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Certos aspectos autorreferenciais citados no início do tópico anterior estabelecem uma relação com outra linguagem e arte: a fotografia. Valeria de los Ríos (2015) afirma que a fotografia começa a aparecer, ao menos, desde 1980, em variados formatos que vão desde a crônica até a carta pessoal. Anteriormente, surge também em textos literários nos escritos de autores como José Martí, Rubén Darío, Horacio Quiroga, Roberto Arlt, entre outros, manifestando-se “De un modo referencial o ekfrástico, a veces nombrada explícitamente o sólo sugerida” (RÍOS, 2015, p.1). Contudo, uma das primeiras narrativas em que a fotografia surge agregada dentro do texto literário é Nadja (1928) de André Breton. Na América Latina, Brizuela (2014) cita três narrativas que, no século XX, incluem a fotografia, que são: a primeira edição de Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha; La Vorágine (1924), de José Eustasio Rivera; e Evaristo Carriego, de Jorge Luis Borges. Entretanto, a autora comenta que

as fotografias são suprimidas nas edições seguintes dessas três narrativas30.

Na narrativa de Bellatin, a fotografia aparece primeiramente na capa (figura 1) – uma fotografia do próprio Bellatin em um cenário que, de certa maneira, compila ou sintetiza parte do que encontraremos dentro do livro, por exemplo, na Obra reunida. Na imagem, vê-se que ele está em um lugar íntimo, talvez um quarto, encontra-se encostado em uma parede que, por sua vez, tem uma janela. Na janela, às costas do autor, repousa um aquário, bem como na sua frente, podendo remeter, por exemplo, aos aquários descritos em seu relato Sallón de belleza. Uma parte interessante a ser considerada e que pode ser comparada ao personagem Shiki Nagaoka é que, na imagem da capa, o plano fotográfico se realiza de tal modo que a sombra projetada sobre o autor faz com que o braço deficiente praticamente integre-se ao espelho da cama, impossibilitando-nos de diferenciar um do outro e de perceber, então, que ele não tem um dos braços. Algo semelhante, também, é perceptível nas fotografias atribuídas a Shiki Nagaoka dispostas no dossiê fotográfico de Shiki Nagaoka: una nariz de ficción, que analisaremos mais a frente.

A imagem descrita é do livro que compila uma parte de sua obra Obra reunida. Obviamente, não se trata de parte das narrativas propriamente ditas, porém de elementos do projeto gráfico e editorial. No entanto, em razão das porosidades entre o dentro e o fora do literário em suas obras, ela acaba por tornar ainda mais espessa a relação entre a literatura e o fora de si, nos textos literários em análise. No livro de Bellatin, tal como no relato sobre Shiki Nagaoka, há uma relação entre o revelar e o velar a deficiência, uma vez que, apesar de muito citado dentro da narrativa, o nariz aparece borrado no dossiê fotográfico. Do mesmo modo, a fotografia de Bellatin na capa de sua Obra reunida também “esconde”, através do jogo de cores, a deficiência.

30 Ainda no século XIX, algumas fotografias também são incorporadas a uma edição de Martín Fierro, de José

Hernández, originalmente publicado em 1872 (la ida) e 1879 (la vuelta). Tais fotografias procuram retratar o universo gaucho, funcionando como ilustração, sem qualquer vínculo mais imediato com o poema. Duas delas aparecem reproduzidas na edição de Luiz Sáinz de Madrano, citada nas referências deste trabalho.

Figura 1: Capa de Obra Reunida

Fonte: Bellatin, 2005

Em Bellatin, a fotografia funciona como recurso autorreferencial de três formas: ao revelar seus gostos pessoais pela fotografia, seus modos de escritura e por uma alusão paródica à sua própria deficiência. No primeiro caso, a fotografia surge na narrativa de Bellatin como um objeto fronteiriço dentro do campo literário, que, por um lado, trata dos seus gostos pessoais pela fotografia – metaforizado pelos trabalhos fotográficos de Shiki Nagaoka – e, por outro lado, expande a narrativa sem deixar de se autorreferenciar: “Nessa zona porosa de limite, da fronteira, espaço e momento sempre de contágio, de contaminação e de metamorfose, tanto a literatura se transforma em outras artes como as demais artes são potencialmente transformadas em literatura” (BRIZUELA, 2014, p.13-14).

