• Nenhum resultado encontrado

Idioformação e Pessoa

No documento pabloolimpiovieiraabreu (páginas 53-59)

1.2 A perspectiva psicanalítica

1.2.3 Magno: Pessoa

1.2.3.2 Idioformação e Pessoa

Antes de especificar esses conceitos, duas considerações são necessárias: debruçar-se sobre o que Magno chama de formação e, consequentemente, sobre a proposição da teoria Polar das Formações; e entender o que se denomina Indiferenciação.

“Por formação considera-se, em qualquer nível, ordem ou perspectiva, todo e qualquer conjunto material [sendo que tudo aqui é considerado material, vozes, símbolos etc.] que se organize com alguma coalescência, que consiga constituir um fechamento, um lock, e subexistir resistentemente enquanto formação” (MAGNO, 2008, p.103). A resistência é uma de suas características básicas – donde se pode pensar em sintoma36 e recalque –, é seu modo de manifestação: “qualquer formação só por ser formação tem vocação recalcante, e é recalcada por várias forças; pode certas coisas; e, enquanto constituição, nela está inscrito um conhecimento” (MAGNO, 2011, p. 7). Conhecimento37

que uma vez assentado, cria pseudo concepções no campo do ser, simbólico e linguagem, obscurecendo outras manifestações possíveis de serem articuladas. Isso porque “toda Formação do Haver é uma limitação”

36

Como pode ser acompanhado em Magno (2009), toda formação é sintomática, proposição que sugere outro modo de entendimento para o que chamamos sintoma, que no uso cotidiano é apropriado para definir as manifestações provocadas por uma doença/enfermidade. O uso que aqui se faz do termo está, portanto, para além da definição medicinal.

37“Conhecimento, por sua vez, entendido como o que resulta de uma transa entre as formações, incluindo ou não

a presença de uma idioformação nesta transa. [...] Vê-se aí um diferencial claro para com as abordagens de base epistemológica, já que não se pressupõe um sujeito diante de algum objeto para que haja conhecimento: são, sim,

formações em transa resultando em conhecimento” (SILVEIRA JR., 2014, p. 26).

(MAGNO, 2009, p. 129), não no sentindo de um recorte, mas de polarização, donde vem comumente “a ideia meio tola de funcionarmos como indivíduos” (Ibid., p. 129).

Segundo o modo como pensa a Teoria Polar das Formações, estas são consideradas como polos constituídos de duas zonas, uma focal, possível de ser reconhecida, e outra franjal, cujo término não se tem como definir. Trata-se, portanto, para usar um termo atualmente disseminado, de uma:

[...] rede infinita para qualquer lado, a qual é polarizada. Polarizar é simplesmente apontar determinado lugar dentro da rede. O polo apenas indica uma situação – é uma questão topológica – de determinado lugar sem tamanho, sem nada. Quando focalizo o polo, focalizo-o maior ou menor, pois o franjal desse polo é infinito, já que, mesmo não a vendo, faço a suposição de que a rede é infinita e conectada de todas as maneiras para todos os lados (MAGNO, 2009, p. 178).

A “teoria polar supõe que as formações se co-movem e podem se acoplar (comunicar) umas às outras a ponto de se transformarem. Isto é pensável mediante a ideia de haver um ponto neutro entre elas em que há indiferença entre as formações” (SILVEIRA JR., 2014, p. 26), em que há suspensão e, portanto, reconhecimento de suas forças e superação de suas fixações/polarizações momentâneas.

A Indiferenciação é onde Magno (2009, p. 14) escreve o Real. É aquilo que, tirado de um poema de Fernando Pessoa, ele chamou de Cais Absoluto, lugar último do movimento

AÃ, onde escreve-se o “Haver propriamente dito”. É o lugar onde nada “somos”, onde a gente simplesmente “Há”, onde o sentido se perde na equivalência dos nonsenses, na homogeneidade onde todo sentido é possível (MAGNO, 2009b, p. 152). Nesse lugar, a

Indiferença não significa desinteresse, pois quando sou indiferente, sou radicalmente interessado em tudo. [...] Naturalmente, fazemos escolhas ad hoc durante a vida, mas o importante é que, no movimento de reconhecimento do Haver, cada um está na possibilidade do exercício da única liberdade possível, a qual não há no campo do Ser, pois aí há sempre um dono, e onde há dono há guerra, luta. No campo do Real, temos a única possibilidade de movimento de liberdade, ainda que não a consigamos (MAGNO, 2009, p. 20).

