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6.1 A Igreja Católica e a Problemática da morte

Os ritos fúnebres enquadram-se sempre numa acção simbólica, que para os compreender e descobrir o seu verdadeiro significado, é necessário colocar-se em diversas perspectivas de visão, a fim de se poder posicionar melhor para se cruzar os olhares e accionar os mecanismos teóricos que as ciências antropológicas disponibilizam aos estudiosos que se ocupam do estudo do simbólico.

A morte é encarada como a passagem do humano ao domínio do sagrado e espiritual. Isto significa que, em certa medida, ela funciona como um meio através do qual se assegura a promoção humana; isto é, uma equiparação aos deuses. Ao que nos parece, um dos fundamentos dos ritos fúnebres é afastar a impureza do finado para longe dos vivos, bem como manejar as forças mágicas ou pôr o homem em contacto com o princípio

sagrado que o transcende.

Por outro lado, têm outras dinâmicas de índole social bastante fortes as quais

enfatizamos que "(• • • ) toute société se voudrait immortelle et ce qu on appelle culture n 'est rien d'autre

q un ensemble organisé de croyances et de rites, afin de mieux lutter contre le pouvoir dissolvant de la mort individuelle et collective"

A Igreja Católica, através dos missionários, oriundos de uma realidade cultural diferente, preocupada, muitas vezes, em colaborar com o sistema da potência colonizadora, no domínio e na imposição da sua cultura, procurou combater todas as actividades

funerárias que não se coadunassem que os padrões de valores metropolitanos ou que não se assemelhassem às práticas das sociedades "civilizadas" europeias. Esta postura contribuiu, em certa medida, para desencorajar, desvirtualizar e obstruir, mesmo que

inconscientemente, as diversas vias que conduzissem a tentativas de recuperação da memória histórica dos habitantes da ilha.

Os agentes do poder político-administrativo e da igreja, devido à sua atitude etnocêntrica, não se encontravam preparados para uma sã convivial idade com a alteridade.

Estas práticas, pois, mereciam ter tido um tratamento pedagógico e antropológico mais adequado, o que não aconteceu, dado que foram consideradas sempre como práticas "gentílicas", as quais deviam ser combatidas ou, pelos menos, controladas, na medida em que algumas cerimónias fúnebres funcionam como pretexto para a orgia e pândega por parte de certas pessoas.

Contudo, é bom que se diga que, em abono da verdade, efectivamente, existia perversidade no decorrer dessas práticas. Por exemplo, durante o período da esteira, sobretudo na noite do sétimo para oitavo dia que se segue ao "enterro de um finado", assiste-se sempre à ocasião excesso e pecado de gula. Come-se, bebe-se em demasia, o que teria levado os agentes da Igreja Católica a interpretar estes factos como profanação das algumas liturgias da Igreja.

Por outro lado, pelo que se pode verificar, as noites da reza são aproveitadas para exercitar outras actividades inconfessáveis, reprováveis pela moralidade e bons costumes locais e religiosos. É o caso de embriaguez, sexo e outros actos do género. Quanto ao hábito de colocar cadáver numa mesa do uso quotidiano, a Igreja condenou porque este hábito representava uma verdadeira ameaça à saúde das pessoas. Neste sentido, entendemos que constituía a obrigação "maternal" da Igreja, em colaboração com as autoridades civis e administrativas, combater certos costumes que dão dignidade aos actos fúnebres.

As cerimónias deste tipo são promovidas, geralmente, por pessoas conservadoras, de pouca instrução, de modo que o acto, em si, não oferecia grande credibilidade aos olhos das autoridades civis e religiosas. Além do mais, os livros utilizados na execução dessas tarefas não eram credíveis porquanto resultavam da compilação de apontamentos, copiados à mão, de orações contidas no Antigo Testamento e no Relicário Angélico358, cheios de erros, tanto ortográficos como sintácticos, o que não deixa de constituir uma verdadeira corruptela da liturgia oficial da Igreja.

O combate a esta prática foi de tal modo persuasivo que certos párocos mandavam os seus agentes para indagar, na casa dos defuntos, a fim de saber: se o falecido, em vida, tinha um comportamento cristão para poder saber se merece uma encomendação religiosa;

se foram abatidos animais para a preparação do banquete fúnebre; e finalmente, se cantavam a reza ou "bespa", durante o velório.

Com efeito, o modus operandi de presentificação do defunto levado a cabo pelos santiaguenses, ao que nos parece, colidia com os bons costumes e com a moral estabelecida, devido ao exagero praticado. João Augusto Martins, já nos finais do séc. XIX, fez observar essa inconveniência da seguinte maneira: "Não há nada exagerado e menos

respeitoso, do que as gtúzas, as carpideiras e as pandegas, que ainda se fazem n algumas ilhas à sombra e a pretexto da morte e dos sentimentos da saudade.