Em Shiki Nagaoka: una nariz de ficción, o narrador diz: “La hermana no parece haber pensado tampoco, en el incipiente interés en que los años previos a su reclusión Shiki Nagaoka mostró por la fotografía” (BELLATIN, 2005, p.217). Ou, ainda:

Años después se supo que el interés de Shiki Nagaoka por la fotografía, sólo estaba relacionado con su temprana pasión por lo literario. Consideraba un privilegio contar con imágenes visuales enteras que, de algún modo, reproducían al instante lo que las palabras y los ideogramas tardaban tanto en representar (BELLATIN, 2005, p.217).

Nesse relato, a fotografia tematizada atua como uma busca – por meio do fotográfico – de outros modos e meios de escrita (BRIZUELA, 2014), percebidos primeiramente pelo gosto de Shiki Nagaoka pela fotografia, justificado por sua relação com o literário. É tão somente a partir do contato de Shiki Nagaoka com Tanizaki Junichiro que ele passa a perceber a relação da fotografia com um elemento de manipulação da realidade, tão presente em Shiki Nagaoka:

una nariz de ficción, dadas as condições de sua criação e de sua tentativa de provar-se como

real, através de imagens aleatórias contidas no dossiê fotográfico. Para tanto, a fotografia aparece atrelada à questão de velocidade, rapidez que a escrita não permite, sendo, literalmente, instantânea (BRIZUELA, 2014).

Em contrapartida, as fotografias apresentadas no dossiê, ao menos no plano hipotético, deveriam confirmar as referências paródicas que Bellatin faz à deficiência, utilizando-se do nariz gigantesco de Shiki Nagaoka, mas a negam, uma vez que, em todas as fotografias em que aparece o protagonista, esse aspecto de sua aparência está borrado ou imperceptível. Cabe destacar que as fotografias surgem primeiro na narrativa de Bellatin como uma relação com o literário, isto é, para Shiki Nagaoka elas conseguiam expressar com imediatez o que as palavras tardavam em conseguir em suas representações, contudo é um paradoxo, considerando que as fotografias não são referentes diretos dentro do texto literário, nem especificamente na literatura proposta por Bellatin, tendo em vista que elas, justamente, problematizam qualquer processo de referência.

Em Meshugá31, por sua vez, a fotografia também se estabelece como um procedimento

que valida uma continuação narrativa, uma vez que a fotografia de Jacques Fux aparece na orelha da contracapa do livro como um referente à iconografia judaica presente na capa, dado o modo como iconografia de capa e fotografia de autor estão dispostas no projeto gráfico:

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Em La ansiedad e Meshugá as fotografias não aparecem impressas no livro, com exceção das imagens de capa e contracapa.

Figura 2: Capa do Livro Meshugá

Fonte: Fux, 2016 Fonte: Fux, 2016

Figura 3: Contracapa de Meshugá

Fonte: Fux, 2016

O título do romance de Fux tem sua origem no iídiche – um dialeto de uso judeu – e seu significado é “louco”, pré-anunciado também no título do romance, o que já estabelece um contato com o que se encontra nas fronteiras da narrativa, dentro-fora do literário. As figuras presentes na capa de Meshugá – ilustradas por Frede Tizzot – sugerem uma referencialidade relacionada à iconografia das famosas personagens biografadas no decorrer do romance. Na imagem, essas personagens brotam da cabeça de um homem, emaranhadas aos seus cabelos. Além disso, aparecem, também, símbolos que remetem ao judaísmo, ao nazismo e a outras questões abordadas na narrativa.

Pode-se questionar se esse homem de cuja cabeça saem as personagens, tal como os fios de cabelo, seria a representação do narrador ou do próprio escritor, tendo em vista que, na narrativa, essas duas funções se imbricam de forma que parecem indissociáveis uma da outra. Na orelha do livro, a foto do autor e, consequentemente, sua posição de enquadramento remetem à imagem que ilustra a capa do livro, o que também estabelece um paralelo autorreferencial e intertextual possível.

