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Imagens e concepções de infância no mundo ocidental

4. IMAGENS CONSTRUÍDAS EM TEXTOS ACADÊMICOS

4.1. Pensando as concepções de infância

4.1.1. Imagens e concepções de infância no mundo ocidental

A construção da infância na sociedade ocidental é bastante recente. Foi com a burguesia – classe social que instituiu o conceito de família até recentemente empregado14

– que a criança começou a ser pensada como um ser que necessitava de cuidados, atenção e tinha suas particularidades.

Mais recente ainda são os estudos sobre as concepções de infância. Um dos primeiros estudos a ter ampla circulação e aceitação foi o de Philippe Ariès, História social da criança e da família, em que, a partir da observação e análise de quadros, o autor traça um percurso histórico da família e de como se deu a construção da infância.

Segundo o autor, o sentimento de infância não existia na Idade Média e, assim que as crianças adquiriam um pouco de independência, já eram inseridas na sociedade adulta. Tal afirmação parte da observação de quadros da época, nos quais era comum retratar crianças como adultos em miniatura. As crianças muito pequenas e bebês eram desconsiderados, pois, com o alto índice de mortalidade, essas poderiam deixar de existir em qualquer momento.

Por volta do século XVI, as crianças passam, principalmente no meio familiar, a serem objeto de distração e diversão, devido à sua ingenuidade e graça. No início da era moderna, os educadores trazem o ideal de inocência inerente ao ser infantil. Esse, então, era visto e entendido como um ser incompleto que necessitava ser educado para poder vir a ser uma pessoa honrada e um homem racional. Dessa forma, era importante preservar a criança da corrupção do meio.

Esse sentimento de preservação, cuidado e educação com e da criança fez com que a escola também mudasse seu foco de atenção: antes, durante a Idade Média, voltada para a educação de jovens e adultos, principalmente de clérigos, visando uma formação cultural, passa então a ser a responsável pela formação social e moral das crianças, distinguindo-as e as separando do mundo adulto.

14 Atualmente, existe uma longa discussão sobre o conceito de família na sociedade contemporânea. Neste

trabalho, utilizaremos o termo núcleo social inicial, cunhado por Galhardo (2014), para designar as pessoas que convivem em um mesmo espaço e são responsáveis diretas pela criança, independentemente de grau de parentesco ou consanguinidade.

Alboz (2012) afirma que “a modernidade configura-se como o momento histórico em que a infância adquiriu contornos e características específicas, e em que a dependência pessoal, a menoridade, a incompletude tornaram-se determinantes de sua condição e identidade social”; assim, a partir do projeto iluminista, a infância passa a ter um status diferenciado na sociedade e ser alvo de diferentes olhares – científicos, religiosos, familiares e do Estado.

A partir da mudança de visão com relação à criança na modernidade, Alboz (2012) traz como diferentes pensadores iluministas forneceram elementos para o que a autora chama de “construção de narrativas e imagens em relação à infância”. As imagens apontadas pela autora são a da criança má, a da criança imanente, da criança inocente, da criança desenvolvida e, finalmente, da criança inconsciente. O panorama teórico- -filosófico traçado pela autora nos permite identificar o nascimento de alguns discursos sobre a criança (e a infância) e perceber como ainda estão presentes em nossa sociedade. Retomarei esse assunto mais adiante.

Além das construções filosóficas, importa entender também como a construção da infância se deu historicamente na legislação brasileira.

Lopes e Souza e Silva (2007) fazem um panorama histórico das diferentes formas que o judiciário entendeu a criança ao longo do século XX e início do XXI. Segundo as autoras, a primeira lei com um olhar voltado para as crianças foi o Código de Menores de 1927. Esse surgiu para

dar assistência e proteção aos “menores” de ambos os sexos “abandonados e delinquentes” que tivessem menos de 18 anos. Os “menores” “abandonados” e “delinquentes” a que a lei se refere identificam uma concepção de infância específica, a da “criança infratora”. (p.134)

Como é possível inferir na citação, a ideia fundante da lei era manter a ordem social nacional, educando e, assim, recuperando as crianças que por qualquer motivo não estavam dentro do padrão social estabelecido como bom e aceitável.

