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CAPÍTULO 1 OS CONCEITOS QUE CONSTROEM UMA HISTÓRIA

1.10. Igreja Popular e os movimentos sociais

A Igreja Popular foi o berço de muitos movimentos sociais como movimento pela moradia, movimento pela terra, comissão de justiça e paz, sindicatos dos trabalhadores rurais e outros tantos movimentos que reuniam as pessoas que pertenciam às classes dominadas. Recordamos ainda dos estudiosos, já citados, como Leonardo Boff e Wanderley, que fazem uma interpretação dialética do pobre, em oposição à funcionalista ou liberal da pobreza, assim acrescentam as mulheres, os índios e negros etc., para a categoria dos pobres. Essas novas categorias se tornam como protagonistas nos movimentos sociais e populares. Este papel da Igreja Popular como fonte de inspiração destes movimentos fica claro ao analisar a observação de Wanderley (2007): Os movimentos sociais em geral e os movimentos populares em particular constituem forças básicas para a construção da “nova” sociedade.

Se a Igreja oferece o pão, ela também oferece a Palavra, daí a necessidade de não reduzir o pobre à pobreza, nem aprisioná-lo na condição da classe, mas ele deve ser reconhecido prática e teoricamente, moral e analiticamente, como um sujeito humano, que, embora e reprimido, é sempre digno de respeito, titular permanente de direitos inalienáveis e sujeito de sua própria libertação (WANDERLEY, 2007, p.28).

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Diante da realidade vivida pelo povo pobre no Brasil e na América Latina, a Igreja Popular assume um novo papel de estar ao seu lado, tornando o oprimido sujeito da transformação social. Aqui, as barreiras que as classes dominantes e a religião tradicional implantavam para dominar, a sociedade quebra e gera novas lógicas de relacionamento e de liderança. As mulheres têm um papel fundamental na Igreja Popular e nos movimentos sociais e populares. As mulheres têm uma participação importante e numerosa nas reuniões e manifestações populares pela melhoria dos bairros e reivindicando os direitos. Zaíra Ary (2000), Wanderley (2007), Cruz (2013) e Boff, L (2004), destacam o papel das mulheres nas CEBs e nos movimentos estudantis como: A Juventude Estudantil Católica Feminina (JECF), A Juventude Universitária Católica (JUC), Associações de Bairros, Sindicatos Rurais etc.

Na Zona Leste de São Paulo, no bairro do Parque São Rafael, onde o estudo foi realizado, há esses movimentos pelo apoio da Igreja Popular. Nas histórias de vida e nas conversas do grupo focal, a participação dos membros nestes movimentos é evidente. Dona Paulina diz: “Naquela época, nós participávamos na Associação do bairro, CEBs, era um tempo muito bom. A gente ia para luta mesmo” (PAULINA, 78 ANOS). Os documentos de uma das participantes nos movimentos sociais, reunidos pelo pesquisador, mostram a força do grupo intitula-se: “Movimento de Saúde” na zona leste. Estes documentos serão analisados no próximo capítulo. A Igreja Popular e os movimentos sociais eram interligados, um alimentava o outro, um ganhava a força do outro. A palavra de Deus era a fonte de inspiração para os membros da Igreja Popular os quais muitas vezes são membros dos movimentos sociais e populares.

Nesses movimentos sociais e na Igreja Popular, a dignidade humana era questão central das preocupações. Essa opção fez com que a classe dominante começasse a criticar severamente e perseguir os líderes da Igreja Popular e os líderes dos movimentos sociais. Lembrada por Dom Hélder Câmara, desse modo: “Quando nós estávamos com os ricos e os poderosos, nunca fomos acusados de fazer política, mas quando nós defendemos os pobres e os oprimidos, somos criticados de fazer política”(DOM HÉLDER CÂMARA)40.

Nesta fala, fica claro a opção que os líderes da Igreja Popular fizeram e as suas consequências. Muitos deles foram perseguidos pelos líderes do governo militar, membros da elite da sociedade brasileira e uma parcela dos líderes da Igreja Católica Tradicional também não apoiava as palavras e ações dos líderes da Igreja Popular no Brasil.