Destacamos, ainda, que a posição em que se encontra a cabeça – pendida para baixo e com os olhos perdidos, como os melancólicos – direciona a leitura para um aspecto que é recorrente na narrativa e na construção dos sentidos de Meshugá: a depressão, o suicídio e o mal estar por ser judeu e não aceitar-se como tal, chegando até a negar sua própria cultura ou revoltar-se contra ela, de modo a posicionar-se ao lado dos opressores. Todos os fragmentos de histórias contadas em Meshugá apresentam esse aspecto em comum: a negação de si próprio, através da negação da cultura e dos costumes tipicamente judeus, como uma forma de inserção no mundo do outro com o anseio de poder ser aceito e inserido no mundo desse outro, mesmo que esse mundo indique a opressão extrema à sua cultura, ao seu povo e a si, também.

Por sua vez, em La ansiedad há um predomínio do virtual que se estabelece na construção narrativa pelo uso de e-mails, conversas em chats e intervenções de textos teóricos. Desse modo, o próprio formato do livro aponta para aspectos experimentais, na medida em que sua forma de narrar joga com diversas tipologias textuais – devemos considerar que sua publicação ocorreu em 2004, momento em que estavam emergindo as primeiras redes sociais e o próprio uso da internet ainda estava se popularizando na América Latina. Na capa do livro, a imagem de um homem nu e exposto por meio de uma iconografia que representa os pixels pode sinalizar inúmeras coisas: as relações homossexuais, o erotismo do corpo nu, as relações estabelecidas via redes sociais e seu caráter de ocultamento dos envolvidos, como podemos ver na imagem abaixo:

Figura 4: Capa do livro La ansiedad

Fonte: Link, 2004

A imagem de capa dialoga, também, com o relato desenvolvido na narrativa do romance e inscrito nos chats eróticos. Essa exposição aponta para a tecnologia como um elemento importante para o modo de narrar, a ambiguidade das referências identitárias nas relações virtuais no relato, como, por exemplo, a constante mudança de nicknames do principal personagem. No dossiê de imprensa, cujo primeiro questionamento ao autor sobre se

La ansiedad é se o romance é de um crítico e quais as relações que se estabelecem entre

crítica e ficção, Daniel Link afirma:

[…] a la hora de decidir la “etiqueta” que figura en la solapa de mis libros o debajo de mi imagen en mis esporádicas presentaciones televisivas, me gusta decir que soy “catedrático y escritor”. En mi perspectiva, que no es sólo mía, sino de muchos, no hay una diferencia entre escribir prosa de ficción y escribir prosa crítica. La novela siempre fue (y lo sigue siendo) un capítulo importante de la crítica del mundo (LINK, 2004, sem número de página).

A resposta de Link, por sua vez, nos faz refletir acerca das relações entre autor/crítico e a própria ficcionalização do autor presentes nos processos diegéticos frequentes na literatura

contemporânea. Figueiredo (2015), ao citar Bakhtin32, afirma que é cada vez mais comum o autor se pronunciar e comentar suas próprias narrativas em nosso mundo midiatizado, todavia ressalva que ele – o autor – não é o detentor de todos os sentidos presentes em sua produção narrativa. Essas aparições cada vez mais constantes do autor – considerando-se que, apesar de afirmar que são poucas suas apresentações televisivas, Link faz por onde aparecer em sua própria narrativa – apontam para um retorno do autor que se afirma por meio da proliferação das escritas de si (FIGUEIREDO, 2015) e de imagens de si.

Quanto à fotografia, ela é um elemento presente como linguagem não verbal em

Divórcio e Shiki Nagaoka: una nariz de ficción33. Contudo, ela figura nos relatos de forma

distinta, ainda que, em alguns pontos similares, se toquem, como veremos no decorrer da análise. No caso do romance de Lísias, ela aparece mais atrelada à figura do autor, autorreferenciando-o. Já na narrativa de Bellatin, ela o referencia de forma mais sútil, isto é, remetendo aos recursos que o autor usa e apenas citando em suas legendas a questão da deficiência de Shiki Nagaoka, cujo referente é, como vimos, o próprio Bellatin.

