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Durand, para fazer saltar aos olhos o sentido e a vitalidade do imaginário pergunta-se: quais foram, no decorrer dos tempos, as valorações, as formas de pensar a imagem? Várias aparecem, mas, predominantemente, é dentro de uma iconoclastia que se debatem as imagens até conquistarem uma brecha de luz para romperem o cárcere e libertarem consigo o entendimento sobre o imaginário.

Reducionistas, funcionalistas e estruturalistas, foram estes os encargos dados às imagens durante séculos. Durand esclarece que a imagem enquanto um modo de conhecimento, por não ser adequada ou objetiva, não conseguir atingir um objeto, bastar a si mesma e carregar consigo uma imanente transcendência (mesmo se implícita, ambígua e redundante) sempre foi desconsiderada em nome de opções religiosas e concepções filosóficas. Qualquer espécie de conhecimento que dela pudesse surtir era veementemente ignorado.

Durand acredita que o conhecimento envolve três critérios fundamentais: 1) o pensamento sempre indireto; 2) a presença figurada de uma transcendência; 3) a compreensão epifânica. Fundamentos pouquíssimo interessantes para o partido da corrente iconoclasta ocidental. Abaixo segue a prova argumentativa cedida por Durand:

À presença epifânica da transcendência, as Igrejas opuseram dogmas e clericalismos. Ao pensamento indireto, os pragmatismos opuseram o pensamento direto, o conceito; à imaginação abrangente, surgiram correntes de razões da explicação semiológica, aliando estas últimas às longas cadeias de “fatos” da explicação positivista (DURAND, 1988, p. 24).

Estas três normas correspondem aos três estados sucessivos do iconoclasmo, da extinção do símbolo. Respeitando a exposição cronologicamente invertida dos

estágios refletida por Durand, inicia-se afirmando que é com Descartes que se pode perceber uma forte depreciação do símbolo e triunfo do signo.

A imaginação era considerada por ele como a “senhora do erro”. “Eu penso” era sua máxima. Logo, o pensamento, o método (matemático) passa a ser o único símbolo do ser.

Leibniz e Newton, no século XVIII, ofereceram resistências ao cartesianismo, mas estavam inspirados demais pelo empirismo escolástico, não conseguindo romper, assim, com o enfoque iconoclasta, lamenta Durand. E sintetiza que todo o saber dos dois últimos séculos se resume a um método de análise e de medida matemática mesclada à preocupação com a enumeração e a observação. Neste espírito inaugura-se a era da explicação cientificista que, no século XIX, desemboca no positivismo.

Essa concepção ‘semiológica’ do mundo será a concepção oficial das universidades ocidentais, especialmente da universidade francesa, filha mais velha de Auguste Comte e neta de Descartes (DURAND, 1988, pp. 16-25).

Assim, tem-se a idéia de que o mundo é passível de exploração científica. E principalmente: somente ela tem o direito de ser legitimada como conhecimento. Como mostra Durand, o ser foi reduzido ao tecido de relações objetivas dele resultante. Fim, como diz, do sentido figurado, da “recondução à profundidade vital do apelo ontológico” (DURAND, 1988, p. 27).

As repercussões do cartesianismo e cientificismo na imagem artística, segundo Durand, foram a minimização do papel do artista e do ícone. Perderam lugar numa sociedade que pouco a pouco eliminou a função essencial da imagem simbólica. A arte do século XVII e XVIII foi reduzida a puro “divertimento”, a puro

“ornamento”. E, na anarquia das imagens que emergiram no século XIX, o artista intentou fundamentar sua “evocação” além do deserto do cientificismo (1988, p. 27). A fase dois do iconoclasmo presente alguns séculos antes do cartesianismo, a partir do século XIII, é o da apologia do pensamento direto, representado pelo conceitualismo aristotélico. Aqui, a implicação simbólica do platonismo4 (recondução

dos objetos sensíveis ao mundo das idéias) e conseqüente derivação para a angelologia de Valentino5 (em resposta à questão de Basilide ‘como é que o Ser

sem raiz e sem vínculo acabou chegando até as coisas’?) são desconsideradas em prol de um mundo material, o lugar do limpo, separado de um motor imóvel, manifesta Durand. O mundo da percepção, do sensível, não era mais um mundo de “intersecção ontológica” onde se epifaniza um mistério. A idéia, no conceitualismo, possui uma realidade na coisa sensível e é extraída pelo intelecto, mas só conduz a um conceito, a uma definição objetiva e com sentido próprio (1988, pp. 28-30).