60 Existem diferentes leituras feitas pelos grupos diferentes dentro e fora da Igreja sobre a condição antropológica, social, política e religiosa do oprimido. Um lado, os líderes da Igreja Tradicional e uma parcela da sociedade brasileira desconfiava da influência marxista nos movimentos sociais e nas ações dos líderes da Igreja Popular. Eles analisavam o pobre na sua dimensão religiosa e bíblica, como uma forma de fazer as ações de caridade e assistencialismo. Aqueles que eram da Igreja Popular e Movimentos sociais viam o pobre como uma classe social histórica, como fruto da exploração das classes dominantes. Boff, L., diz:

[...] rede de comunidades, associações, movimentos populares autônomos e articulados entre si que, de dentro da massa e contra o espírito de massa, vai se formando em tensão e contraposição às elites, com a vocação de transformar a todos – massa e elites –num único povo assentado sobre as mais diferentes formas de participação e de comunhão. Entre a massa informe e as elites, permeia a comunidade ou a organização popular autônoma. Ela é o grande instrumento gerador de povo. “Povo”, portanto, não existe previamente como um dado histórico-social (BOFF, L., 1986, p. 45).

Esta categoria social de povo está em construção, mediante as lutas sociais, atacando as causas da opressão. Ao analisar as memórias dos pesquisados e teóricos como Leonardo Boff (2004), Wanderley (2007), Comblin (1994) e Durhan (1973), identifiquei o surgimento das mulheres como novos atores sociais na Igreja Popular e nos Movimentos Sociais no bairro de Parque São Rafael. Tudo indica que este surgimento das mulheres como sujeitos históricos nestes campos sociais aconteceu por vários fatores.

Segundo Comblin (1994) e Durhan (1973), não há espaço para as mulheres desempenharem o papel da liderança ou tomarem iniciativa, num processo de transformação social num contexto rural, onde os papéis sociais dos indivíduos e grupos são historicamente delimitados. No entanto, ao migrar para o contexto urbano, esta lógica se quebra e novos espaços sociais são abertas para a construção social dos novos papéis de liderança e de gênero. Wanderley (2007) e Boff. L(2004) reiteram a predominância feminina nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).

Ao analisar este fato social (Durkheim, 1996) do aparecimento das mulheres como novos atores sociais no bairro do Parque São Rafael, destaco alguns elementos para compreender o contexto social de construção do gênero neste espaço geográfico, social e antropológico. Tudo indica que são cinco fatores que influenciaram neste processo de empoderamento das mulheres na realidade urbana.

O primeiro fator seria que as mulheres tiveram mais consciência do bairro, pois ficarem em casa, para os trabalhos domésticos e cuidados dos filhos. Segundo o entrevistado e

61 o líder da Igreja Popular, Pe. José: “as mulheres tiveram mais tempo para participar nas reuniões e nas formações na Igreja, pois os homens trabalhavam longe do bairro e tiveram que sair de casa muito cedo e voltavam muito tarde” (PE. JOSÉ, 72 ANOS). Neste contexto, as mulheres buscavam um espaço de sociabilidade e encontraram este espaço nas comunidades católicas do bairro (CEBs), onde elas tiveram um processo de conscientização da sua condição histórico-social e participaram em vários cursos de formação na Paróquia São Marcos Evangelista. Elas começaram a assumir novos papéis tanto na Igreja Popular, quanto nos movimentos sociais.

Possivelmente, um segundo fator que abriu o caminho para construção de gênero deve ter sido o surgimento das novas oportunidades neste novo espaço social. Na zona rural, o espaço onde a mulher podia transitar era o espaço doméstico, ou seja, os espaços públicos eram ocupados e reservados aos homens (Bourdieu, 2012). As tradições e costumes na zona rural inibiam qualquer tipo de inciativa das mulheres nestes campos sociais. Segundo autores como Bourdieu (2012) e Gebara (2000), as mulheres que quebravam estes costumes e tradições na sociedade rural, eram consideradas transgressoras das condutas sociais tradicionais e eram discriminadas. Ao chegar à periferia de São Paulo, elas se sentiram livres, começaram a tomar iniciativas e ocupar os espaços públicos sem a companhia dos maridos ou filhos, o que antes não podiam. Esta liberdade é expressada na fala da Dona Judite:

“Meu marido não gostava dos meus trabalhos na Igreja. Uma vez ele me trancou dentro do quarto e saiu, para eu não participar numa reunião na Igreja. Eu pulei pela janela e fui. Ao chegar na Igreja, falei para o padre José sobre o que tinha acontecido, ele deu risada” (JUDITE, 76 ANOS).

