os operários, os camponeses e a parte da alta, média e pequena burguesia que é desvinculada do imperialismo e que se outorga a função de líder” (op.cit., p. 48). Ressaltando que esta definição foi incorporada à atuação desses intelectuais (notadamente, jovens diretores,

157 roteiristas e críticos de cinema), o autor sublinha que nela estava marcada a atitude paternalista que os mesmos desenvolveriam diante do povo.

Por meio de vários exemplos, o autor estabelece uma identificação entre os papéis dramáticos representados – sobretudo nas ideias articuladas pelos filmes em suas narrativas e na escolha de seus protagonistas e antagonistas – e a posição social dos realizadores. Embora a argumentação de Bernardet esteja ligada ao lugar de classe daqueles, é interessante trazermos alguns momentos onde outros referenciais podem ser percebidos.

Ao tratar de marginais, o autor realça a construção do gênero nordestern (de acordo com ele, nomenclatura do crítico Salvyano Cavalcanti de Paiva) em torno da figura do cangaceiro, sendo que algumas experiências cinematográficas que se opuseram a este gênero também se valeriam desta personagem. Ou, ainda, em outro ponto, os modos como algumas práticas ligadas às religiões afro-brasileiras foram retratadas nos filme. Digna de nota é a conclusão a que chega o autor sobre Barravento: “Firmino e Aruã têm o papel de Estado-protetor que, prevenindo as reivindicações populares, as impede de tomar uma forma organizada e política, evitando que o povo se torne centro da decisão (op. cit., p. 79).

Não podemos esquecer a abordagem (ainda que superficial) de Bernardet em torno das categorias nordestinos, brancos e negros. Condena um universalismo que apontou em Vidas Secas e elogia a leve formulação em torno de nordestino como categoria identitária que encontrou em Deus e o Diabo na Terra do Sol e A Grande Feira (Roberto Pires, 1961). Num instante posterior, sublinha em Bahia de Todos os Santos uma instabilidade emocional do protagonista, cuja base localiza-se em sua identidade racial: “mas a maior de suas contradições, essa absolutamente insolúvel, Tônio a encontra em seu próprio físico: nem preto, nem branco, mulato. Branco para os pretos, preto para os brancos” (op. cit., p. 89).

Em um primeiro momento, estes lances da análise empreendida por Bernardet apontam para “outros” reprimidos que não necessariamente perpassam sua ideia central, apresentada a partir do pertencimento de classe dos agentes do campo cinematográfico. Reconhecendo neste incômodo expressado por Bernardet um vestígio de um processo muito mais amplo, complexo e com desdobramentos em vários campos da cultura brasileira, podemos afirmar que, no caráter de intervenção do livro, havia um projeto de revisão desta postura intelectual dominante, já iniciada levemente com o texto de Neves avaliado no capítulo anterior.

158 Diante do exposto, não reservaremos uma parte específica para tratar desta crise, visto que ela é um pressuposto da análise a ser aqui empreendida. Em vez disso, escolhemos abordá-la de modo que apareça integrada aos outros pontos que pretendemos discutir. Isto é, os modos pelos quais a incorporação das práticas artísticas, sociais e discursivas da Tropicália ao campo do cinema brasileiro, somadas às transformações nos discursos da descolonização e do subdesenvolvimento conformou a atuação destes intelectuais, no sentido de revelar os “outros” raciais e étnicos reprimidos.

O presente capítulo encontra-se dividido em duas partes, sendo essencial marcar que esta separação encontra-se apenas na inteligibilidade da exposição dos argumentos e não no objeto desta pesquisa. Com isto, pretendemos ressaltar que Tropicália, descolonização e subdesenvolvimento atuaram em conjunto para desafiar as contradições do discurso do nacional-popular articulado pelos intelectuais de esquerda que, segundo Schwarz (1978), fortaleceram-se nos diversos campos da cultura no momento compreendido entre o Golpe de 1964 e a promulgação do AI-5 em dezembro de 1968.

