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III Capítulo – Desvelando um Tema nas Entrelinhas da História

Conforme enunciado no capítulo anterior, a fome tem acompanhado o homem desde os tempos mais remotos. Na verdade, a história da humanidade tem sido, desde o princípio, a história de sua luta pela obtenção do pão-nosso- de-cada-dia31. A guisa de exemplo, pode-se apontar uma das primeiras passagens do Livro do Gênesis:

Criou, pois, Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. Então Deus os abençoou e lhes disse: Frutificai e multiplicai- vos (...) Disse-lhes mais: Eis que vos tenho dado todas as ervas que produzem semente, as quais se acham sobre a face de toda a terra, bem como todas as árvores em que há fruto que dê semente; ser-vos-ão para mantimento. E a todos os animais da terra, a todas as aves do céu e a todo ser vivente que se arrasta sobre a terra, tenho dado todas as ervas verdes como mantimento. E assim foi (Gênesis 1 – 27, 28, 29, 30).

No mesmo livro é possível encontrar algumas das primeiras referências sobre o fenômeno da fome na história; inicialmente quando o Senhor ordena a Abrão que parta à terra de Canaã. “Ao migrar, levando consigo Sarai, sua mulher, e a Ló, filho de seu irmão, e todos os bens que haviam adquirido, e as almas que lhes acresceram em Harã, à terra de Canaã chegaram. Passou Abrão pela terra até o lugar de Siquém (...) Depois continuou o seu caminho, seguindo ainda para o sul. Ora, havia fome naquela terra; Abrão, pois, desceu ao Egito, para peregrinar ali, porquanto era grande a fome na terra (Gênesis 12 – 1, 5, 6, 9, 10).

Mais adiante, ainda no mesmo livro, faz-se referência a uma das calamidades de fome mais conhecidas na história – a fome do Egito. Tal episódio está associado a figura de José, cananeu filho de Jacó com Raquel, vendido como escravo ao capitão da guarda do faraó, e que tornara-se notável pela habilidade de decifrar sonhos. Assim, ao decifrar um sonho do Faraó, revelou a grande forme que se abateria sobre o Egito. Disse José ao Faraó que as sete vacas gordas e as sete espigas boas com que sonhara seriam sete anos. Mais sete anos seriam as sete vacas magras e feias e as sete espigas

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Nesse sentido, Castro (1968b, p. 45) assegura ser difícil explicar e ainda mais difícil compreender o fato singular de que o homem – este animal pretensiosamente superior, que tantas batalhas venceu contra as forcas da natureza, que acabou por se proclamar seu mestre e senhor – não tenha até agora obtido uma vitória decisiva nesta luta por sua própria subsistência.

miúdas e queimadas do vento oriental. Portanto, eis que estava por vir sete anos de grande fartura em toda a terra do Egito; a estes seguiriam sete anos de fome, e toda aquela fartura seria esquecida na terra do Egito e a fome consumiria a terra que não prosperaria por causa da grave fome que seguiria; (Gênesis 39 – 1; 41 – 26, 27, 29, 30, 31).

Sugeriu então José ao Faraó que armazenasse um quinto da produção egípcia nos sete anos de fartura para provimento nos sete anos de fome a fim de que a terra não perecesse de fome. (41; 34-36). E acontecera de passar-se os sete anos de fartura e começaram a vir os sete anos de fome, como dissera José. Logo a fome se abatia por toda a terra, mas no Egito havia pão. Entretanto, a fome aí também chegou, e José abriu todos os depósitos para vender aos egípcios e aos povos de outras terras que iam ao Egito para comprarem de José; já que a fome prevaleceu em todas as terras. (Gênesis 41 - 53 – 57) A fome era gravíssima na terra. (Gênesis 42-5; 43-1).