Em Lísías, na primeira vez em que há uma alusão a fotografias dentro do romance – quando o narrador conta um momento crucial do campeonato de xadrez do qual participa –, o narrador deixa que passe em sua mente uma sequência de imagens em formato fotográfico que desestabilizam seu jogo praticamente ganho: “Quando confirmei, repassando na cabeça a variante ganhadora pela terceira vez, perdi a concentração. Uma série de fotografias invadiu- me a cabeça” (LISIAS, 2013, p.33). Do mesmo modo, as fotos que surgem a partir do km 8 da história narrada, ao mesmo tempo em que colaboram para a desestabilização da escritura, apontam para mais uma fragmentação dentro da narrativa. E, paralelamente a esse elemento desestabilizador, elas também sinalizam o sentimento de recuperação da pele do narrador- protagonista, isto é, da superação do trauma do divórcio pautada na reconstrução de lembranças/memórias.

Cada fragmento é separado por asteriscos, e a mesma coisa ocorre com as imagens, como se elas, por si só, fossem capazes (e são) de contar outras histórias, outros fragmentos da vida do narrador que, bem como os fragmentos verbais, apresentam diversos núcleos, que nem sempre são unilaterais ou focam em apenas uma história. Em sua totalidade, onze fotografias são apresentadas para o leitor, a partir do quilômetro oito. Entretanto apenas uma

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Bakhtin (2003), em O autor e a personagem na atividade estética fala de uma usual confusão entre o que nomeia como autor-criador e autor-pessoa. O autor-criador é “a consciência que abrange a consciência e o mundo da personagem, que abrange e conclui essa consciência da personagem com elementos por princípio transgredientes a ela mesma e que, sendo imanentes, a tornariam falsas” (BAKHTIN, 2003, p.11).

33 Ela também aparece nos romances como recurso narrativo associado à estrutura fragmentária, como veremos

delas está no meio de um fragmento de texto verbal, como se fizesse parte daquela história, apesar de não estabelecer nenhuma relação óbvia com o que se narra no fragmento. As fotografias são elementos que desestabilizam a estrutura da narrativa e levam ao questionamento dos vínculos entre texto e imagem no relato, mas, mesmo não havendo nenhuma aparente relação com os fragmentos, elas conseguem manter um ritmo que é quebrado com a mudança de organização de apenas uma imagem:

Figura 5: Fotografia presente em Divórcio

Figura 6: Fotografia presente em Divórcio

Fonte: Lísias, 2013

Figura 7: Fotografia presente em Divórcio

A última imagem presente na narrativa de Divórcio (figura 7) surge como uma problematização dentro da problematização da relação entre texto e imagem, isto é, a falta de relação com o fragmento, notado pela falta do asterisco – ainda que esteja dentro dele – despista o leitor e sugere um questionamento possível acerca das relações que se estabelecem entre o verbal e o visual. As imagens acima e as outras fotografias presentes em Divórcio aparentemente deveriam apenas aparecer como confirmação de um pacto de leitura e que funionariam como comprovação da veracidade do que ali é narrado, isto é, a recuperação de fotos do avô e da infância do autor, mas, para Vanesa Molnar Maluf (2016), o uso de elementos como a fotografia, a citação de outros livros do autor, o uso das redes sociais, ao contrário de apresentar uma coincidência entre o autor e a personagem, representa, sobretudo, uma construção simultânea dos dois. Sendo assim, todos esses elementos que compõem um “espaço autobiográfico” dentro da narrativa de Lísias são aspectos que atendem ao objetivo do autor de se performar, através dos vestígios de sua vida, que ele ficcionaliza. Dessa forma, no caso de Divórcio, as fotografias nada comprovam; ao contrário, confundem o leitor, distanciando-se da referencialidade apontada pelas escritas de si.