Mesmo nas famílias principaes, as praticas do lucto tamam proporções tão exageradas, que chegam a ser motivo de doença, e uma verdadeira irrisão para toda a gente

Convém esclarecer que, neste contexto, a palavra luto não é empregue no sentido restrito, mas no sentido amplo que abrange todas as actividades protocolares relacionadas com a morte de alguém.

Não obstante alguns missionários terem combatido a prática de distribuição das refeições durante todas as fases da cerimónia fúnebre, ela resistiu às pressões e conseguiu sobreviver até à presente data. Encontra-se, pois, arreigada e vivificada de tal modo na tradição que nos leva a inferir que uma cultura quando emerge das profundezas do ethos das massas populares, dificilmente, se consegue debelar com medidas, meramente, punitivas de carácter administrativo, policial ou religioso.

Houve casos de certos párocos que recusavam a encomendação aos finados pelo facto dos seus familiares terem transgredido estas normas impostas pela Igreja.

Alguns elementos da Igreja encaravam estas cerimónias "caseiras" como um indício de um excesso de devoção que se não fosse controlado, poderia, eventualmente, desembocar na prestação de culto aos mortos, o que não deixaria de ferir, gravemente, os princípios emanados pela autoridade eclesiástica de Roma. Contudo, segundo as

informações prestadas por um proeminente mestre360 de reza, a posição de alguns elementos da Igreja tinha também algum interesse económico, na medida em que quem fazia a reza não pagava a missa o que poderia contribuir para lesar os benefícios da Igreja.

359 MARTINS, João A. - Madeira, Cabo-Verde e Guiné, Lisboa, Liv. A. Maria Pereira, 1891, p. 27. 360 Cf. Leocádio JORGE, mestre de reza, residente em Cancelo de Santa Cruz, S. Tiago Maior.

É evidente que o relativismo cultural provoca o hiato na comunicação e na compreensão entre as duas instituições cujas práticas simbólicas e vivência concretas são diferentes.

Sena uma omissão da nossa parte, se não fizéssemos a devida e a merecida referência ao papel desempenhado pela Igreja que, através do seu discurso doutrinário, conseguiu assegurar a gestão das angústias, inquietações, inseguranças e perplexidade dos santiaguenses, perante a morte, e, ao mesmo tempo, reforçando-lhes a convicção e esperança na vida no além. Ela conseguiu incutir na mente dos fiéis que a morte é uma etapa da vida, a qual deve ser aceite e compreendida, segundo o plano traçado pela providência divina.

Abílio Oliveira diz que "(•■•) até ao início do século passado [séc. XX], eram as grandes

religiões (como o Catolicismo Apostólico Romano) quem oferecia ao ser humano a confiança, a segurança e a esperança necessárias para vencer os medos (...) e enfrentar a morte (... )"361.

A gestão da complexa problemática da arte de bem morrer e bem viver constitui um tradicional apetite da Igreja desde a época medieval, através de vários meios, entre os quais o testamento. Philippe Anès entende que o testamento constitui um acto religioso, imposto pela Igreja de Roma, mesmos aos mais desfavorecidos da sociedade. Considerado como um sacramental, como a água benta, a Igreja impôs o seu uso, tornou-o obrigatório sob pena de excomunhão de todos aqueles que morressem sem testamento. Estes não podiam ser, em princípio, enterradas na igreja nem no cemitério. "Portanto, no fim da sua vida,

o fiel confessa a sua fé, reconhece os seus pecados e resgata-os por acto público, escrito ad pias causas. Reciprocamente a Igreja, pela obrigação do testamento, controla a reconciliação do pecador, e recebe sobre

a sua herança um dízimo da morte, que alimenta ao mesmo tempo a sua riqueza material e o seu tesouro

espirituar36".

Assim, como na Idade Média, em Santiago, pelo menos até à segunda metade do séc. XX, a Igreja Católica, sobretudo, era uma instituição omnipresente em toda a pretensa arte de bem morrer. As homilias dominicais dos sacerdotes, as assistências aos moribundos, os conselhos diários dos catequistas espalhados pela ilha e os frequentes comentários dos crentes sobre o Juízo Final têm apoquentado, sobremaneira, os habitantes rurais santiaguenses.

361 OLIVEIRA, Abílio- O Desafio da Morte, 1." Edição, Lisboa, edição Notícias editorial, 1999,p.l93. 36: ARIES, Philippe - op. cit., vol. 1, pp. 223-224.