Na literatura antiga pode-se encontrar várias referências e relatos de epidemias de fome, quase sempre associadas a inclemências da natureza, o que era motivo para crendices e rituais a fim de agradá-la e assim obter o alimento. Nessa perspectiva, mostra Tuan (2005, p. 96) que “os antigos chineses, especialmente durante a dinastia Shang (c. 1550-1300 a.C.), acreditavam que os sacrifícios humanos eram necessários para promover a fertilidade da terra”. A escassez de comida e a fome constituíam ameaças constantes não só aos chineses como também aos hindus. Conforme o mesmo autor,

Na Índia, uma das piores calamidades de todos os tempos ocorreu em 1770, como resultado de dois anos de colheitas magras seguidos pela completa falta de chuvas no terceiro ano. Cerca de 30 milhões de pessoas em Bengala Ocidental e em Bihar sofreram, e talvez perto de 10 milhões delas morreram de inanição e doenças. Em Orissa e ao longo da maior parte da costa oriental da Índia, a seca de 1865-1866, seguida de chuvas torrenciais em 1867 e a inábil política governamental, produziram cerca de 10 milhões de mortes por doenças e falta de alimentos. Na China, praticamente não choveu entre 1876 e 1879 nas densamente povoadas províncias setentrionais, a fome e as conseqüências explosões de violência mataram entre 9 e 13 milhões de pessoas. Fomes produzidas pela seca ocorreram novamente nos anos de 1892-1894, 1900, 1920-1921 e 1928: o numero de pessoas que morreram durante e logo após cada um dos desastres variou entre 500 mil e três milhões (TUAN, 2005, p. 99/100).

Infelizmente nem sempre os documentos históricos descrevem os fatos decorrentes da fome em toda a sua desolação e horror. Sugere Tuan (Op. Cit., p. 101) que ‘as autoridades que testemunharam os desastres escreveram em um estilo formal e parece que omitiram seus sentimentos’, talvez porque eles próprios tinham o suficiente para comer quando procuravam ajudar aos moribundos que se amontoavam ao redor deles32. Os famintos, quando sobreviviam, não tinham condições para registrar a profundidade da sua angústia. Assim, o problema não é tratado na sua totalidade, o que impede um conhecimento mais profundo e, por conseguinte, uma análise condizente com a realidade de fato. Depois, é importante salientar, muito se perde em termos de conhecimento e possibilidades de pensar o presente e projetar o futuro.

Mas as calamidades, as epidemias de fome não são uma exclusividade do mundo oriental, mas estão em toda parte. Foram uma constante na Europa até os tempos modernos. Fomes de comparável severidade foram ameaças habituais para as cidades européias no final da Idade Média. Conforme Tuan (Op. Cit., p. 106) “nos arquivos de Toulouse podem se localizar sete períodos de fome entre 1334 e meados do século XVII”. O problema com o abastecimento de alimentos se tornou, em todas as partes, um problema constante, agudamente sentido em todas as comunidades municipais – na Itália, assim como também na Alemanha. Na França do século XVII, insuficiência de alimentos, fomes e períodos de relativo bem-estar revezavam- se com perversa regularidade. Tempo ruim e colheitas magras causaram a fome geral de 1661-1662. Mendigos das áreas rurais aglomeravam-se nos portões das cidades e de instituições de caridade, pedindo pão33. A Inglaterra

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Sobre esse aspecto, observa Tuan (Op. Cit., p. 104): “Os governos tinham o poder e a organização para arrecadar impostos e recrutar homens para a guerra contra os inimigos humanos. Por que não puderam lutar contra a natureza e pelo menos para mitigar a aflição do povo? Alguns governantes não tinham disposição; de fato o relato de Kalhana sobre a fome na Caxemira (917-918 e 1099-1100) sugere que os reis e ministros abertamente procuravam tirar proveito pessoal dos desastres naturais”.

