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3 COMO CONSTRUIR DISCURSIVAMENTE A

3.2 A TEORIA DE LACLAU LEVADA ÀS RRII: BOMBAS E

3.2.5 A identidade popular

Finalmente, o terceiro ponto corresponde ao momento propriamente hegemônico, em que a cadeia equivalencial já fica consolidada, mediante a construção de uma identidade positiva. Num momento de antagonismo a cadeia deve assumir uma identidade própria, além da pura equivalência antagônica. A natureza heterogênea e contingente do conjunto das demandas particulares que moldam a cadeia torna difícil gerar um signo específico para a cadeia, que consiga representar eficientemente sua totalidade. Então, uma das particularidades assume a representação do conjunto da cadeia, cuja identidade assim torna-se positiva:

el rechazo de un poder realmente activo en la comunidad requiere la identificación de todos los eslabones de la cadena popular con un principio de identidad en torno a un común denominador –y éste requiere, desde luego, una expresión simbólica positiva- (LACLAU, 2010, p. 108). Esse é o movimento hegemônico em si mesmo:

na medida em que uma demanda particular é capaz de assumir a representação de um conjunto e outras demandas igualmente particulares e sem deixar aquela demanda particular, passa a falar/agir em nome desse conjunto, estamos diante de uma hegemonia. (ALBUQUERQUE BUIRTIY, 2008, p. 48).

Vale lembrar que este também é um momento precário e o processo é contingente (novamente, para Laclau nem a classe operária fica destinada à liderança da revolução, nem o capitalismo necessariamente vai colapsar para deixar passagem a uma ditadura do proletariado). Laclau descreve com mais detalhe o procedimento:

existe la posibilidad de que una diferencia, sin dejar de ser particular, asuma la representación de una totalidad inconmensurable. De esta manera, su cuerpo está dividido entre la particularidad que ella aún es y la significación más universal de la que es portadora. Esta operación por la que una particularidad asume una significación universal inconmensurable consigo misma es lo que denominamos hegemonía. (LACLAU, 2010, p. 95)

Em termos de Laclau, a mediação entre demandas deve adquirir uma consistência própria e reagir sobre elas, invertendo a relação (LACLAU, 2010, p. 122). A inversão é um passo indispensável para a evolução do antagonismo à operação hegemônica, de forma que funcione como “sistema estável de significação” (LACLAU, 2010, p. 99), operando performativamente como estrutura discursiva: “Una estructura discursiva no es una entidad meramente ‘cognoscitiva’ o ‘contemplativa’; es una práctica articulatoria que constituye y organiza a las relaciones sociales” (LACLAU y MOUFFE, 1987, p. 109). Conferir uma identidade consiste em nomear o conjunto:

A unidade do objeto é simplesmente uma unidade retroativa que resulta do processo de nomeá-lo, […]. [...], porque temos uma série de demandas absolutamente heterogêneas, e o que as leva a seu ponto de unidade é simplesmente a presença do nome.” (LACLAU, 2006b, p. 27).

Neste contexto, uma possibilidade é que o significante que assuma a representação do conjunto seja propriamente um nome, ou até mesmo, um líder (um tipo especial de nome). De fato, há vários exemplos que Laclau e seus comentaristas oferecem disto, como o caso do movimento “solidariedade” na Polônia de 1980.

Posteriormente, algumas das demandas, e, particularmente, àquela que assume a representação do conjunto, pode evoluir em direção à forma de um significante vazio, na medida em que sua função de significar um conjunto bem mais amplo de demandas predomine sobre a de significar a demanda particular da qual originalmente dava conta: “[...], a noção de significante vazio consiste na confluência de múltiplos elementos em um discurso, a ponto de esse discurso perder seu sentido específico justamente pelo excesso de sentidos articulados.” (DE MENDOÇA, 2006, p. 165). O significante da demanda que assume a representação do conjunto da cadeia equivalencial estabelece uma relação de tensão entre esta representação (que envolve a condensação da identidade popular) e a representação do seu significado original. O significante vazio é definido pelo Laclau como “[…] significantes (palabras, imágenes) que se refieren a la cadena equivalencial como totalidad.” (2010, p. 125).

