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Exemplo 82 Musica ricercata XI (c 41-47)

1 GYÖRGY LIGETI: CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E ESTILÍSTICA

3.2 INTERSECÇÕES ENTRE ESCRITURA, NOTAÇÃO E PERFORMANCE EM

3.2.3 III: Allegro con spirito

De acordo com Sallis (1996), Musica ricercata III capta e consolida o caráter da peça de abertura do ciclo que, por sua vez, definiu um tom impudente e despreocupado para a série como um todo. Segundo o autor, essa característica – contra a qual as outras peças podem corresponder ou contrastar – remete ao estilo de escrita concisa verificado em publicações jornalísticas de Ligeti da década de 1940.

O tom é leve, caprichoso, e às vezes insolente. Caracteristicamente, em sua resenha publicada sobre [o método para crianças] Billegetö muzsika (...), de [Sándor] Veress, Ligeti utilizou uma citação do autor, então seu professor de composição (...): “Porque na vida, todo o prazer e felicidade genuínos nascem de brincadeiras e toda a amargura da labuta. Trabalho só então se torna a fonte de felicidade se é criação, brincadeira”. (...) Parece que Ligeti também demonstrava uma forte afinidade com esta atitude (SALLIS, 1996: 103-104) . 40

Nesta peça, o intérprete é mediador de uma “disputa” brincalhona entre as tonalidades de Dó menor e Dó maior – as alturas utilizadas são Dó, Mi bemol, Mi, Sol –, dualidade que reflete muito do interesse da obra. Gradualmente fundidas, essas duas tonalidades acabam por perder suas atribuições funcionais e são aproveitadas de maneira a colorir melodias, ritmos e texturas ao longo da partitura.

Em um primeiro momento, Dó menor e Dó maior são apresentados separadamente. Cada uma das tonalidades ocupam registros diferentes do piano. Além disso, a primeira se desenvolve em um plano sonoro forte em região intermediária, enquanto a segunda aparece em pp, na região médio-grave do instrumento (Exemplo 30).

No original: “The tom is light, capricious, and at times insolent. Characteristically, in his published review of 40

Veress’s Billegetö muzsika [Finger Larks] (...), Ligeti quoted the composer (then also his composition teacher) who wrote (...): ‘For in life, all genuine pleasure and hapinness springs from games and all bitterness from toil. Work only then becomes the source of happiness if it is creation, play’. (...) It also seems clear that Ligeti himself had a strong affinity with this atitude”.

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Exemplo 30 - Apresentação das tonalidades Dó menor e Dó maior em Musica ricercata III (c. 1-8)

Diferentemente das duas peças anteriores, os primeiros compassos da peça III exibem configuração métrica regular, alinhada com as tradicionais atribuições de tempos fortes e fracos. Essa sensação métrica será modificada entre os c. 6-9, com o deslocamento entre linha melódica e acompanhamento que “excede” o compasso quaternário.

O delineamento da sequência melódica entre os c. 1-4 não prevê nenhuma alteração significativa de dinâmica ou agógica. Além disso, recomenda-se ao intérprete o máximo de precisão nas articulações determinadas pelo compositor.

A marcação stacatissimo, leggiero, no c. 6 (Exemplo 30), indica realização de toque na mão esquerda que resulte em um som levemente arejado, sem qualquer acentuação ou variação no tempo. Por conta da proximidade entre mão direita e mão esquerda, aconselhamos ainda o intérprete a equalizar, ainda que dentro do pp, a linha melódica na mão direita de maneira valorizar suas características rítmicas e suas variadas articulações.

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Exemplo 31 - Aproximação das tonalidades Dó menor e Dó maior em Musica ricercata III (c. 9-15)

Nos Exemplos 28 e 29, os arpejos de Dó menor (c.4-5) e Dó maior (c.10) são os elementos responsáveis por direcionar a dinâmica entre os planos sonoros forte e pp. No c. 10, em especial, as figurações em movimento contrário marcam também o restabelecimento da sensação métrica tradicional em quatro tempos. Se até então as duas tonalidades da peça ocupavam registros distintos no piano, a passagem entre os c. 11-15 (Exemplo 31) começa a aproximá-las de modo definitivo.

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A seção iniciada no c. 16 (Exemplo 32) traz uma melodia mais delineada e angular do que a apresentada até então. Escrita em piano leggiero giocoso, recomenda-se ao intérprete executá-la de maneira leve, sem haver necessidade de exagerar nas acentuações. Em contraste com a rica variedade na articulação e no desenho melódico da mão direita, a realização do ostinato acompanhamento, sempre pp, evidenciará um fundo estático sem qualquer acentuação métrica.

A inversão entre essas duas vozes, nos c. 21 e 22, acontece de maneira súbita. Como a mão direita apresenta acordes com quatro sons, caberá ao intérprete evidenciar a melodia descendente da mão esquerda. Não há qualquer sinal de variação de dinâmica, prevendo assim a manutenção de planos sonoros estáticos.

Aliás, o único momento em que Ligeti irá prever um aumento gradual na densidade rítmica e na intensidade será o acelerando entre os c. 31 e 32 (Exemplo 33). Em nossa experiência ao preparar a peça para performance, recomendamos uma sutil flexibilização agógica no início do c. 31, além do acionamento gradativo do pedal de sustentação. Além disso, a sequência formada pelas figuras de colcheia, semicolcheia e fusa não deve ser encarada de forma literal para representar o acelerando, a ser realizado de maneira fluida. Para melhor efetivar o crescendo e o stringendo, sugerimos ainda que o intérprete reserve a potência dos registros mais graves do piano até os instantes mais próximos do desfecho, no início do c. 33.

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Exemplo 33 - Aumento gradual na densidade rítimica e na intensidade em passagem de Musica ricercata III (c. 29-33)

O stringendo culmina, de maneira abrupta, num retorno modificado da seção inicial, consolidando a forma da peça em um A-B-A’. Nesta seção final, o conflito entre as tonalidades maior e menor persistirá até o fim. A execução dos acentos sf e sff, entre os c. 37-43 (Exemplo 34), está diretamente inserida nos planos sonoros previstos pelo compositor. Observamos a gradação entre sf e sff à medida que os planos sonoros também acompanham o aumento de intensidade. O compasso de pausa após o insistente conflito entre Dó maior e Dó menor e o consequente Dó, secco em pianissimo, são gestos musical que reafirmam o tom de brincadeira que permeou toda a peça.

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