A atualização dessa lei, em 1979 estabeleceu “novas diretrizes para medidas de proteção, vigilância e assistência aos menores em situação irregular”, ampliando assim os poderes do judiciário, uma vez que tinha o “intuito de atender desvalidos, abandonados e infratores, e também adotar meios de prevenir ou corrigir as causas de ‘desajustamento’ destes menores” (ibidem, p. 134)

Vale ressaltar que, nesse momento histórico, o Brasil vai na contramão da discussão que se iniciava na Europa, de valorização do ser humano e da infância.

Diante da legalidade, é importante considerar também os principais documentos e acordos internacionais que trataram das questões da infância no decorrer do século XX no Brasil: a Declaração dos Direitos Humanos proclamada em 1948 pela ONU afirmando que todo ser humano é um ser de direito; o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) criado em 1950 com o princípio básico de promover o bem estar da criança e do adolescente em suas necessidades básicas; a Declaração dos Direitos da Criança proclamada em 1959 pela ONU verificando que as condições da criança exigiam uma declaração à parte, devido sua imaturidade física e mental, necessitava assim de proteção e cuidados, explicitando os direitos fundamentais da criança (LOPES e SOUZA E SILVA (2007, p. 134-135).

Somente após o fim da ditadura militar e com o reestabelecimento da democracia, a infância brasileira começa a ser pensada em consonância aos grandes órgãos mundiais. Assim, na década de 1990, após discussão com várias entidades e com os mais interessados, as próprias crianças, é promulgada a lei 8.069 que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o qual dá a criança o status, como qualquer outro membro da sociedade brasileira, de um ser de direitos.

Jamillo (2007) discute que esse movimento iniciado no mundo moderno de pensar a formação das crianças de uma maneira distinta à do adulto e a conceber como um ser de direitos altera significativamente a dinâmica social, seja no nível macrossocial, seja na vida intrafamiliar. Segundo a autora “Pensar en los niños como ciudadanos es reconocer igualmente los derechos y obligaciones de todos los actores sociales”15 (p.113). Desta

maneira, a “reinvenção” do conceito de infância moderno traz consigo um caráter dúbio: sendo a criança vista e entendida como um ser diferente do adulto com necessidades próprias, a maneira de educá-la e instrui-la também deve ser vista com particularidades. Ainda segundo a autora

A la concepción de infancia es necesario darle la importancia y reconocer su carácter de conciencia social, porque ella transita entre agentes socializadores; la familia como primer agente socializador y la escuela, como segundo agente que en estos tiempos, cuando la mujer ha entrado a participar en el mercado laboral, asume un rol fundamental.

15 “Pensar nas crianças como cidadãos é reconhecer igualmente os direitos e as obrigações de todos os

Ambos cumplen un papel central en la consolidación y reproducción de esta categoría16. (p. 111)

O Estatuto da Criança e do Adolescente, anteriormente citado, dialoga com a concepção de infância supracitada. No Art. 2º, encontramos que toda a sociedade é responsável por toda e qualquer criança: “É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. Além disso, destaco também que este estatuto define legalmente a faixa etária denominada criança no Brasil: “a pessoa até doze anos de idade incompletos” (Artigo 18º).

Além das leis e estatuto acima mencionados, destacamos também a concepção de criança/infância presente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Ao ler o documento podemos perceber que a criança é entendida como um ser em formação, a qual precisa desenvolver capacidades e habilidades para vir a ser cidadão. Ou seja, é a concepção da criança naturalmente desenvolvida, da teoria de Jean Piaget, em que as crianças são vistas como seres naturais, antes de sociais, em processo de maturação. Nessa concepção, as etapas de desenvolvimento são previamente conhecidas e possíveis de serem mensuradas, compreendidas e deduzidas para cada criança, baseando-se em modelos pré-concebidos.

Tendo exposto um panorama de diferentes formas de como a criança foi (e é) vista e entendida no campo teórico-filosófico assim como no legislativo, passamos agora à análise de como essas concepções reverberam em nossa sociedade nos dias de hoje.

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