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Com o presente trabalho pretendeu-se abordar o elemento materno retratado no filme “Tudo Sobre a Minha Mãe”, de Pedro Amodóvar. Escolher uma obra artística como fonte de reflexão representa um elogio à capacidade do objecto criativo de fazer sonhar o receptor, passando o último, desta forma, a criar também, a levantar questões e, eventualmente, a resolver problemas. A obra criativa permite reflectir sobre os mais variados temas e ainda, através do belo, dar significado às adversidades da realidade de uma forma gratificante.

Pedro Almodóvar é um cineasta que procura filmar um mundo que nos seja familiar, sendo a sua obra contemporânea de valor, tanto cinematográfico, como social e artístico, representando o universo feminino de forma bastante proeminente. As personagens masculinas são alvo de maior censura, sendo o machismo enraizado na sociedade, considerado pelo autor como causa dos infortúnios da mulher.

Pelas palavras de Almodóvar (1999) sobre o filme, consagrado às mulheres: “Contra este machismo de que me lembro na minha infância, as mulheres fingiram, mentiram, esconderam, e dessa forma permitiram que a vida fluísse e se desenvolvesse, sem os homens o descobrir ou obstruir. Não o sabia na altura mas esse iria ser um dos assuntos do meu 13º filme, a capacidade das mulheres de representar, de fingir. E a maternidade difícil. E a solidariedade espontânea entre as mulheres. Eu sempre dependi da gentileza dos estranhos, diz Blanche Dubois de Tennessee Williams. Em Tudo Sobre a Minha Mãe, os estranhos gentis são mulheres (…).

O filme relata a história de Manuela, uma enfermeira que perde o seu filho Esteban, de 17 anos, num acidente. A grande motivação do rapaz consistia em conhecer a identidade do pai, algo que a mãe sempre lhe tinha ocultado. Em memória de Esteban, Manuela sente a necessidade de procurar o pai do jovem. Com esta intenção viaja para Barcelona, onde reencontra o seu antigo amor, o qual se tornara numa mulher conhecida por Lola.

Foi possível reflectir que o desaparecimento de Esteban, além de se poder relacionar com o envolvimento intenso que o mesmo manifestava relativamente à sua mãe, se associou também à ausência do pai, da figura paterna. Esteban empreendia uma busca incessante, como que

perseguia o paterno e o materno, na procura da relação parental. Esta perseguição, no fundo uma perseguição de si próprio, da sua identidade, viria a desencadear uma ruptura trágica, havendo como que uma impossibilidade de acontecerem outras relações vivas, além da vivida com a sua mãe.

Na literatura psicanalítica, diversos autores referem-se à importância da figura paterna enquanto agente facilitador da separação-individuação da criança face à mãe. O filme descreve justamente um jovem em busca do pai, enquanto elemento ausente da sua vida, figura que havia sido excluída pela mãe, dentro de uma relação mãe-criança de grande exclusividade.

A ausência do terceiro elemento na díade mãe-bebé repercute-se na criança, bem como na mulher. É fundamental que a mulher, na nova qualidade de mãe, possa reinvestir o feminino, ao desejar e ser desejada pelo companheiro, o que melhor poderá proteger na criança, o seu lugar de filho desejado, veiculando-lhe a possibilidade de viver uma vida psíquica autónoma. Fora da díade, pode a criança então, constituir-se como um outro a ser descoberto.

No que concerne à personagem Agrado, a mesma possibilitou reflectir sobre a construção da identidade no indivíduo, sobre a identidade feminina e a masculina e sobre o que possa ser uma «identidade sonhada», já que se trata de uma «mulher», que nascera homem.

A formação da identidade sexuada inicia-se muito precocemente, exterior mesmo ao bebé, isto é, no imaginário dos pais com o seu bebé sonhado. Depois, o processo irá prosseguindo, de acordo com as manifestações para com o bebé, as quais poderão reafirmar a sua identidade sexual e estimulá-la ou, pelo contrário, ser geradoras de ambiguidade, o que poderia ter ocorrido numa personagem como a de Agrado.

Ao nível das dinâmicas relacionais vividas pela referida personagem, assistiu-se a uma constante necessidade em ajudar o outro, posição ligada à função materna, de cuidado e protecção. Pode-se encontrar uma ligação entre este tipo de relacionamento com o outro, e o eventual desejo no travesti de se tornar uma «mulher fálica». Os seios implantados em Agrado, além de a tornarem mais semelhante a uma mulher, revestem-se de um valor simbólico, já que reenviam para a função materna, de alimentar, nutrir, cuidar. Esta crença de

potência da «mãe fálica», pode permanecer no indivíduo ao nível do ideal de ego, representando a «completude» de forma idealizada, com origem na falha narcísica.

Neste contexto, estabeleceu-se uma ponte entre o funcionamento segundo um ideal de ego narcísico, materno e o funcionamento assistido em Agrado, o qual reenviaria para uma relação com o outro de ajuda, cuidadora, assente no poder materno da nutrição. Ao nível do corpo, esse ideal de ego onde figura uma «mãe fálica», poderia ter mobilizado na personagem, os movimentos de transformação do seu corpo no sentido da procura de uma «completude anatómica».

Finalmente, relativamente a Lola, foi possível descobrir uma personagem de grande ambiguidade, na relação com o próprio corpo e nas suas escolhas de objecto, femininas e masculinas. Um elemento considerado essencial em Lola será a sua necessidade de preservação do masculino, através do desejo de ser pai de um filho menino.

Considerou-se que tal seja indicador da necessidade de confirmação de uma masculinidade insegura e ameaçada em Lola, em simultâneo com a manutenção do órgão genital masculino, o qual é visto como fertilizador, na personagem. Assim, sugeriu-se que a presença de uma angústia de castração fálica ou de incompletude seja passível de determinar uma angústia de morte, contra a qual o fantasma do desejo de ter uma criança, representa uma defesa possível, enquanto reduplicação do próprio sujeito.

A repetição foi o elemento mais saliente encontrado no estilo narrativo de Almodóvar, não só neste filme em particular, como na sua filmografia. O autor alude recorrentemente à dificuldade em quebrar um ciclo, como se as vivências que nos apresenta ficassem por concluir, por completar num tempo posterior… E assim por diante, num movimento sem termo.

Finaliza-se este estudo com palavras de poeta, mantendo a valorização do contributo das obras artísticas para o pensamento e conhecimento, palavras que se enquadram no tema do materno e, sobretudo, no desenrolar da maternidade quando vivida em moldes de grande exclusividade entre a mãe e a criança.

O seu desejo não era um desejo corporal.

Era desejo de ter um filho,

de sentir, de saber que tinha um filho, um só filho que fosse, mas um filho.

Procurou, procurou pai para o seu filho. Ninguém se interessava por ser pai. O filho desejado, concebido

longo tempo na mente, e era tão lindo, nasceu do acaso, o pai era o acaso.

O acaso nem é pai, isso que importa? O filho, obra materna,

é sua criação, de mais ninguém Mas falta-lhe um detalhe, o detalhe de pai.

Então ela é mãe e pai do seu garoto, a quem, por acaso,

falta um lobo de orelha, a orelha esquerda.

“Maternidade”, Carlos Drummond de Andrade, cit. por Graña, 1996 in “Organizações perversas e transtornos do self”

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