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II – O “TERCEIRO NÍVEL” DA HISTÓRIA SERIAL

No documento Escola dos Annales Peter Burke (páginas 63-66)

A Terceira Geração

II – O “TERCEIRO NÍVEL” DA HISTÓRIA SERIAL

A história das mentalidades não foi marginalizada nos Annales, em sua segunda geração, apenas porque Braudel não tinha interesse nela. Existiram pelo menos, duas outras razões mais importantes para essa marginalização. Em primeiro lugar, um bom número de historiadores franceses acreditava, ou pelo menos pressupunha, que a história social e econômica era mais importante, ou mais fundamental, do que outros aspectos do passado. Em segundo lugar, a nova abordagem quantitativa, analisada no capítulo anterior, não encontrava no estudo das mentalidades o mesmo tipo de sustentação oferecido pela estrutura socioeconômica.

A abordagem quantitativa ou serial segue as linhas definidas por Chaunu, num manifesto bastante conhecido em favor do que denomina (seguindo uma observação feita por Ernest Labrousse) “o quantitativo no terceiro nível” (Chaunu, 1973). O artigo de Lucien Febvre, “Amiens, da Renascença à Contra-Reforma”, publicado nos Annales em 1941, mostra a importância do estudo das séries de documentos (no caso, inventários post mortem), na longa duração, a fim de mapear mudanças de atitudes e mesmo no gosto artístico (Febvre, 1973, p. 193-207). Observe-se, contudo, que Febvre não oferecia a seus leitores estatísticas precisas. A abordagem estatística foi desenvolvida para estudar a história da prática religiosa, a história do livro e a história da alfabetização. Espraiou-se, algum tempo depois, para outros domínios históricos.

A idéia de uma história da prática religiosa francesa , ou de uma sociologia retrospectiva do catolicismo francês, baseada em estatísticas da freqüência à comunhão, das vocações religiosas etc., remonta a Gabriel Le Bras, que publicou um artigo sobre o tema, em 1931 (Le Bras, 1931). Le Bras, um sacerdote católico de fora também colega de Febvre e Bloch em Estrasburgo, tinha um grande interesse em teologia, história,

legislação e sociologia. Criou uma escola de historiadores da Igreja e sociólogos da religião, que estavam particularmente preocupados com o que chamavam de “descristianização” da França do final do século XVIII em diante, investigando a questão através de métodos quantitativos.

Le Bras e seus seguidores não pertenceram ao grupo dos Annales-eram geralmente padres e possuíam seus próprios centros e revistas, tais como a Revue de

l’histoire de l’église de France. Contudo, o trabalho de Le Bras (vivamente acolhido por seu antigo colega Lucien Febvre) e de seus seguidores era claramente inspirado pelos Annales87. Pode-se tomar como um exemplo desse substancial corpo de trabalho a tese sobre a diocese de La Rochelle, nos séculos XVII e XVIII. É estruturada de maneira muito próxima de um dos estudos regionais associados aos Annales, iniciando- se pela descrição geográfica da diocese, passa pela discussão da situação religiosa e finaliza com os acontecimentos e tendências de 1648 a 1724. A utilização dos métodos quantitativos lembra também as monografias regionais dos discípulos de Braudel e Labrousse88.

Por seu lado, a obra do círculo de Le Bras (como o de Ariès) inspirou alguns historiadores dos Annales quando se elevaram do porão ao sótão. Estudos regionais mais recentes sobre Anjou, Provença, Avignon e Bretanha dedicaram-se mais fortemente à cultura do que seus predecessores, e, em particular, às atitudes diante da morte. Como escreveu Le Goff no prefácio de um desses estudos, “a morte está na moda” (Lebrun, 1971; Vovelle, 1973; Chiffoleau, 1980; Croix, 1983).