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Em abril de 1693, um funcionário subalterno da diocese de Beauvais observou: um número infinito de infelizes almas, débeis pela fome e desgraça e morrendo de miséria e falta de pão nas ruas e praças, nas cidades e no campo, porque não tendo trabalho ou ocupação carecem de dinheiro para comprar pão. Procurando prolongar um pouco suas vidas, estes pobres homens comem coisas impuras, como gatos e carne de cavalos esfolados e jogados em

dos Tudor e Stuart, igualmente não escapou da fome. Pessoas morriam por falta de alimento no norte da Inglaterra em 1587-1588, 1597 e 1623.

Mesmo não trazendo à luz o drama histórico da fome em todo o mundo, não é difícil concebê-lo como um drama mundial a perseguir a humanidade e que tem uma dimensão espaço-temporal. Depois, como bem diz Minayo (1995, p. 21) “a fome é um fenômeno histórico que povos e nações conseguiram erradicar e que outros povos e nações vêem-na aprofundar-se como um mal que se alastra e assola a sua gente, torna-a frágil e dependente”. Se ela é um problema milenar não se quer considerá-la ao mesmo tempo do ponto de vista fatalista, insolúvel e eterno, como determina o imperialismo econômico dos países centrais obcecados pela ambição do lucro e interessados numa produção, distribuição dos alimentos como um fator puramente econômico, e dirigidos no sentido de seus exclusivos interesses financeiros em detrimento de sua função social. Segundo Castro (1968b, p. 49)

A civilização européia contemporânea, que alcançou seu apogeu com a expansão do horizonte geográfico do mundo, depois do século XVII, e pela economia colonial que se lhe seguiu, não convinha de modo algum divulgar, no seu meio de aparente esplendor, a feia tragédia da fome, produto, em grande parte, desse colonialismo desumanizado. Produto, antes de tudo da desumana exploração das riquezas coloniais por processos de economia devastadores, monocultura e latifúndio, que permitiam a obtenção, por preços vis, das matérias-primas indispensáveis ao seu industrialismo próspero.

Percebe-se dessa forma, que foram, sobretudo, os interesses de ordem econômica que omitiram do mundo tragédias como as ocorridas na Ásia ou na Europa, acima mencionadas. E nesse sentido, a literatura ocidental indissoluvelmente ligada ao patrimônio mental desta mesma cultura, servindo aos seus interesses e deslumbrada pelo seu falso esplendor, fez-se, pois, cúmplice do silêncio34, que ocultou aos olhos do mundo a verdadeira situação

montes de excrementos... Outros desenterravam os feijões e sementes de milho plantados na primavera (TUAN, 2005, p. 108).

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Para Castro (1968b, p. 50), Poucos foram os escritores corajosos que se aventuraram a violar o tabu e trazer à luz da publicidade as negruras desse mundo subterrâneo da fome e da miséria: um Knut Hamsun, no seu magistral romance Fome – verdadeiro relato minucioso e exato das diferentes, contraditórias e confusas sensações que a fome produzia no autor; um Panaït Istrati, vagando esfomeado pelas luminosas planícies da Romênia, um Felekov e um Alexandre Neverov, narrando com dramática intensidade a fome negra na Rússia em convulsão social; um George Fink sofrendo fome nos subúrbios cinzentos e sórdidos de Berlim, um João Steinbeck, contando, em Vinhas da Ira, a epopéia de fome da família Joad, através

de enormes massas humanas debatendo-se dentro do círculo de ferro da fome. (CASTRO, 1968b, p. 49). Silêncio que fazia-se sentir não apenas na literatura em seu sentido mais amplo, mas especialmente na literatura acadêmica encastelada pelo positivismo que a impedia de trilhar por uma perspectiva social mais crítica, centrada na verdadeira realidade e que fosse capaz de desmistificá-la. Nesse contexto inseria-se a Geografia, que influenciada pelo possibilismo vidalino, bem como pelas teses ratzelianas, eludia-se da esfera social, optando por uma análise mais naturalista, como se verá na seqüência.

IV Capítulo – Revisitando os Pressupostos da Fome como uma