Esse episódio demonstra uma quebra da lógica de dominação masculina, que as mulheres viviam numa sociedade rural. Ao tomar a consciência da sua condição social e antropológica, atuaram nos movimentos sociais, participavam nas passeatas e nas manifestações reivindicando os direitos sociais e políticos.

Um terceiro fator no surgimento das mulheres como novos atores sociais, no bairro do Parque São Rafael, poderia ser a própria necessidade que o momento histórico-social apresentava diante delas. Nas CEBs da Igreja Popular, as mulheres tomaram consciência da condição social e antropológica na margem à sociedade, na qual elas e as suas famílias se encontravam. Tal conscientização fez com que elas lutassem para mudar a situação socio política na qual se encontravam. As mulheres deparam-se com a falta de tudo na periferia, tais como posto de saúde, creche, escola, transporte etc., essa percepção e o desejo de buscar as

62 melhores condições de vida para suas famílias fizeram com que as mulheres encabeçassem as lutas sociais e as reflexões da realidade social, nas CEBs, à luz da Palavra de Deus e impulsionadas pela sua fé em um Deus libertador e justo. Dona Judite comprova esta realidade ao dizer:

Sabe, as autoridades, aqueles poderosos, não olhavam para nós não. Aqui a gente vivia esquecida. Eles acordavam só quando o povo gritava. Aqui, a gente era unida. Quando a gente ia para as manifestações na cidade, enchia o ônibus rapidinho. Temos muitas guerreiras aqui, que lutaram para as melhorias aqui no nosso bairro. O senhor sabe, aqui nada veio de graça dos políticos, tudo aqui neste bairro, que temos, foi pela luta da gente - emociona-

se - (JUDITE, 76 ANOS).

A memória da Judite constata aquilo que a teórica Jarschel dizia: “A mulher começa a refletir o Evangelho a partir da sua experiência de vida: da falta de pão, desemprego, falta de escola e posto de saúde etc.” (JARSCHEL, 1991, p.51). Neste contexto social, a necessidade do momento foi um fator importante no empoderamento das mulheres no bairro do Parque São Rafael.

O quarto elemento apontado como um fator importante na construção das mulheres como novos atores sociais, na periferia de São Paulo, pode ser atribuído ao carisma (WEBER, 2010, p. 40) das mulheres. Segundo os teóricos como Comblin (1994) e Durhan (1973), as mulheres não tiveram espaço para desempenhar o carisma numa sociedade rural, onde os campos sociais eram demarcados e ocupados pelos poderes simbólicos (Bourdieu, 2007) masculinos. Na periferia de São Paulo, no bairro do Parque São Rafael, onde não havia nenhum poder historicamente constituído, as mulheres encontraram um espaço apropriado para desempenhar o seu carisma. Weber define:

O termo “carisma” como referência a uma qualidade extraordinária de uma pessoa. [...] A legitimidade de sua autoridade funda-se na fé e na devoção pelo extraordinário... [...]. Também é “revolucionária” na medida em que não está ligada à ordem existente (WEBER, 2010, pp. 40 - 41).

Ao aplicar isso à realidade do Parque São Rafael, nota-se que as mulheres desempenharam um papel revolucionário ao quebrar os paradigmas tradicionais e ao ocupar os espaços sociais que até então, eram ocupados apenas por homens, e reivindicando os seus direitos de cidadania aos poderes políticos, econômicos e religiosos tradicionais vigentes.