O mais original desses trabalhos é o de Vovelle. Um historiador marxista da Revolução Francesa, “formado na escola de Ernest Labrousse”, como ele próprio diz, Vovelle interessou-se pelo problema da “descristianização”. Sua idéia foi a de tentar mensurar esse processo pelo estudo das atitudes diante da morte e o além tal como são reveladas nos testamentos. O resultado, consubstanciado em sua tese doutoral, foi um estudo da Provença fundamentado na análise sistemática de cerca de 30.000 testamentos. Onde historiadores anteriores haviam justaposto evidências quantitativas sobre mortalidade com evidências mais literárias sobre as atitudes frente a morte, Vovelle quis mensurar mudanças no pensamento e no sentimento. Deu atenção, por exemplo, às referências feitas à proteção dos santos padroeiros; ao número de missas que o testador encomenda para a salvação de sua alma; aos arranjos feitos para os funerais e mesmo ao peso das velas acendidas durante a cerimônia.

Vovelle identificou uma mudança bastante significativa no que denominou de “pompa barroca” dos funerais do século XVII para a singeleza dos funerais do século XVIII. Sua principal pressuposição era a de que a linguagem dos testamentos refletia “o sistema de representações coletivas; sua conclusão mais importante foi a identificação de tendências à secularização, sugerindo que a “descris- tianização” nos anos da Revolução Francesa foi espontânea e não imposta de cima, por fazer parte de uma tendência mais ampla. Digna de nota é a maneira pela qual Vovelle mapeia a expansão das novas atitudes da nobreza para com os artesãos e camponeses, das grandes cidades, como Aix, Marselha e Toulon, através de pequenas cidades, Barcelonette, por exemplo,

87 Febvre resenhou o trabalho de Le Bras in Annales, 1943 (1973, 268-75). 88 Pérouas, 1964. Comparar com a abordagem de Marcilhacy,1964.

para as pequenas vilas. Sua argumentação era ilustrada com uma grande quantidade de mapas, gráficos e tabelas.

Piété baroque et Dechristianisation, título do estudo de Vovelle, produziu uma certa sensação intelectual, graças particularmente ao uso virtuoso das estatísticas, acompanhado de um agudo senso das dificuldades em interpreta-las. Foi esse livro que levou Chaunu a organizar uma investigação coletiva sobre as atitudes diante da morte na Paris do início da época moderna, utilizando métodos semelhantes (Chaunu, 1978b)89. O que Ariès vinha realizando sozinho no campo da história da morte, em seu estilo deliberadamente impressionista, foi assim completado por pesquisas coletivas e quantitativas de profissionais”90.

Essa apropriação da vida depois da morte por historiadores laicos, armados de computadores, é ainda o mais notável exemplo da história serial de terceiro nível. Outros historiadores da cultura, porém, utilizaram de maneira eficiente os métodos quantitativos, especialmente na história da alfabetização e na história do livro.

O estudo da alfabetização é um outro campo da história cultural que conduz à pesquisa coletiva e à análise estatística. De fato, um diretor de escola francês levou a cabo pesquisas nessa área, no período da década de 1870, utilizando como fonte, assinaturas em registros de casamento o que o levou a notar profundas diferenças nos vários departamentos, bem como o crescimento da alfabetização a partir do século XVII. Na década de 50, dois historiadores reanalisaram seus dados e apresentaram, sob a forma de mapas cartográficos, o dramático contraste entre duas Franças, separadas por um linha que ia de St. Malo a Genebra. Na parte nordeste dessa linha, a alfabetização era relativamente elevada, enquanto na parte sudoeste era baixa (Fleury/Valmary, 1957).

O projeto mais importante nesse campo, iniciado na década de 70, foi levado a efeito na École des Hautes Études, dirigido por François Furet – um discípulo de Ernest Labrousse, que havia trabalhado antes sobre a análise quantitativa das estruturas sociais – e Jacques Ozouf. O tema do projeto era a mudança dos níveis de alfabetização, na França do século XVI ao XIX (Furet e Ozouf, 1977). Os pesquisadores utilizaram fontes mais variadas, do recenseamento às estatísticas do exército sobre os conscritos, o que os habilitava antes a afirmar do que a presumir a correlação entre a habilidade de assinar o próprio nome à capacidade de ler e escrever. Confirmaram a tradicional divisão entre duas Franças, mas sofisticaram a análise estabelecendo distinções dentro das regiões. Entre outras conclusões interessantes, notaram que, no século XVIII, a alfabetização cresceu mais rapidamente entre as mulheres do que entre os homens.