Os intelectuais e políticos de direita, que há pouco tinham se apoderado do aparato estatal, dominavam a pauta política e impuseram o seu projeto de modernização conservadora, também se sentiram ameaçados pela Tropicália, cujos integrantes foram presos e posteriormente exilaram-se no exterior após um momento inicial de liberdade criativa. Além disso, em várias ocasiões mostraram-se bastante incomodados com alguns efeitos dos discursos da descolonização e do subdesenvolvimento, principalmente no que se refere à possibilidade da formulação de identidades étnico- raciais representados por projetos como o Black Power e à denúncia da segregação espacial que se seguiu ao “desenvolvimentismo” do governo militar, seja o expurgo dos índios de suas terras, seja a acomodação assimétrica dos nordestinos nos espaços urbanos fluminense e paulista. Inferindo que este discurso de direita também teve impacto no campo do cinema através da censura e do financiamento estatal da atividade cinematográfica, consideramos esta linha como fundamental para compreender como foi possível o surgimento de filmes com uma retórica de raça e etnicidade explícita no centro deste aparato estatal.

Na primeira parte, nossa preocupação residirá em avaliar como a apropriação e o diálogo com as práticas da Tropicália pelos agentes do campo do cinema, além de perdurarem ao longo da década seguinte, tiveram como efeito principal a explicitação

159 dos outros raciais e étnicos, que até então estavam conformados dentro de um jogo de presença/ausência, a que eram relegados pelo discurso do nacional-popular. No entender de Flora Sussekind (2007, p. 31), as práticas do movimento tiveram tamanho impacto nos diferentes campos da cultura que é possível ser concebido um “momento Tropicália”, que ultrapassaria um marco temporal rígido, o que se coaduna com a nossa hipótese de trabalho de que a apropriação destas experiências foi fundamental para compreender a formulação de identidades étnico-raciais que pressionaram algumas transformações no habitus partilhado pelos intelectuais do cinema de um povo diverso etnicamente, porém homogeneizado pela posição de classe.

Deste modo, consideramos pouco produtivo, por exemplo, avaliar o estatuto de Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967) como marco da Tropicália, tal como foi feito em outros trabalhos (Stam, 2007; Ridenti, 2000), uma vez que não é nosso objetivo esgotar seu impacto no cinema brasileiro. Tampouco é nossa pretensão dar conta de todos os caminhos que as práticas artísticas deste momento de crise pós-1964 apontaram para o campo cinematográfico, tais como, por exemplo, o Cinema Marginal e a Geração Super 8.

Recuperaremos alguns filmes não para enquadrá-los no panorama da Tropicália, mas sim, a partir dela, verificar algumas mudanças no debate intelectual sobre raça e etnicidade e, um ponto muito pouco abordado, a incorporação destes “outros” à atividade intelectual. Isto não significa que todos os filmes abordados possam ser qualificados como “tropicalistas”, mas que o estatuto de suas representações e de sua narrativa teve como pontos de partida algumas conquistas estéticas e reapropriações operadas a partir do movimento. Assim, estas transformações deixaram marcas no habitus dos agentes do cinema brasileiro e, em paralelo, nas imagens de povo de alguns filmes produzidos e exibidos ao longo dos anos 1970.

Reconhecemos também que os efeitos das práticas artísticas tropicalistas sobre as categorias raciais e étnicas não podem ser considerados de modo imediato, na medida em que seus artistas raramente apelaram a uma identidade étnico-racial posicionaram-se

de modo dúbio e reticente, sendo o caso de Gilberto Gil o mais emblemático75.

75

Agradecemos a intervenção da professora Liv Sovik na banca de defesa desta tese por nos ter recordado o embate entre Gilberto Gil e o movimento negro na Bahia por ocasião da aprovação das cotas raciais nos exames de acesso à UFBA. Diante de uma recusa de Gilberto Gil de encampar a luta do movimento, para isso relativizando a noção de raça e se aliando discursivamente à direita política nesse episódio, foi vaiado por parte da plateia em show realizado naquela universidade.