Liberdade para ousar, ato realizado, por exemplo, por artistas, poetas e pensadores, possíveis aqueles que portam o Revirão e que, no tocante aos conceitos apresentados por Magno, são chamados de Idioformações. Estas estão livres de marcações corpóreas, referem- se à possibilidade, onde quer que apareçam, de aprendizado, catoptria, avessamento radical, criação e hipedeterminação. Em resumo, “uma IdioFormação, em qualquer parte do Universo, ou melhor, em qualquer parte do Haver, seja qual for sua constituição material, é toda

formação composta de Primário, Secundário e Originário” (MAGNO, 2012, p. 10), ou seja: que possuem autossoma e etossoma; que não tem uma programação definida para sempre, e podem, portanto, querer, pensar e desejar coisas que, inclusive, não estejam apresentadas em programa algum; que por portar isso a que se chama Originário, produz o Secundário, como vemos no simbólico, na linguagem e na cultura.

Para além, então, da observação recíproca possível entre todas as formações, no caso desta espécie, ainda existe uma formação que parece não comparecer em nenhuma outra espécie conhecida daqui deste Planeta e que chamo de HiperDeterminação: uma formação constitutiva do aparelho que é capaz de Revirão (MAGNO, 2003, p. 102).

As idioformações estão, originariamente, “condenadas” a estes atos de criação como maneira de dar conta da “loucura” que as habita e que não cessa de requisitar ultrapassagens do que há. Isto porque não há um limite, um fundamento desde sempre colocado e imutável para o que quer que pensem ou façam. Mediante suas manifestações, tentam viabilizar (ainda que provisoriamente) entendimentos para o que mentalmente lhes ocorre, para o mal-estar (FREUD, [1930] 2011) que implacavelmente acomete sua estada no Haver.

As idioformações do caso humano são chamadas de Pessoas. O termo Pessoa, no caso, é tomado do poeta Fernando Pessoa, para quem “Pessoa” é “Ninguém”. E justo por assim se caracterizar, pode gerar o “Ser”, fato que o poeta ilustrou ao propor diversas pessoas para o Pessoa – há diversos heterônimos por ele criados, como será visto na sequência dessa dissertação. A psicanálise não é um humanismo, não trata somente do Ser – que é construído de identificações, conteúdos e idealizações –, e sim das Idioformações. Segundo Magno:

Pessoas são idioformação do nosso caso. Mas não podemos pensar que sejam um corpo humano; um indivíduo, do ponto de vista do recorte social; ou um sujeito, do ponto de vista da reflexão filosófica em vigor. Evidentemente, uma Pessoa tem alguma corporeidade biológica, a qual é apenas uma de suas formações, que chamamos de primário (MAGNO, 2008, p. 169).

Já foi moda na filosofia tratar das pessoas, sobretudo em certa filosofia existencial, ou em certa filosofia religiosa, como a católica, por exemplo. Não é o conceito que uso. Em meu teorema, as Pessoas são IdioFormações ditas humanas. [...] Ela é constituída de Primário, Secundário e Originário e, em última instância, tem sua situação no Haver, no Real, como singularidade. Referidos ao Real das Pessoas, somos absolutamente singulares: ninguém é nós, ou, se não, nós é ninguém. Trata-se da singularidade como Haver. Assim, a Pessoa de que lhes falo é um conjunto indeterminável de formações, capaz de se defrontar com outros conjuntos indetermináveis de formações, sejam formações pessoais ou não (MAGNO, 2009, p. 27).

Vê-se, com isso, que o conceito de Pessoa difere do uso popular que se faz dessa palavra, do uso religioso ou social e, inclusive, do uso feito na psicanálise, por exemplo, por Lacan (1998c), que trata por pessoa a figura social, seja a do analista ou do analisando. A elaboração de Magno em torno desse conceito está afinada a duas proposições elementares: o aparelho teórico da NovaMente – o Revirão – e a Teoria Polar das Formações.

Quanto ao primeiro, Pessoa é, como visto acima, composto pelos três regimes – Primário, Secundário e Originário –, diferenciando-se radicalmente da ordem do ser e inscrevendo-se na lógica do Haver. Isso significa que “a Pessoa Real está inarredavelmente submetida à Alei a partir de sua experiência de Haver, e inapelavelmente em solidão. Donde, sua singularidade” (MAGNO, 2009, p. 114). Solidão e singularidade que acompanham nossa estada no Haver – característico daquilo que Freud ([1930] 2011) outrora chamou de mal- estar –, da qual não se escapa, nem mesmo com a proposição de um “Nós”, tão presente no pensamento social e cultural.