Voltando aos exemplos, mais uma vez, imaginemos que por motivos circunstanciais a demanda pela autonomia étnica assume a representação do conjunto. O movimento utiliza como lema, a palavra

“direitos” em língua guarani. Por acaso, um líder guarani morre durante um protesto, a imprensa recolhe isso, o caso e a demanda assumem notoriedade pública, e os outros movimentos começam a usar também o vocábulo. Finalmente este vira nome do movimento de oposição, isto é, vira o significante que assume a representação de todo o movimento contrário ao governo.

Até aqui, é possível ficar com uma ideia do conceito laclauniano de hegemonia. Evidentemente, a teoria é bem mais complexa, e envolve muitos fundamentos e consequências omitidos nesta seção. Neste sentido, a hegemonia envolve diferentes procedimentos discursivos nos quais não se aprofunda, como o deslocamento e a condensação, originários da psicoanálise e recolhidos pelo estruturalismo clássico; ou a sinédoque, a metáfora, e a catacrese, originários da retórica clássica. Por exemplo, a operação pela qual uma particularidade representa ao conjunto, envolve a figura da sinédoque (LACLAU, 2010, p. 97) e, de certa forma. também a condensação, no sentido atribuído por Althusser (1971).

No caso estudado, estima-se que o próprio bolivarianismo é a demanda que pode tentar inverter a relação: remete a um nome, que toma de um líder histórico (Bolívar), e remete também ao movimento que, em nível nacional venezuelano, deu origem ao atual líder bolivariano (o Movimento Bolivariano Revolucionário 200, sociedade discreta militar formada por Chávez).

Complementarmente, ao nível do sistema de Estados, é a Venezuela a demanda-país-como-particularidade que pode hegemonizar a cadeia, assim como o próprio EUA conseguiu fazer em nível continental nos finais do século XIX. Não obstante a proposta possa ficar estranha, estima-se que tampouco é uma novidade absoluta conferir a uma unidade territorial e identitária a função de hegemonizar a cadeia. Em A razão populista, Laclau já aborda o caso similar da Liga Lombarda, que hegemoniza a Liga do Norte, na Itália em 1989 (LACLAU, 2010).

Contudo, esta é apenas uma possibilidade teórica. Ainda é necessário avaliar se o movimento bolivariano já conseguiu (ou conseguirá) representar o conjunto das demandas que povoam a cadeia equivalencial, e se aquelas o reconhecerão como uma superfície discursiva pertinente para sua inscrição.

O pan-americanismo, por exemplo, rapidamente conseguiu isso, se pensarmos no envolvimento de outros Estados nas conferências pan- americanas a partir da sua primeira reunião (1889-1890): isso se constituiu como a primeira expressão positiva do conjunto, como uma

identidade “democrática” (democrática no sentido coloquial, não no sentido das “demandas democráticas”), de face ao colonialismo europeu do século XIX, de fundamento monárquico. Esta identidade hemisférica democrática depois vai ser deslocada nas lutas hegemônicas face ao Eixo e ao comunismo. Tão imediata foi a identificação de outras demandas americanas que, poucos anos depois, em 1903, o chanceler argentino Luís María Drago tentou inscrever uma nova demanda, ao reclamar para o âmbito pan-americano a defesa comum contra o cobro compulsivo de dívidas pelas metrópoles europeias (depois do bombardeio de La Guaira, Venezuela, pelas marinhas francesas e inglesas), no que se deu a chamar a doutrina Drago, um ajuste à Doutrina Monroe. A Doutrina Larreta (1945) é outro exemplo no mesmo sentido.21 O resultado foi que, em meados do século XX, o discurso pan-americano já utilizava a questão da democracia como um elemento central do ‘espírito americano’ convocado nas reuniões da OEA.

21

A Doutrina Larreta proponha a intervenção do sistema interamericano em qualquer país que assumira formas de governo “não democráticas”. É um antecedente da posição da Conferência Pan-Americana de Caracas de 1954.

4 TORNANDO OBSERVÁVEIS AOS DISCURSOS

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