160 O nosso argumento, então, é delimitado pelo fato de a Tropicália ter catalisado diversas estruturas de sentimento (Williams, 1969) que atuaram na revisão da postura intelectual dominante na esquerda política em paralelo ao apelo a uma cultura urbana que rapidamente se transformava e revelava tensões de diferentes matrizes. Desse modo, a conexão entre a produção cultural do movimento (ou do “momento”, como preferem alguns) e a época na qual esta foi difundida auxiliou na exposição de identidades raciais e étnicas que antes apareciam englobadas pela categoria povo.

Por sua vez, a segunda parte do capítulo versará sobre as mudanças em torno dos discursos da descolonização e do subdesenvolvimento. Mapeados por Bernardet e Galvão (1982) como categorias articuladas sob o ponto de vista econômico da atividade cinematográfica nos anos 1950 e boa parte dos 1960, algumas experiências cinematográficas acarretaram em transformações na performance das categorias étnicas e raciais, visto que trouxeram para o centro da discussão alguns estudos do campo da Sociologia ignorados pela ideologia oficializada do “luso-tropicalismo” de Gilberto Freyre (produzidos pelo Projeto Unesco nos anos 1950) e a retórica dos movimentos pelos direitos civis nos EUA e de descolonização africana (com ênfase em Frantz Fanon). Ademais, num movimento de continuidade com as conquistas da Tropicália de reconhecimento intelectual dos outros étnica e racialmente reprimidos, estas experiências são fundamentais para a avaliação de um projeto arregimentado por uma intelectualidade negra ligada ao cinema brasileiro, presente na denúncia do racismo camuflado pelo ideal de democracia racial, nos limites impostos à atuação dos intelectuais que articularam cinema e negritude e na disputa pelas leituras do passado colonial.

III.1) Caminhando contra o vento do autoritarismo: Tropicália e suas práticas no cinema brasileiro dos anos 1960-70

Por se situar em um ponto nevrálgico do momento político e cultural brasileiro e por ter adotado um tom bastante polêmico nos debates, obtendo aliados e também críticos e inimigos à direita e à esquerda, a Tropicália ganhou interpretações contemporâneas e até hoje vem acumulando uma fortuna crítica em torno de si. Uma das interpretações de maior ressonância sobre o movimento foi aquela produzida por

161 Roberto Schwarz durante seu exílio em Paris, em 1970, só publicada no Brasil quase

dez anos depois76.

No ensaio Cultura e política no Brasil: 1964-1969, bem pouco condescendente com os artistas tropicalistas, Schwarz analisou quais respostas foram concebidas por eles ao projeto de modernização conservadora imposto pelos militares. Após apontar a migração da esquerda do campo político para a cultura, o autor revela a dinâmica entre o regime ditatorial e a esquerda que fortalecia seus laços com artistas do teatro, das artes plásticas, da música e do cinema: “se em 64 fora possível à direita ‘preservar’ a produção cultural, pois bastara liquidar o seu contato com a massa operária e camponesa, em 68 [...] será necessário liquidar a própria cultura viva do momento” (2007 [1978], p. 280), uma vez que a massa era arregimentada justamente a partir desta reorganização da esquerda nos diferentes campos da cultura.

O autor narra a ação cultural empreendida por diversos setores de esquerda no momento pré-64, tais como o PCB e o CPC, que empreenderão a tarefa de divulgar às massas obras literárias, teatrais e ensaísticas, num esforço qualificado por ele de “Aufklaerung [esclarecimento] popular” (op. cit., p. 282), claramente retomando as teses de Adorno e Horkheimer de alienação e esclarecimento no tocante ao papel da indústria cultural. E o impacto desta atuação nos debates sobre consciência nacional entre o fim dos anos 1950 e início dos 1960 fez com que Schwarz sintetizasse com ironia que “o país estava irreconhecivelmente inteligente” (op. cit., p. 286). A isto, contrapõe o obscurantismo advindo com o Golpe de 64 e o retorno a “velhas fórmulas rituais, anteriores ao populismo, em que os setores marginalizados e mais antiquados da burguesia escondem a sua falta de contato com o que se passa no mundo: a célula da nação é a família, o Brasil é altivo, nossas tradições cristãs, frases que não mais refletem realidade alguma” (op. cit., p. 288).