Um quinto elemento que empoderou as mulheres pobres e migrantes do Parque São Rafael foi o apoio da liderança da Igreja Popular do bairro. As mulheres traziam dentro de si

63 uma estrutura social e a vivência dos papéis de uma Igreja Tradicional, onde as mulheres eram empurradas para a “secundaridade” na sua existência invisível numa sociedade hierárquica. Esta condição da mulher na sociedade e na Igreja é abordada extensamente por vários teóricos como; Beauvoir (2002), Gebara (2000), Saffioti (2013) e Nunes (1996) e outros tantos autores ao redor do mundo. Mas, esta situação muda na Igreja Popular, onde as mulheres e os pobres ganharam um novo espaço e passaram por um processo de desconstrução dos modelos e das estruturas tradicionais internalizadas. Ao passar por este processo de desconstrução e reconstrução, elas tomaram consciência das causas da sua condição social de dominadas e marginalizadas. As ferramentas que ajudaram muito neste processo foram as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e os movimentos sociais e populares, onde elas aprenderam a refletir as suas vidas e a realidade social, à luz da sua fé e na Palavra de Deus (Boff, L, 2004) e (Azevedo, 1986).

Ficam evidentes estas observações na mensagem que Pe. José (72 anos) escreve num livro41, presenteado para uma líder comunitária no ano de 1986:

Para Izabel, Jesus O filho de Deus entra na história vem reafirmar a certeza de que a justiça, vencerá a injustiça, a alegria, vencerá a tristeza, a coragem vencerá o medo, a vida vencerá a morte. O projeto igualitário de Deus, será realidade um dia. Que esta certeza anime a nossa luta no ano que se inicia. Feliz natal. José. (Mensagem encontrada no livro “Revisão de Vida: Conhecer

para transformar” Ação Católica Operária, 1985).

Esta mensagem comprova mais uma vez o apoio que as mulheres recebiam dos líderes da Igreja Popular nas lutas pela transformação social, na qual elas eram atores sociais importantes. Na Igreja Popular, as mulheres se sentiam importantes, apoiados por líderes como Dom Luciano Mendes e pelos padres que atuavam na Paróquia de São Marcos Evangelista. Esta realidade se confirma na memória de Dona Izabel, ao dizer: “Dom Luciano veio muitas vezes na minha casa, ele sempre estava conosco em nossas lutas. Ele vinha nos dar aquela força, ele era o nosso pastor” (IZABEL, 70 ANOS). A dona Rute confirma ao dizer: “Lá no interior, onde a gente morava, a gente tinha medo dos padres. Nem podia chegar perto deles, naquela época, os padres andavam com batina e frequentavam só as casas dos ricos. Aqui, foi diferente, os padres daqui vinham em nossas casas, até hoje, eles são nossos amigos” (RUTE,

41 O livro “Revisão de Vida: Conhecer para transformar. Ver – Julgar – Agir Pelos 4 lados. Ação Católica Operária

- ACO (5), Rio de Janeiro, 1985. Este livro foi trazido no Grupo Focal pela Dona Izabel, a qual guardava com muito carinho e usava os métodos nos encontros que faziam nas CEBs.

64 79 ANOS). As informações coletadas reiteram a importância da Igreja Popular no surgimento dos novos atores sociais no bairro do Parque São Rafael.

O surgimento das mulheres como líderes ou atores sociais no Parque São Rafael acontece por um conjunto de fatores como já foi apontado. Os cinco fatores sociais poderiam ter influenciado nos processos de fortalecimento de gênero neste contexto histórico social na periferia de São Paulo. Não obstante, a Igreja Popular se torna um palco, onde mulheres e homens buscavam o mesmo espaço para as conquistas diferentes, porém, na mesma direção da liberdade e da dignidade. Este estudo é uma proposta de analisar, mediante as memórias dos participantes a atuação feminina nos enredos das lutas sociais no bairro do Parque São Rafael, portanto, a importância da construção de gênero na Igreja Popular. Nos próximos capítulos, ao analisar as memórias dos pesquisados e os documentos coletados, transitarei por campos sociais, onde estes novos atores sociais atuaram por uma transformação social, enquanto teciam uma nova história social e cultural numa sociedade periférica e urbana.

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CAPÍTULO 2 - A IGREJA POPULAR NO PARQUE SÃO RAFAEL NA MEMÓRIA

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