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2 CATEGORIAS E FERRAMENTAS DE ANÁLISE

2.1 O idiomatismo e o violonismo

Um tema recorrente nos estudos acadêmicos sobre o violão brasileiro é o idiomatismo. Antes de entrar nessa categoria, é interessante observar o conceito de idioma proposto por Meyer (1996). Com uma definição mais abrangente do termo, relacionando música e linguagem, Meyer entende idioma em música como uma particularidade do dialeto, que é proveniente do resultado de escolhas de regras e estratégias semelhantes adotadas por diferentes compositores dentro de determinadas constrições. O termo constrições adotado por Meyer, que entendo aqui também como “restrições”, refere-se a condicionamentos culturais que afetam as estruturas musicais, bem como os compositores, críticos e ouvintes, nem sempre de forma consciente. Logo, o idioma se refere a um procedimento composicional que tende a eleger algumas constrições em detrimento de outras, dentro de um dialeto, podendo inclusive um idioma ser decorrente da concepção de novas constrições (MEYER, 1996).

Com base em Meyer, podemos entender os limites técnicos do violão como um tipo de constrição que os compositores precisam administrar quando fazem suas escolhas. Algumas estratégias semelhantes podem ser eleitas para lidar com essas restrições, gerando um idioma característico.

Mais especificamente sobre idiomatismo, Battistuzzo (2009, p. 74) ressalta que “o que identifica o idiomatismo em uma obra é a utilização das condições particulares do meio de

expressão para o qual ela é escrita, como instrumentos ou vozes”. O autor ainda reforça que, quanto mais forem explorados os aspectos peculiares de determinado meio, mais idiomática a obra se torna.

Pacheco (2010) usou essa ferramenta idiomática ao comparar os rascunhos e manuscritos dos cinco prelúdios para violão de Heitor Villa-Lobos com suas respectivas edições finais. Nesse estudo, Pacheco (op. cit.) constatou que as diferenças existentes privilegiavam sonoridades de movimentos paralelos, demonstrando a preocupação de Villa- Lobos em sobrepor a condição timbrística dos acordes em relação à sua função.

É possível que essas escolhas de Villa-Lobos estejam relacionadas com o nacionalismo que, como já foi discutido no primeiro capítulo em Naves (1988), Reily (2001) e Taborda (2011), elegeu o violão como um símbolo. Também Pacheco (op. cit.) entende que a construção dos prelúdios é direcionada por um projeto poético marcado pela brasilidade nos temas folclóricos e populares, com exceção do Prelúdio 3.

O uso do “paralelismo” é recorrente na obra de muitos violonistas abordados aqui, assim como foi observado por Pacheco na obra de Villa-Lobos. Trata-se do uso de uma fôrma de mão esquerda que se movimenta pelo braço do instrumento mantendo um mesmo padrão de digitação. Essa movimentação pode acontecer horizontalmente pelas casas do braço, ou verticalmente, entre as cordas do instrumento.

Ao analisar a obra do compositor e violonista Francisco Araújo, Battistuzzo (2009) identifica uma série de procedimentos idiomáticos utilizados por esse compositor. São eles: as campanellas, o rasgueado e, principalmente, o paralelismo, em uma repetição de movimentos padrões, tanto vertical como horizontal. Também como o efeito pedal com cordas soltas. Esses procedimentos ajudam a explicar algumas estruturas harmônicas presentes em sua obra.

Lima Junior (2003), ao tratar de arranjos para violão, destaca que cada instrumento impõe uma exigência idiomática. No caso da transcrição de um instrumento para outro, os recursos idiomáticos desse segundo instrumento já são suficientes para conferir uma identidade ao arranjo.

Em pesquisa do estilo do compositor e violonista Guinga, autor de uma das obras analisadas nesse trabalho, Cardoso (2006, p. 4) identifica o uso idiomático do violão como principal elemento, constatando que, “as cordas soltas e as formas características de mão esquerda são frequentemente usadas como elemento estruturante de suas composições musicais”. O uso peculiar desses procedimentos foi identificado por Cardoso pelo contato que Guinga estabeleceu com a obra dos compositores Leo Brouwer e Villa-Lobos.

Medeiros (2010) identifica elementos como o tremolo, a tambora, o pizzicatto e a caja, ao pesquisar sobre a obra do violonista e compositor Delsuamy Vivekananda Medeiros (1938-2004). Esses recursos, bastante usados no repertório tradicional do violão, aliados também a outros aspectos, são aproveitados nas escolhas composicionais de Delsuamy, conferindo um caráter idiomático na sua obra.

Em investigação sobre os arranjos para violão de Dori Caymmi, Smarçaro (2006) identificou uma série de procedimentos idiomáticos do violão, que se fundem com a identidade da obra desse compositor. O autor aponta paralelismos e o uso frequente de cordas soltas, mas também scordaturas especiais, como a primeira corda afinada na nota Si, combinada com a sexta corda afinada em Ré, que conferem uma sonoridade pessoal a esses arranjos. Nota-se que a alteração da afinação do instrumento é um tipo de técnica expandida adotada especificamente por esse compositor, que altera sua sonoridade do instrumento em relação à afinação tradicional.

Diante dessas discussões, para não confundir as características particulares das obras de um compositor com as soluções técnicas inerentes ao violão, defini para esse trabalho “idiomatismo” como o resultado sonoro proveniente das condições particulares que envolvem determinado meio expressivo, assim como soluções adotadas por determinados compositores para lidar com as limitações e potencialidades dessas condições. Quando esse meio expressivo for o violão, usado de forma tradicional, com recursos e soluções adotados de forma recorrente por diferentes compositores, chamei esses elementos de “violonismo”, termo também adotado por Cardoso (2006) e Battistuzzo (2009).

Ampliando essas possibilidades conceituais, Mangueira (2006), buscou investigar os processos inventivos de Hélio Delmiro de Souza no começo do século XXI, focando, sobretudo, as transcrições de trechos de seus improvisos, tanto em trabalhos solo, como no acompanhamento de outros músicos. Dentre os muitos aspectos pesquisados por esse autor sobre a obra de Hélio Delmiro, me chamou a atenção o que ele identificou como “toque violonístico à guitarra e guitarrístico ao violão, em sua forma de adaptar elementos da técnica violonística clássica ao vocabulário jazzístico” (MANGUEIRA, 2006, p. 81). Esse comentário pode demonstrar como o idiomatismo transcende o próprio instrumento e assume uma identidade musical própria, podendo, inclusive, influenciar diretamente a construção de determinados gêneros musicais. Esse tipo de idiomatismo, que é um dos eixos centrais desse trabalho, trato como parte do que passo a chamar de “padrão acústico-mocional”.

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