Em seguida, o autor identifica os traços da modernização conservadora encampada pelo regime: alinhamento com os EUA na lógica da Guerra Fria através de uma integração política, econômica e militar, adoção de uma lógica expansionista em relação ao seu próprio território e a afirmação de uma mentalidade tecnocrática que buscava racionalizar o emprego de capitais em diversos setores. Preocupa-se, ainda, com o impacto deste cenário na vida cultural do país, sobretudo ao considerar a relação entre a ditadura e os meios de comunicação massiva.

162 Dentro deste cenário, reconhece que “esta experiência [...] deu a matéria prima a um estilo artístico importante, o tropicalismo, que reflete variadamente a seu respeito, explorando e demarcando uma nova situação intelectual, artística e de classe” (op. cit., p. 291). Aponta nele a linguagem alegórica, a junção grotesca de arcaísmo e de moderno na formulação de imagens do Brasil e o uso de referências caras a uma cultura pop internacional.

Após indagar sobre o lugar social do movimento, passa a formular suas acusações. Identifica a imagem tropicalista como fruto de um efeito artístico que “trabalha com a conjunção esdrúxula de arcaico e moderno que a contra-revolução cristalizou, ou por outra ainda, com o resultado da anterior tentativa fracassada de modernização” (op. cit, p. 293). A ambiguidade gerada por essa imagem foi sublinhada pelo autor como politicamente aliada ou, no mínimo, leniente diante do regime militar. Contrapondo ao esforço do artista da fase pré-64 de se inserir na “vida nacional”, continua seu julgamento contra os tropicalistas ao afirmar que estes “registra[m], do ponto de vista da vanguarda e da moda internacionais, com seus pressupostos econômicos, como coisa aberrante, o atraso do país” (op. cit., p. 293).

Prosseguindo em sua denúncia, o caráter alegórico da imagem tropicalista confere a ela uma indeterminação de sentido que, na melhor hipótese, concederia aos produtos culturais gerados pelo movimento um aspecto de inventário e, na pior, traria ao espectador/leitor uma imagem que “encerra o passado na forma de males ativos ou ressuscitáveis, e sugere que [é] nosso destino” (op. cit., p. 295), inserindo-a acriticamente na lógica do consumo: “[as soluções formais tropicalistas] de revolucionárias, passaram a símbolo vendável da revolução” (op. cit., p. 295). Em suma: na visão de Schwarz, teriam sido cooptados pela indústria cultural na qual supostamente pretendiam intervir.

Mesmo com o tom ácido do texto, algumas chaves de leitura da atuação da Tropicália podem ser inicialmente apontados: o apelo à alegoria e à paródia (pelas junções nas imagens tropicalistas) como categoria interpretativa desta experiência artística; a ambiguidade da inserção destes artistas na vida política e cultural do país como proposta de desestabilização do lugar do intelectual de esquerda (vista negativamente pelo autor); uma abertura do movimento às referências da cultura massiva; além de uma resposta amplamente articulada pelos vários campos da cultura à modernização conservadora, lembrando que o autor elenca exemplos de várias artes ao longo de sua argumentação.

163 De uma perspectiva mais otimista, Tropicália, alegoria, alegria, dissertação defendida por Celso Favaretto na FFLCH/USP em fins dos anos 1970, retoma alguns pontos desta discussão. Visualizando no movimento a retomada de um diálogo com a matriz do modernismo literário dos anos 1920 (sobretudo a obra de Oswald de Andrade) para afirmar o cosmopolitismo e o questionamento de uma realidade nacional unificada, Favaretto recorda que “a singularidade do tropicalismo provinha [...] da maneira como se aproximava da realidade nacional. Diferentemente dos demais movimentos da época, que tratavam referencialmente o tema, os tropicalistas acabaram por esvaziá-lo, enquanto operavam uma descentralização cultural” (2007, p. 26).