Na arte este realismo perceptivo percebeu-se na passagem da arte romana para a gótica. Durand faz ver que, enquanto a primeira se caracterizava por ser indireta e por conservar uma arte do ícone que repousava no princípio “teofânico de uma angelologia”, a segunda representava um tipo de iconoclasmo por excesso. Conforme escreve, ela acentua o significante e acaba convertendo o ícone em nada além de uma imagem naturalista, perdendo seu sentido sagrado. Isso se deu porque, no conceitualismo, as artes e a consciência não tinham mais por ambição reconduzir a um sentido, mas “copiar a natureza”.

4 Segundo Durand o platonismo tanto grego como alexandrino é uma espécie de filosofia do

“algarismo” da transcendência, ou seja, implica uma simbólica. O problema platônico era a ascensão dos objetos sensíveis ao mundo das idéias, das realidades eternas, perfeitas da reminiscência que, em vez de ser vulgar memória é, ao contrário, imaginação epifânica (1988, p. 28).

5 Conforme esclarece Durand é a doutrina dos anjos intermediários, os éons que são os modelos

eternos e perfeitos desse mundo imperfeito porque separado, enquanto a reunião dos éons constitui a Plenitude (O Pleroma). Esses anjos, encontrados em outras tradições orientais, são o próprio critério de uma ontologia simbólica (...). Eles são símbolos da função simbólica que é, como eles,

O conceitualismo gótico pretende ser um decalque realista das coisas tais como são. A imagem do mundo, seja pintada, esculpida ou pensada se des-

figura e substitui o sentido da Beleza e a invocação ao Ser pelo maneirismo

da formosura ou o expressionismo do terror à feiúra (1988, pp. 31-32).

Durand sintetiza as correntes cartesianas e cientificistas afirmando que representam uma espécie de iconoclasmo por falta, por desprezo pela imagem. O conceitualismo, por sua vez, exacerba um iconoclasmo por excesso. Tudo estava fundamentado na epiderme do sentido. Esta consciência teria sido preparada, segundo o autor, por uma corrente iconoclasta mais primitiva e fundamental, a do dogmatismo da palavra.

Este terceiro estado caracterizava o momento em que a imagem transformara-se em sintema (expressão tomada por Durand de E. Alleau), ou seja, quando passava a ter a função de representar apenas um reconhecimento social, uma segregação convencional. O símbolo fora reduzido à sua potência sociológica, expressa Durand. E, numa convenção dogmática do símbolo, ele não é mais sujeito a um evento, a uma situação histórica ou existencial que revela outros sentidos. Ele encarna uma cultura e uma linguagem cultural que o transforma em dogma e em sintaxe (1988, p. 33).

Essa é a história da imagem que perdeu a abertura para a transcendência por não permitir a livre imanência. Este dogmatismo foi expresso pela Igreja, que dividiu o mundo em duas partes, a dos fiéis e a dos sacrílegos. No momento culminante de sua história, a Igreja Romana valeu-se desta divisão e não permitiu a liberdade de inspiração da imaginação simbólica. Como escreve Durand: “(...) a virtude essencial do símbolo, como já dissemos, é de assegurar, no seio do mistério pessoal, a

mediadora entre a transcendência do significado e o mundo manifesto dos signos concretos, encarnados, que através dela se tornam símbolos (1988, p. 29).

presença mesma da transcendência. Tal pretensão aparece a um pensamento eclesial como a porta aberta para o sacrilégio” (1988, p. 34).

Para Durand, o que a escolástica medieval promoveu foi a substituição do ícone pela alegoria. Porque na época do dogmatismo e do esforço doutrinário, no apogeu do poder papal, com Inocêncio III ou após o Concílio de Trento, a arte ocidental foi essencialmente alegórica. A arte católica romana fora ditada pela formulação conceitual de um dogma. Ela não conduzia com uma iluminação, apenas “ilustrava as verdades da Fé dogmaticamente defendidas” (DURAND, 1988, p. 37).

Esses três estágios do iconoclasmo apresentados às pressas aqui são as principais estruturas de organização do pensamento ocidental identificadas por Gilbert Durand.

Contudo, o autor ainda enfatiza que, somado a este denso parecer negativo acerca da imagem, surge no século XIX alguém que consegue disseminar idéias que misturam o pensamento enquanto dogmatismo sendo direto sob a verificação dos fatos reais. Autor da façanha: Auguste Comte. Assim foi, segundo Durand, a maneira pela qual se iniciou o século XX, com concepções e funções reduzidas do universo simbólico, ou seja, com uma “extinção progressiva do poder humano de relação com a transcendência, do poder de mediação natural do símbolo” (DURAND, 1988, p. 39).

Desolador. Quanta tristeza o bicho homem consegue criar ao redor de si. Após esta narrativa parece só restar a foto em primeira página dos escombros da grande tragédia sofrida pelo imaginário. Graças aos ditos populares, depois de uma tempestade, sempre vem a bonança.

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