Não é menos frequente, ouvir-se pessoas do meio rural a manifestar a sua ansiedade, a sua angústia e o seu tormento quando se refere que "Quando o Filho do Homem

vier na sua majestade sentar-se no seu trono no meio das nações reunidas, separará as ovelhas dos bodes. " Às ovelhas colocadas à sua direita, o rei dirá: «Vinde, Ovelhas do meu Pai, tomai posse do reino que foi preparado para vós desde a origem do Mundo. The fome e destes-me de comer; tive sede e destes-me de beber; era estranho e recolhestes-me, estive nu e vestistes-me, doente visitastes-me, prisioneiro e vestes ver-

. . " 3 6 3

me»

O comportamento de uma grande parte das pessoas humildes de Santiago é influenciado por estas passagens evangélicas, tendo em conta o peso que a Igreja tem no seu quotidiano e a confiança que os fiéis depositam nas suas palavras. Como ninguém sabe o dia e a hora da vinda do Senhor, todos devem estar preparados, levar uma vida regrada, respeitar e amar o seu próximo e cumprir os mandamentos da lei de Deus. A incerteza da morte pode, no entanto, ter um efeito perverso. Certas pessoas podem ver, nessa precariedade da vida e na constante ameaça da morte, um pretexto para tentar aproveitar, ao máximo, o lado aprazível da vida. Para justificar estes comportamentos, utilizam-se como encorajamento, as seguintes expressões: "a vida é tão curta"; "o fulano desde que partiu não deu notícias"; "não se sabe quando é que a senhora morte nos vem bater à porta"; "olha para o fulano, na vida, só trabalhou até morrer, nem sequer teve tempo de usufruir daquilo que arrecadou". Também quando se saboreia qualquer coisa muito

apetecível, diz-se: "aproveitemos porque lá em cima, isto é, lá no céu não deve haver nada disso".

Uma vez que a ilha não consegue proporcionar a prosperidade plena aos seus filhos, a salvação da alma representa a única saída airosa para o pesadelo e a precariedade das pessoas ao longo do seu existir na terra. Não é, por acaso, porém, que em Santiago, quando se toma a ocorrência da morte de alguém, a primeira reacção das pessoas manifesta-se através da seguinte expressão: "Coitado do fulano de tall ... Ele vai

descansar ". Este descanso que se augura à alma do defunto, no nosso ponto de vista, não é

só por causa do excesso de trabalho, também pode ser por causa do apuro da vida e da possibilidade do descanso no além. Nesta óptica, referimo-nos a um cenário que, embora

seja enquadrado no espaço europeu, se encaixa perfeitamente, na afinidade existente entre o papel da Igreja Católica e a expectativa da arte de bem morrer dos santiaguenses.

"Enraizados em temores ansiosos, como o de morrer sem poder receber o derradeiro sacramento, este sentimento faz desejar a fixação dos pámcos, a multiplicação dos vigários, a celebração regular da

, j . "364

missa, maior atenção e mais apoio aos fieis, através de pregação e da catequese .

Esta citação demonstra, de um modo expressivo, a inquietação e a fobia com que as pessoas, na Europa e na ilha de Santiago, se apresentam perante uma eventual perda da batalha da eternidade. Aliás, esta postura face à morte funciona como o substracto cultural revelador de um denominador comum entre o colonizado e colonizador, imposto pela

religião deste último.

Pelo que pudemos aperceber, os ensinamentos da Igreja Católica e o desempenho dos ministros serviram para moldar a mentalidade dos santiaguenses e para os educar na fé e na cristandade. Corroborando a afirmação, por nós já feita, João Augusto Martins diria, no final do séc. XIX, que "É usual mandar-se chamar o padre nos transes afflictivos da doença, antes

de se mandar chamar o médico. O padre era d 'antes tido como uma verdadeira divindade (... )"3

s"365

6.2 - As tendências actuais da visão da morte

Actualmente, em Santiago, já se constatam alguns conflitos entre os valores tradicionais, defendidos pelas pessoas mais velhas, e a influência estranha relativamente, à atitude que os mais jovens tomam perante a morte. Nos centros urbanos e suburbanos da ilha, alguns doentes terminais, feliz ou infelizmente, já começaram a sofrer das mesmas "enfermidades" que os do mundo Ocidental. Isto é, morrem acamados, ligados a aparelhos sofisticados, sob a responsabilidade dos médicos e enfermeiros, privados do seu tradicional ambiente familiar, expostos ao isolamento e à despersonalização, longe das pessoas que amam e com quem gostariam de passar os últimos momentos da vida.

Os médicos tentam intelectualizar alguns "espaços" da morte que, quanto a nós, são do fórum estritamente social e sentimental, o que poderá, de certa forma, atrofiar a

364 CHARTIER, Roger-.-I história Cultural, Memória e Sociedade, Lisboa, Difel, Lda, 1988, p. 203. 365 MARTINS, João Augusto - op. cit., p. 208.

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