Depois de sublinhar algumas características formais da Tropicália, tais como a alegoria como uma opção estética do movimento, para além da retórica política, a incorporação de elementos da cultura pop internacional – aqui valorizada positivamente – e a “criação de uma sintaxe não [exclusivamente] discursiva” (op. cit., p. 44) que unia elementos verbais, imagéticos, musicais e gestuais, Favaretto ressalta um ponto destas práticas artísticas fundamental para a nossa discussão: como consequência da releitura

do modernismo literário dos anos 192077, a Tropicália

evidenciou o tema do encontro cultural e o conflito das interpretações, sem apresentar um projeto definido de superação; expôs as indeterminações do país, no nível da história e das linguagens, devorando-as; reinterpretou em termos primitivos os mitos da cultura urbano-industrial, misturando e confundindo seus elementos arcaicos e modernos, explícitos ou recalcados, evidenciando os limites das interpretações em curso (2007, p. 56).

Essa dimensão de trazer elementos recalcados ao debate cultural é aprofundada pela releitura feita pelos tropicalistas do Manifesto Pau-Brasil, no qual, segundo Favaretto, já havia “a valorização de aspectos históricos, sociais e étnicos recalcados na produção artística e intelectual vigente” (op. cit., p. 56).

O autor especifica que nesta apropriação do modernismo oswaldiano, os artistas da Tropicália irão se ater “mais à concepção cultural sincrética, o aspecto de pesquisa de técnicas de expressão, o humor corrosivo, a atitude anárquica com relação aos valores burgueses, do que a sua dimensão etnográfica e a tendência em conciliar culturas em conflito” (op. cit., p. 57). Isto significa, em outros termos, que o retorno dos elementos raciais e étnicos recalcados não passaria pela tentativa de conciliação, mas pela

77

E não dos anos 1930, tradição então dominante nos campos da cultura e especificamente no cinematográfico, como já verificamos nos capítulos anteriores.

164 incorporação à imagem proposta pelos tropicalistas, ou seja, imagem alegórica, fraturada destes “outros”.

Ademais, o sincretismo dos tropicalistas apontado por Favaretto adquiria características diferentes daquele que se situava na base do ideal da democracia racial propagado pelos ideólogos do Estado Novo: não se trata de selecionar e de conferir legitimidade a certos elementos da cultura popular em detrimento de outros (relegados ao recalque), como era feito antes, mas sim de percebê-los em sua integralidade como base para novos repertórios que atuariam na estruturação dos gostos e das práticas artísticas. Sua conclusão a respeito da intervenção cultural dos tropicalistas salienta que “a ‘escala’ tropicalista, fruto da ‘contemporânea expressão do mundo’, faz explodir o universo monolítico erigido em ‘realidade brasileira’ pelas interpretações nacionalistas do fenômeno do encontro cultural” (op. cit., p. 58).

Além disso, retoma dois pontos levantados no ensaio de Schwarz – a ideia de inventario e a fusão de elementos arcaicos e modernos – para sublinhar a postura discordante do movimento em relação aos intelectuais de esquerda da época: “as contradições culturais são expostas pela justaposição do arcaico e do moderno, segundo um tratamento artístico que faz brilhar as indeterminações históricas, ressaltar os recalques sociais e o sincretismo cultural, montando uma cena fantasmagórica toda feita

de cacos” (op. cit., p. 61). Assim, em vez da postura de quem exerce um mandato78

, tal como faziam os intelectuais de esquerda de então, os tropicalistas explicitavam seu papel de mediação. A diferença não reside apenas na escolha das palavras, uma vez que