• Nenhum resultado encontrado

3 A CIRCULAÇÃO E OS SIGNIFICADOS ATRIBUÍDOS À PRODUÇÃO ARTÍSTICA DE RAYMUNDO CELA

3.3 Imagem e semelhança

No início dos anos 1990, na cidade de Fortaleza, uma variada programação organizada por algumas instituições celebrou o centenário de nascimento de Raymundo Cela. O Instituto Histórico do Ceará498 planejou uma sessão solene em sua homenagem, no dia 19 de julho (data do aniversário de Cela), com saudações de um artista, um intelectual e alguém da família do pintor, desenhista, gravador e professor. A Galeria Ignez Fiúza realizou a mostra Clássicos Cearenses. A organização da exposição ficou a cargo da empresa Roberto Galvão Assessoria de Arte e Comunicação LTDA. Na ocasião, além de celebrar o artista aniversariante, com a exibição de alguns dos seus trabalhos, a galeria trouxe ao público obras de Vicente Leite e Antônio Bandeira. No decorrer do evento, também foram exibidos trabalhos de Carmélio Cruz, Inimá de Paula e Barrica. Aos artistas Aldemir Martins, Floriano Teixeira, Roberto Galvão, Mesquita, José Guedes e Sérgio Lima, coube expor trabalhos produzidos em suas linguagens próprias, mas, estabelecendo, de alguma maneira, um diálogo com a produção de Cela499. A exposição se deu entre os dias 8 e 18 de março de 1990, e também comemorou os vinte anos de atuação da Galeria Ignez Fiúza na capital cearense500. No Museu de Arte da UFC (MAUC), aconteceu a mostra Raymundo Cela – centenário de nascimento (1890-1990), de julho a setembro do mesmo ano.

A exposição comemorativa realizada pelo MAUC, instituição onde se encontra o maior número de obras do homenageado, apresentou ao público uma parte dessa coleção. Ao

      

497 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 9.ed. São Paulo:

Martins Fontes, 2007. p. 95.

498 “O Instituto do Ceará foi fundado em 4 de março de 1887, sendo a mais antiga instituição cultural do nosso

Estado e uma das mais antigas do Brasil. A instituição tem como finalidade o estudo e a difusão da História, da Geografia, da Antropologia e ciências afins, especialmente no que se refere ao Ceará.” Disponível em: https://www.institutodoceara.org.br/historia.php Acesso em: 26 de fevereiro de 2017.

499 NO CENTENÁRIO DE CELA, HOMENAGENS À ORIGINALIDADE. O Povo, 25 fev., 1990, p.1. (Vida &

Arte); RAIMUNDO CELA – O CENTENÁRIO DO ARTISTA COM A DIMENSÃO DO MUNDO. Tribuna do Ceará, Fortaleza, 19 jul., 1990, p. 1. Acervo: Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel, Fortaleza/CE.

Pesquisa realizada em 2008.

500 RAIMUNDO CELA, VICENTE LEITE E BANDEIRA REUNIDOS NA MOSTRA CLÁSSICOS

CEARENSES. Diário do Nordeste, 6 mar., 1990, p. 1. (Caderno 3). Acervo: Biblioteca Pública Governador

todo, foram expostas 17 pinturas, 17 gravuras e 35 desenhos de Cela. A pesquisa e o texto publicado no catálogo são de autoria do museólogo Henrique Medeiros Barroso. Editado no formato 22 x 26,5 cm, o impresso traz a reprodução das imagens de alguns dos trabalhos do artista, sobretudo desenhos e gravuras, além de dados biográficos, numa breve cronologia, e a lista das obras expostas com os seus respectivos títulos e informações técnicas501. Também foram exibidas as medalhas outorgadas a Raymundo Cela em dois Salões: pequena medalha de ouro no Salão Paulista de Belas Artes (1943) e duas medalhas de ouro, em pintura e gravura, recebidas durante a realização do Salão Nacional de Belas Artes (1947). Mais uma vez, Eunice Medeiros Cela compareceu à abertura da exposição502.

