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III DA FINITUDE DA VERDADE

No documento A verdade em ser e tempo (páginas 99-101)

A análise da verdade conduzida nos capítulos precedentes buscou revelar alguns aspectos centrais desde onde se pode alcançar uma compreensão mais profunda da questão, assim como ela é posta em Ser e Tempo. Focou-se, num primeiro momento (cap. I), a importância de se perceber a nítida distinção entre verdade fundada e verdade fundante; quer dizer, entre aquela idéia de verdade como propriedade das proposições, como concordância, e uma verdade mais originária, enquanto condição de possibilidade da verdade das proposições. Num segundo momento (cap. II), focou-se o caráter existencial dessa verdade que se chamou de fundante. E, nisso, revelou-se o sentido da crítica heideggeriana ao conceito tradicional de verdade, ao conceito adequacionista de verdade. A crítica não visa à destruição do conceito criticado, não exige tampouco seu abandono, apenas almeja esclarecer os seus pressupostos ontológicos, que conduzem a um sentido mais profundo e mais original em que a verdade deve e tem de ser pensada. Ocorre assim um deslocamento e, com ele, um alargamento do campo onde é posto o problema da verdade: a verdade não é apenas uma questão relativa ao nível lógico-semântico (tal opinião reflete um preconceito lógico), ela se dá também e de modo mais originário na relação do ser-aí com o mundo; verdade é antes de tudo um conceito existencial.

Essa manobra heideggeriana em direção de um conceito de verdade mais amplo, mais fundamental, esteve desde o princípio apoiada na inusitada interpretação do termo grego alétheia no sentido de descoberta. Uma vez que essa interpretação libertou o conceito de verdade da noção de concordância fez-se possível, então, falar de verdade em um nível antepredicativo. A verdade fundante, a verdade existencial, não possui os traços da verdade proposicional, no sentido de concordância – adaequatio intellectus et rei. Bem entendida, a concordância é apenas uma derivação distante e extrema daquela verdade mais originária, abordada em termos de descoberta existencial. E, mesmo na proposição, a verdade ocorre primeiramente como descoberta e não como concordância. De acordo com a interpretação de Heidegger, em sentido originário, uma proposição é verdadeira na

medida em que ela descobre o ente em si mesmo. O ser-verdadeiro (verdade) de uma proposição tem de ser entendido, portanto, no sentido de ser-descobridor. Somente depois, graças a um processo de derivação em que essa compreensão mais profunda da verdade resulta ocultada, a proposição pode ser tomada como algo simplesmente dado e confrontada com o seu objeto, de modo a se extrair daí um valor de verdade no sentido de concordância.

Uma definição da verdade em termos de concordância, além de ser, nas palavras de Heidegger, “por demais vazia e universal”, não consegue se sustentar em seus fundamentos, pois, sendo a concordância um fenômeno em muitos aspectos derivado, não pode ela, por si só, dar conta do processo de fundamentação do qual depende. A concordância é apenas um desdobramento extremo daquilo que a tradição mais antiga da filosofia, numa compreensão pré-filosófica, já havia estabelecido como fundamento “evidente” (selbstverständlich) do uso terminológico de alétheia: a descoberta, o descobrir. Essa compreensão originária, resgatada da antiga tradição, ganhou confirmação fenomenal com a analítica existencial, que pôde inclusive indicar o modo como o fenômeno originário da verdade modifica-se até chegar à idéia de concordância e, também, o fato desta predominar em detrimento da outra que é ocultada. (A necessidade desse fato está ligada, como já vimos anteriormente (cap. I, seção 1.3.2), ao modo de ser próprio do ser-aí, que tende a se compreender a partir do que vem ao encontro dentro do mundo. Mas não vamos arrolar novamente todos os passos desse processo, apenas indicar a pertinência daquela discussão para o que aqui é posto).

Munido de sua reinterpretação da alétheia e das conquistas alcançadas pela analítica existencial, Heidegger acha-se, então, em condições de sustentar a posição de que a verdade não possui a estrutura de uma concordância entre conhecimento e objeto, senão que é o descobrir que responde pelo modo de ser mais originário da verdade. Os entes são verdadeiros na medida em que estão descobertos; as proposições são verdadeiras na medida em que contêm uma descoberta; e o ser-aí é verdadeiro, primordialmente verdadeiro, na medida em que exerce a ação de descobrir.

Num certo sentido, essa determinação do modo de ser da verdade como descoberta já estava mais ou menos clara desde o início desta problematização. Mas o retorno a este aspecto cumpre agora o propósito de preparar a discussão das polêmicas

afirmações deferidas por Heidegger na parte C do § 44, onde ele diz, entre outras coisas, que nem sempre precisou existir a verdade, que nem sempre precisará existir a verdade, que a verdade é relativa ao ser-aí, que não existem verdades eternas, etc. Ou seja, temos aí a defesa de uma idéia de verdade finita, que vem fazer frente às pretensões da filosofia tradicional em afirmar a existência de verdades eternas.

Tomado no contexto do § 44, o item C pode ser encarado como uma espécie de conclusão, onde são apresentadas as conseqüências extraídas das duas partes anteriores em que se dá, respectivamente, a discussão do conceito tradicional de verdade e a elaboração do conceito existencial de verdade. Conseqüências estas que, como já indicamos, vão se chocar duramente com a tendência tradicional de colocar a verdade num horizonte de necessidade e eternidade. Infelizmente, as questões apresentadas neste breve tópico de Ser e Tempo não estão tão articuladas e desenvolvidas quanto a sua relevância nos faria supor que estivessem. Isso tem dado margem a muitos mal entendidos, como é o caso, por exemplo, da famosa apreciação crítica apresentada por Ernest Tugendhat em

Wahrheitsbegriff bei Husserl und Heidegger185.

Embora possamos adiantar desde já certa discordância com relação a interpretação do conceito heideggeriano de verdade apresentada em Wahrheitsbegriff bei

Husserl und Heidegger, sua análise pode ajudar a realçar alguns aspectos centrais do tema

em questão. Por isso, uma breve apresentação da crítica de Tugendhat terá lugar no contexto da discussão que se segue acerca do modo de ser da verdade e sua dependência em relação ao ser-aí (3.1). Depois disso, abordaremos a idéia da verdade finita (3.2) e o sentido em que a verdade deve ser pressuposta (3.3).

No documento A verdade em ser e tempo (páginas 99-101)