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Durante algum tempo me transformei em fotógrafo de partidas. Não é fácil tirar fotos de funerais de estranhos. As pessoas ficam incomodadas. Mas me interessava o fato de as práticas funerárias indianas lidarem tão abertamente, tão diretamente, com a fisicalidade do corpo. O corpo na pira ou no dokhma, ou em sua mortalha costurada muçulmana. Os cristãos eram a única comunidade a esconder seus mortos em caixas. Eu não sabia o que isso significava, mas sabia que aparência tinha. Caixões impediam a intimidade. Em minhas fotos roubadas – pois o fotógrafo tem de ser um ladrão, tem de roubar instantes do tempo dos outros para fabricar suas próprias eternidadezinhas – era essa a intimidade que eu buscava, a proximidade entre vivos e mortos.

Salman Rushdie

Em Sobre fotografia, Susan Sontag afirma que a câmera “torna a realidade atômica, manipulável e opaca”.209

Desde a adolescência, Rai Merchant já se empenhava em registrar, através da fotografia, o mundo que o cercava, seu pequeno mundo em Bombaim. Mas é apenas pela experiência indizível da morte que ele encontrará, nesse registro, um modo particular de ver, uma linguagem própria, sua primeira forma narrativa:

Comecei, então, a olhar as trevas. Isso me levou ao uso da ilusão. Eu compunha fotos com áreas de luz e sombra nitidamente delineadas, compunha-as com um cuidado maníaco para que a área de luz de uma imagem correspondesse precisamente à de preto de outra. No laboratório que montei para mim no apartamento que fora de meu pai, eu misturava essas imagens. As imagens compósitas que resultavam eram às vezes surpreendentes com suas perspectivas misturadas, muitas vezes confusas, às vezes incompreensíveis. Eu preferia a escuridão compósita. Durante algum tempo, eu começava a fotografar deliberadamente no

209

SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 33.

escuro, pinçando a vida humana na falta de luz, usando o mínimo de luz que conseguia.210

O trabalho no laboratório, a manipulação das imagens, é, talvez, um modo de enfrentamento, ou de recusa, a uma realidade que se mostra inaceitável, mas, ao mesmo tempo, configura uma primeira compreensão daquilo que, para Sontag, seria o “caráter de mistério” que a câmera é capaz de atribuir ao que é fotografado:

É uma visão do mundo que nega a inter-relação, a continuidade, mas confere a cada momento o caráter de mistério. Toda foto tem múltiplos significados; de fato, ver algo na forma de uma foto é enfrentar um objeto potencial de fascínio. A sabedoria suprema da imagem fotográfica é dizer: “Aí está a superfície. Agora, imagine – ou, antes, sinta, intua – o que está além, o que deve ser a realidade, se ela tem este aspecto”.211

Em sua longa e conturbada trajetória, Rai se transformará num fotógrafo de guerra, de catástrofes, de situações-limite, percorrendo o mundo em busca do mesmo mistério que se escondia na imagem dos pais mortos, dos funerais indianos, das guerras, dos grandes terremotos:

Quando, em janeiro de 1989, duas aldeias na área fronteiriça do Tajiquistão foram soterradas por deslizamentos de terra e lama (mil pessoas mortas, além de muitos milhares de cabeças de gado), o fenômeno chamado “falha fronteiriça” começou a atrair atenção mundial. O mundo está se rompendo nas costuras? era a pergunta que fazia a matéria de capa da Time [...].212 210 RUSHDIE, 1999a. p. 212. 211 SONTAG, 2004. p. 33. 212 RUSHDIE, 1999a. p. 452.

Após realizar um extenso inventário de sismos ocorridos em todo o mundo, apenas na década de 1980, a pergunta estampada na capa da revista recupera, numa figuração imponderável, as incontáveis rupturas que vão demarcando a trajetória de Rai Merchant, entrecruzando sua experiência particular com a história coletiva, global, igualmente inaceitável sem o filtro de sua lente.