Figura 45: Capa do Catálogo da Exposição

Raymundo Cela: centenário de nascimento (1890-1954). Fonte: MAUC, 1990.

Figura 46: Reprodução de desenhos. Catálogo Exposição de 1990. Fonte: MAUC.

      

501 BARROSO, Henrique. Raymundo Cela: centenário de nascimento (1890-1954): catálogo de exposição, 19

jul. – 29 set., 1990, Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará – MAUC. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1990, s/n.

O texto de Henrique Barroso, produzido para exposição comemorativa, recebeu o seguinte título: Raimundo Cela – um artista identificado com os tipos humanos regionais. Dividido em duas partes, a primeira foi dedicada à trajetória de Cela e as tensões que, possivelmente, o artista tenha experimentado diante da sua formação acadêmica: quando temas mitológicos, alegóricos e cenas da vida burguesa tinha lugar de destaque, e o desejo de Cela era dedicar-se à produção de tipos humanos populares. Para o autor, Cela manteve-se mais concentrado nas características físicas e regionais da figura do homem do povo503. Argumento que não difere dos demais apresentados até o presente momento. Contudo, na segunda parte, intitulada Tradição e Renovação, o museólogo afirma que Cela permaneceu ligado à tradição, ou seja, ao que se convencionou chamar academicismo. Em seguida, tece considerações acerca do estilo, onde observa uma sutil influência do impressionismo. Barroso aponta que a temática desenvolvida por Cela traz à tona “um enamorado da figura humana, apesar de sua obra refletir também uma simpatia pelos cenários naturais circundantes”504 Por fim, debruça-se sobre a fatura da gravura e da pintura elaborada por Cela, reiterando o lugar do artista dentro de uma lógica alusiva ao discurso regionalista.

Tal percepção nos remete ao conceito de mímesis, tomando-o como imperativo da semelhança. Todavia, como enfatiza o filósofo Jacques Rancière: “a mímesis não é a semelhança, mas certo regime da semelhança”505. Nesse sentido, mímesis não é entendida como cópia de um modelo, logo: “É uma maneira de fazer as semelhanças funcionarem no interior de um conjunto de relações entre as maneiras de fazer, modos da palavra, formas da visibilidade e protocolos de inteligibilidade”506. É por isso que tais discursos acerca da produção artística de Raymundo Cela adquirem eficácia simbólica nos mundos da arte. No entanto, a ideia de que as imagens criadas por ele são a representação do real permanece no senso comum mais amplo, pois são tomadas como sintoma, ou seja, mais próximas do essencial, a transcrição primeira.

Finalizadas as comemorações dedicadas ao nascimento de Raymundo Cela, no ano de 1994, foi realizada, em Fortaleza, a exposição R. Cela: luz, natureza e cultura, no Centro

      

503 Cf. BARROSO, Henrique. Raimundo Cela – um artista identificado com os tipos humanos regionais. ______.

Raymundo Cela: centenário de nascimento (1890-1954): catálogo de exposição, 19 jul. – 29 set., 1990, Museu

de Arte da Universidade Federal do Ceará – MAUC. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1990, s/n.

504 Cf. BARROSO, Henrique. Tradição e Renovação. ______. Raymundo Cela: centenário de nascimento (1890-

1954): catálogo de exposição, 19 jul. – 29 set., 1990, Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará – MAUC. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1990, s/n.

505 RANCIÈRE, Jacques. A pintura no texto. In: ______. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto,

2012, p. 83.