As pesquisas sobre a alfabetização foram acompanhadas de pesquisas sobre o que os franceses chamam de “a história do livro”. Pesquisas que não se preocupavam com os grandes livros, mas com as tendências da sua produção e com os hábitos de leitura dos diferentes grupos sociais (Roche/Chartier, 1974). O estudo de cultura popular de Robert Mandrou, já mencionado anteriormente, por exemplo, lidava com

89 Chaunu, 1987, p. 92, admite ter ficado “perturbado” com a tese de Vovelle. 90 Para uma análise lúcida e judiciosa desse corpo de obras, ver McManners, 1981.

literatura de Cordel, a chamada “Biblioteca Azul” (Mandrou, 1964)91. Tais livros, que custavam um ou dois sous, eram distribuídos por mascates e produzidos em grande parte por famílias de impressores em Troyes, localizada na região Nordeste da França, onde a taxa de alfabetização era elevada. Mandrou examinou cerca de 450 títulos, assinalando a importância da leitura religiosa (120 .títulos), almanaques e mesmo romances de cavalaria. Concluiu que essa literatura era essencialmente uma “literatura de evasão”, lida especialmente pelos camponeses e que revelava uma mentalidade “conformista”. Estas duas últimas conclusões foram contestadas por outros pesquisadores que trabalharam no mesmo assunto.

Ao mesmo tempo que Mandrou, a VI Seção lançou um projeto de pesquisa coletiva sobre a história social do livro no século XVIII francês (Bolléme, 1965). A figura-chave da história do livro, porém, é um outro colaborador de Febvre, Henri-Jean Martin, da Biblioteca Nacional. Martin colaborara com Febvre na elaboração de um levantamento geral da invenção e expansão da impressão, L’Apparition du livre, 1958. Prosseguiu seu trabalho escrevendo um rigoroso estudo quantitativo sobre o comércio do livro e o público leitor do século XVII francês, no qual analisava não somente as tendências da produção do livro, mas também as mudanças no gosto dos diferentes grupos de leitores, especificamente os magistrados do parlamento de Paris, tais como são reveladas, em suas bibliotecas particulares, pela proporção dos livros em diversas áreas (Martin, 1969). Daí em diante, Martin dirigiu um maciço trabalho coletivo sobre a história do livro na França (Martin e Chartier, 1983-86).

Um dos principais colaboradores nessas empresas coletivas, Daniel Roche, organizou um grupo de pesquisa próprio, em meados da década de 70, para estudar a vida cotidiana do povo comum na Paris do século XVIII. No livro que se seguiu à pesquisa coletiva, Le peuple de Paris, um capítulo substancial foi dedicado à literatura popular, concluindo que ler e escrever desempenhava um papel importante na vida de alguns grupos no interior das classes inferiores, os criados em especial (Roche, 1981, cap. 7). O lado mais surpreendente do livro, contudo, é a localização dessa análise da leitura no interior da estrutura de um estudo da cultura material do parisiense comum. Esse é um estudo de história serial, baseado essencialmente em inventários post mortem, repletos de detalhes sobre as roupas e os móveis do defunto, detalhes que Roche interpreta com grande habilidade, visando construir um retrato da vida cotidiana. Ainda recentemente, escreveu uma história social do vestuário do início da França moderna, de novo mesclando seus interesses pela antropologia histórica, característica da terceira geração, com os mais rigorosos métodos do seu antigo mestre Labrousse (Roche, 1989).

No documento Escola dos Annales Peter Burke (páginas 63-66)