Esquecemos que a Pessoa, que até se chama de Eu – nossa língua é assim, mas há línguas mais inteligentes que não têm Eu –, é um conjunto de formações que está em funcionamento. Uma delas é o lugar que chamo de Real, de Haver, onde sentimos, conhecemos, e nada temos a dizer, pois ele não se manifesta, embora seja capaz de causar um mal-estar tal que começamos a falar, criar e produzir (MAGNO, 2009, p. 28).

Quanto à segunda, Pessoa está associada à rede de formações em seus vários níveis de interações recíprocas, organizadas de modo focal e franjal. A Pessoa ainda que aprisionada e constituída por um determinado conjunto de formações, tem a possibilidade de eventualmente ser afetada por uma hiperdeterminação, ou seja, de diante do abismo intransponível do não- Haver, suspender as formações que a determinavam e requisitar outra possibilidade.

Como disse, uma Pessoa (F1) é um Pólo – em que há um Foco e uma Franja extremamente grande. É uma rede que ultrapassa sujeito, indivíduo, etc. Vamos supor essa Pessoa, com suas formações, defrontada com outra situação (F2) cheia de formações, seja outra Pessoa, uma coisa, etc. Importa saber o que acontece entre essas duas Formações, pois não há sujeito nem objeto, e sim um bolo de formações sempre defrontado com outro, de qualquer ordem ou natureza. Tudo depende do que está sendo emergente de algo naquele momento. O que se passa entre esses bolos de formações é uma Transa. […] A relação que se chamava de sujeito-objeto, que hoje digo que é a transa de um Pólo de formações com outro, é a alma de todo e qualquer Conhecimento (MAGNO, 2009, p. 34).

Uma das formas de exemplificar o termo Pessoa é acompanhar o que Magno (2003) propõe ao pensar os Parangolés, conjunto de obras formuladas nos anos 1960 por Hélio Oiticica, que possuíam características como as manifestações de livres expressões,

desinibição, anti-arte, dentre outras. Os Parangolés colocam em questão a violação do “ser”38, em contrapartida da experiência do Haver. Ajudam a ilustrar como o movimento do psiquismo se exprime através da Pessoa. Não através de um “eu” ou indivíduo, mas daquilo que Oiticica chamou de “participador” – e que teoricamente ficaria melhor defnido com o termo “articulador" –, que veste a fantasia e faz o movimento se exprimir. Mediante um Parangolé, alguma “coisa” vem à tona, faz conhecer a sua presença. Algo se transmite e, assim, transforma. Exercem, segundo Magno (2003, p. 96), uma função catalisadora (cultural, sintomática etc.), pois “fazem aparecer o processo”39

. Regem a sinfonia do Primário, Secundário e Originário na tentativa de dar conta dessa apresentação, desse presente, que é senão aquela presença e trauma descritos no início desse subitem.

Realizadas todas essas considerações, pergunta-se: quem é Eu, dada essa radicalidade trabalhada com os conceitos de Idioformação e Pessoa? Indagação a que Magno (2003, p. 105) responde: “Não é senão a com-sideração plena na qual qualquer formação com-sidera qualquer outra formação e todas com-sideram e se com-sideram segundo uma enantiose de uma formação que é catóptrica em seu princípio fundamental”. O “eu” é o efeito de transas entre formações, que por recalque, aparenta certo fechamento, mas que por hiperdeterminação pode produzir outras emergências, e assim, novas transas. Seus conhecimentos e sintomas são transformáveis, transitáveis, pois esboçam-se como decantação da experiência de Haver. Experiência que revela a radicalidade da diferença e a identidade realmente possível – conotação que tanto difere dos vários discursos que pregam pela igualdade entre os homens, pela heterogeneidade dos indivíduos na esfera jurídica. Como Pessoa, “todos são absolutamente diferentes. Não tem ninguém que seja meu igual, nunca vi e não vou ver. Mas sou idêntico a qualquer um no nível do Originário” (MAGNO, 2012, p. 19), nessa identidade Real, que se perde na ordem do “Ser”, mas que insiste e, assim, possibilita avessar saberes, formações, criações e até concepções ontológicas, como por ora essa pesquisa tem realizado.

38

Oiticica substitui a expressão “eu existo” por “subsisto”, que anuncia essa posição em crise, essa ideia subvertedora e o descentramento do eu.

39

“‘Fazem’ é maneira de dizer porque quando o processo surge já não são os Parangolés que o fazem aparecer. Acontece que, com a presença de um Parangolé, as coisas se manifestam e aí já não sabemos mais se é essa presença que induz a manifestação, pois quando algo é tomado como Parangolé, o resto ali envolvido logo se parangoliza de uma vez” (MAGNO, 2003, p. 96).

No documento pabloolimpiovieiraabreu (páginas 53-59)

Documentos relacionados