Cultural do Palácio da Abolição507. A mostra com pinturas, desenhos e gravuras do artista, fez parte do projeto implementado pelo então secretário de cultura Paulo Linhares, cujo objetivo era “recolocar o Ceará na rota das grandes exposições de artes plásticas”508. Nomeado durante o período que se convencionou chamar governos das mudanças, ou seja, empresários/modernidade versus coronéis/tradição509, Linhares não economizou esforços para tornar a cultura um espaço estratégico da produção do simbólico510. De acordo com Alexandre Barbalho: “A meta do secretário Paulo Linhares era da de transformar Fortaleza em uma metrópole cultural, inserida no mapa da discussão intelectual nacional e internacional”511. Tal empreendimento só poderia ocorrer com investimento público nos setores de ponta da produção cultural, ou seja, na indústria cultural, afirmou o pesquisador. Não por acaso, Linhares apresentou, em 1993, um “Plano de Ações Culturais, inspirado em ‘La movida madrileña’, que, na década de 1970, procurou recolocar Madri como capital cultural da Espanha”512. No ano seguinte, o secretário de cultura e sua equipe elaboraram o Plano de Desenvolvimento Cultural (1995-1996). Este seria um instrumento de política pública para a cultura513. Como destacou o secretário, em entrevista ao jornal O Povo, em 1993, sua intenção era criar o Centro Estadual de Cultura, que englobaria o Museu de Arte Contemporânea e a Pinacoteca do Estado514. Convém lembrar que a edificação de uma Pinacoteca era uma ideia defendida pela a artista plástica Heloísa Juaçaba.

Com a desativação da Casa de Raimundo Cela, em 1989, durante a gestão da secretária de cultura Violeta Arraes (1926-2008), foi instalada no Palácio da Luz a Academia Cearense de Letras (ACL). As obras que compunham a coleção de arte daquela instituição, na época dirigida por José Guedes, foram transferidas para um galpão da Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA), localizado na Praça da Estação, centro de Fortaleza. Diante dessa situação, bem

      

507 Inaugurado, em 1970, durante a gestão do governador Plácido Castelo, o conjunto arquitetônico Palácio da

Abolição foi a sede do governo até 1986. Anteriormente a sede ficava no Palácio da Luz no bairro Centro. Tasso Jereissati, ao tomar posse como governador, transferiu a sede do governo para o Palácio do Cambeba. Em 25 de março de 2011, na gestão de Cid Gomes, o Palácio da Abolição voltou a ser a sede do Governo Estadual. Cf. PALÁCIO DA ABOLIÇÃO SERÁ SEDE DO GOVERNO. Diário do Nordeste, Fortaleza, 7 fev., 2008.

508 TRANSFERIDO ACERVO DA CASA DE CULTURA PARA O MUSEU DA UFC. O Povo, Fortaleza, 3 jul.,

1993, p. 10A. (Vida & Arte).

509 GONDIM, Linda. Clientelismo e modernidade nas políticas públicas: os “governos das mudanças” no Ceará

(1987-1994). Ijuí: Unijuí, 1998.

510 BARBALHO, Alexandre. A modernização da cultura: políticas para o audiovisual nos governos Tasso

Jereissati e Ciro Gomes (Ceará/ 1987-1998). Fortaleza: Imprensa Universitária, 2005.

511 Cf. BARBALHO, 2005, p. 93. 512 Cf. BARBALHO, 2005, p. 67. 513 Cf. BARBALHO, p. 94-95.

514 TRANSFERIDO ACERVO DA CASA DE CULTURA PARA O MUSEU DA UFC. O Povo, Fortaleza, 3 jul.,

como dos empréstimos de obras feitos para outras instituições e para espaços da sede do governo (salas, gabinetes, etc.), Linhares buscou reorganizar a coleção. Durante o processo de inventário das obras, a Comissão de Inquérito Administrativo comunicou o desaparecimento de 69 obras do acervo. Desse total, foi elucidado o paradeiro de 43 obras e 26 trabalhos continuavam sumidos. Entre eles, os mais valiosos, como obras de Antônio Bandeira e Raymundo Cela. Para conclusão do caso, foi aberto um inquérito policial, com o intuito de investigar o sumiço dos quadros515. Enquanto isso, parte do acervo localizado foi transferido para a reserva técnica do MAUC. Até outubro de 1993, nada foi apurado pela polícia516.

Passada essa turbulência, em janeiro de 1994, a Secretaria da Cultura e Desporto do Estado do Ceará (SECULT) inaugurou o Centro Cultural da Abolição, com a exposição R. Cela: luz, natureza e cultura517. A mostra contou com uma ampla rede de colaboradores. A concepção, coordenação, curadoria, pesquisa iconográfica e de texto, além da montagem, ambientação e coleção de objetos foram regidas por André Scarlazzari, Cristiana Parente, Eduardo Aparício e Solon Ribeiro. Entre as instituições parceiras desse projeto, especialmente aquelas que disponibilizaram obras de seus acervos, podemos citar: Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (MAUC), Centro Cultural Banco do Nordeste do Brasil (BNB), Banco do Estado do Ceará (BEC) e Prefeitura de Fortaleza. Além das instituições supracitadas, a exposição contou com o empréstimo de diversas obras pertencentes a coleções particulares. Tais parcerias possibilitaram ao público visitante a apreciação de obras como: Último diálogo de Sócrates, 1917 (MNBA), Paisagem de Saint-Agrève, 1921 (MNBA), Jangadeiros em Palestra, 1943 (CCBNB), Vendedor de redes, 1944 (coleção particular), entre outras, além das gravuras (água-forte) produzidas no período em que Cela morou na França. Essa foi uma oportunidade para conhecer outras facetas de um artista em constante experimentação, de temas, suportes, técnicas e cores. Também foi a oportunidade do público cearense apreciar in loco a tela laureada com o Prêmio de Viagem à Europa, em 1917.

      

515 CASO DE POLÍCIA. O Povo, Fortaleza,18 ago., 1993, p. 1. (Vida & Arte) Acervo: Biblioteca Pública

Governador Menezes Pimentel, Fortaleza/CE. Pesquisa realizada em 2008.

516 POLÍCIA NADA APURA...Diário do Nordeste, Fortaleza, 20 out., 1993, p. 7. (Caderno 3) Acervo: Biblioteca

Pública Governador Menezes Pimentel, Fortaleza/CE. Pesquisa realizada em 2008. Deixo aqui registrado o ocorrido para realização de pesquisas futuras.

517 No espaço dedicado ao Centro Cultural uma série de intervenções artísticas, organizadas por Roberto Galvão e

outros artistas, aconteceram anteriormente a sua inauguração. Incentivadas pela Secretária de Cultura, Violeta Arraes, com o intuito de ocupar o lugar vago deixado pelo governo, após a sua transferência para o novo centro administrativo no Cambeba.

A exposição contou com apoio cultural das empresas Skol e o Banco do Estado do Ceará (BEC). Cumpre ressaltar que a proposta do secretário de cultura para o financiamento do Plano de Desenvolvimento Cultural viria de duas alternativas: “1. Aumentar o investimento público por meio de parcerias com outros órgãos estatais; 2. Atrair as empresas privadas para o financiamento da produção cultural”518. Barbalho destaca que a primeira seria contemplada com recursos federais do Fundo de Apoio ao Trabalhador (FAT), e a segunda foi viabilizada por meio de uma política de incentivo fiscal, ligada à Lei no 12.646, conhecida como Lei Jereissati e sancionada em junho de 1995:

A Lei Jereissati permite aos contribuintes do ICMS apoiarem financeiramente os projetos aprovados pela Secult a dedução de 2% do imposto pago mensalmente. O apoio pode ser direto ao proponente ou em favor do Fundo Estatal de Cultura (FEC), instituído pela mesma lei. Por meio do FEC, a Secult se habilitava a captar recursos junto ao empresariado, podendo assim, aumentar sua dotação orçamentária.519

Publicado no mesmo ano da Lei Jereissati, o Decreto 23.882 criou a Comissão de Análise de Projetos (CAP)520. Presidida pelo secretário de cultura, a CAP era formada por três servidores da Secretaria e por mais três representantes indicados por associações culturais ou entidades de artistas. Cabe frisar que “a CAP pode recorrer a avaliações técnicas feitas por especialistas da área do projeto em questão”521.

Assim, a organização de textos e pesquisa para o catálogo da exposição R. Cela: luz, natureza e cultura ficou a cargo de Cristiana Parente, Eduardo Aparício, Solon Ribeiro e de Max Perlingeiro. Este, como integrante do Conselho do MNBA, viabilizou o empréstimo das obras pertencentes ao acervo da instituição, além da produção do catálogo, que teve o apoio da Pinakotheke Cultural. Trata-se do primeiro livro/catálogo produzido para uma exposição de Raymundo Cela.

De um modo geral, um catálogo de exposição apresenta a lista das obras expostas, a cronologia do artista, um ou mais textos de críticos sobre os trabalhos e as reproduções de obras expostas. No que se refere ao livro/catálogo, além das informações presentes num catálogo, traz também um conjunto de textos produzidos e fac-símiles de textos já publicados em outros materiais (esses devidamente autorizados pelos autores e editores). Outra diferença

      

518 Cf. BARBALHO, 2005, p. 114. 519 Cf. BARBALHO, 2005, p. 114.

520 “As áreas abrangidas pela Lei Jereissati são: 1. Música; 2. Artes Cênicas; 3. Fotografia, Cinema e Vídeo; 4.

Literatura, inclusive de cordel; 5. Artes Plásticas e Gráficas; 6. Artesanato e Folclore; 7. Pesquisa Cultural ou Artística; 8. Patrimônio Histórico e Artístico; 9. Filatelia e Numismática; 10. Editoração de Publicações”. Cf. BARBALHO, 2005, p. 115.

diz respeito ao formato da edição. Esta costuma ser em tamanho maior do que a dos catálogos comuns, deixando de ser uma brochura. O livro/catálogo da exposição R. Cela: luz, natureza e cultura foi editado no formato 20,5 x 27 cm522. Nas cinco primeiras páginas, traz a lista com os nomes de todos os envolvidos na produção da exposição. Em seguida, o texto de apresentação é do secretário de cultura, Paulo Linhares, intitulado: A invenção da luz na pintura cearense. O autor destaca a importância da produção de Cela para construção de uma mitologia cearense, ou seja, uma tipologia que tem a figura do jangadeiro como emblema. Também sublinha que Cela é um pintor solar. Para Linhares: “Cela faz deste aspecto da natureza um referencial da cultura. A luz é domada e passa para suas telas”523. Ainda de acordo com o autor: “Cela mais uma vez é invocado como referencial da pintura que é cearense em sua centelha criativa, mas universal porque extrapola limites, transgride convenções e permanece contundente e atual”524. Torna-se evidente que a noção de regional permanece presente quanto à pintura de Raymundo Cela, como também, mais uma vez, sua obra e seu nome são tomados como marco inaugural de um espaço da cultura, sobretudo das artes, para o Estado. Dito isso, convém trazer à baila a definição de cultura defendida pelo antropólogo Clifford Geertz:

[...] o conceito de cultura ao qual eu me atenho não possui referentes múltiplos nem qualquer ambiguidade fora do comum, segundo me parece: ele denota um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida.525

Desse modo, pode-se pensar que as palavras do secretário estão alicerçadas num conjunto de enunciados acionados historicamente para atribuir valor e reconhecimento à produção artística de Raymundo Cela. Pude perceber que, ao longo dos anos, foram se adensando camadas discursivas acerca da obra de Cela. Em 1945 “artista do povo”; em 1956 “o pintor do Nordeste” e, agora “pintor solar”. Contudo, os discursos não têm princípios de unidade, e sim de dispersão526. Trata-se de um grupo de enunciações heterogêneas em coexistência. Por isso, não é a produção artística de Cela que constitui a unidade da sua obra,

      

522 BECKER, Daniel; CARVALHO, Gilmar de; PARENTE, Cristiana et al. R. CELA: luz, natureza e cultura:

catálogo de exposição, 11 jan. – s/d, 1994, Centro Cultural do Abolição. Fortaleza: Tiprogresso, 1994. 132p.: il. (color); 27 cm.

523 LINHARES, Paulo. A invenção da luz na pintura cearense. In: BECKER, Daniel; CARVALHO, Gilmar de;

PARENTE, Cristiana et al. R. CELA: luz, natureza e cultura: catálogo de exposição, 11 jan. – s/d, 1994, Centro

Cultural do Abolição. Fortaleza: Tiprogresso, 1994. 132p.: il. (color); 27 cm.

524 Ibidem, 1994, p. 13.

525 GEERTZ, Clifford. A religião como sistema cultural. In: ______. A interpretação das culturas. Rio de

Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1989, p. 103.

526 MACHADO, Roberto. Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Edições

mas o que foi construído a partir dos enunciados e pelo conjunto das formulações a respeito dela.

Logo depois do texto de apresentação, na introdução, a publicação traz à tona a transcrição da entrevista realizada em 19 de setembro de 1990, com Quirino Campofiorito527, no ensejo do centenário de nascimento de Cela. O crítico e historiador da arte foi entrevistado na sua residência, em Niterói, por Max Perlingeiro, pelo crítico e historiador da arte Carlos Roberto Maciel Levy e pelo restaurador e artista plástico Cláudio Valério Teixeira. A partir das perguntas elaboradas pelo trio, Campofiorito comentou a travessia de Raymundo Cela na EBA e a qualidade técnica dos seus desenhos e pinturas. Tais comentários colocam Cela em diálogo com o contexto vivenciado no Rio de Janeiro e na França. Isso reverberou nas escolhas dos temas desenhados, pintados e gravados pelo artista. Portanto, é possível aferir que a produção litorânea de Raymundo Cela não é exclusivamente o resultado de uma vivência à beira-mar.

A publicação prossegue com uma cronologia produzida a partir dos dados biográficos de Cela, incluindo a sua trajetória artística. Em seguida, foram reproduzidos um conjunto de textos abordando sua produção, intercalados com a reprodução das imagens, algumas em preto e branco e outras coloridas, de seus trabalhos (desenhos, pinturas e gravuras); além dos retratos de Cela com a família e cartões postais enviados por ele durante a sua travessia no Rio de Janeiro e na França.

O primeiro texto do conjunto, intitulado A Academia, é de autoria de Adir Botelho. O autor comenta sobre a gravura do seu professor na EBA. O segundo, História alegre de um homem triste, cujo autor é Renato Sóldon528, trata das tensões vividas por Cela diante das dificuldades encontradas ao exercer a profissão de engenheiro, professor e artista. No terceiro texto, Fortaleza contemporânea de Cela, Estrigas buscou situar Cela em relação à Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP), num diálogo com a produção pictórica local. Os três textos mencionados estão na primeira parte do livro/catálogo. Na segunda parte, intitulada Fortuna Crítica foram publicados os textos: Sentimento estético, traço e concepção, Otacílio de Azevedo; Tradição e Renovação, Henrique Barroso; Revelação de Raimundo Cela ao grande público, Jean Pierre Chabloz; Paisagem europeia na cultura brasileira, Oswaldo Teixeira; Cela, o pintor do Nordeste, Almir Pinto; Curvas de ondas e gestos heroicos, Herman Lima; por

      

527 “Quirino Campofiorito (Belém, Pará, 1902 - Niterói, Rio de Janeiro, 1993). Pintor, crítico de arte, professor,

caricaturista, gravador.” Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa146/quirino-campofiorito. Acesso em: 28 de fevereiro de 2017.

fim, Raimundo Cela: um pioneiro esquecido, José Roberto Teixeira Leite. Tratam-se de textos