É nesse momento da narrativa que Rai se prepara para reviver, pela escrita, o sismo que dividiu sua vida ao meio, o grande terremoto que faria desaparecer Vina Apsara, na pequena cidade mexicana de Tequila, nas proximidades de Guadalajara. Num construção circular, ele retomará o episódio narrado à exaustão, pela voz – pelos olhos – do fotógrafo, no primeiro capítulo. Contudo, nessa retomada, que simula o relato escrito de suas memórias, o terrível acontecimento será reduzido a poucas linhas:

Depois o terremoto. Eu pego minhas câmeras, disparo, e para mim não há mais sons, só o silêncio do ocorrido, o silêncio da imagem fotográfica.

Tequila! Já estivemos aqui antes.

No tempo de Voltaire, acreditava-se que costuras subterrâneas de enxofre ligavam os pontos de terremotos. Enxofre, com seu fedor fétido de Inferno.213

Essa estratégia parece querer operar uma inversão entre aquilo que, em princípio, é próprio a cada linguagem, a visual e a verbal. Numa

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RUSHDIE, 1999a. p. 466. É possível que, nessa passagem, a idéia do “disparo” da câmera remeta ao disparo da arma, recuperando a imagem trabalhada por Roland Barthes em A câmara clara, também explicitada pelo próprio Rushdie em seu ensaio, denominado “Sobre ser fotografado”, incluído em Cruze esta linha, no qual o autor deixa entrever a leitura barthesiana, além fazer remissão explícita ao texto de Susan Sontag (2004). Ver: BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984; e RUSHDIE, 2007. p. 115.

construção ardilosa, a imagem visual, o discurso fotográfico, apropriado como suporte narrativo, no primeiro capítulo, deveria trazer à luz, com seu poder de síntese, de suspensão do movimento, de captura instantânea, o que a realidade dinâmica costuma negar à percepção pelos sentidos. No entanto, a construção imagética, espacializada, mostra-se, na primeira versão da tragédia, escandida na tradução pelo verbo; é delongada, postergada, como se a cena fosse captada não em fotografia, mas em película cinematográfica, e editada num cuidadoso slow motion.

Por seu turno, a escrita, em sua forma narrativa – como simula o relato autobiográfico de Rai –, não pode prescindir de certa linearidade e de uma significação progressiva, ou de uma temporalidade inerente ao ato de leitura. O que então exigiria demora é, na passagem aqui transcrita, abruptamente condensado, como a revelar certo esgotamento da percepção intelectiva, necessária à significação do signo verbal.

Nessa inversão, ou permuta, aponta-se, enfim, para certa equivalência entre essas linguagens no discurso literário contemporâneo. Caberia lembrar, nesse momento, da tipologia dos processos imaginativos estabelecida por Italo Calvino em suas propostas para a literatura deste milênio, na qual se distinguem dois procedimentos: “o que parte da palavra para chegar à imagem visiva e o que parte da imagem visiva para chegar à expressão verbal”.214

No primeiro caso, a linguagem é utilizada de modo a

214 CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo:

produzir um efeito de leitura que corresponderia a uma cena mental, uma visão que se forma, sem mediações, no cérebro do leitor. No segundo tipo, a imagem atuaria a partir da formação de “um campo de analogias, simetrias e contraposições”, compondo um material que não é apenas visivo, mas igualmente conceitual, significante. A escrita estaria visando, então, a um equivalente verbal para a imagem visual. Porém, segundo Calvino, em um dado momento, é a escrita que assumirá a direção da narrativa, impondo uma lógica própria, “não restando à imaginação visual senão seguir atrás”.215

É o que parece ocorrer na estruturação do romance de Rushdie, em que o artifício textual remete a duas formas narrativas distintas – a não-escrita e a escrita –, equiparando-as, porém, no interior da escritura – a sua própria.

Nos dois casos, contudo, o efeito de leitura é dado pelo olhar de Rai – fotógrafo, escritor –, olhar que testemunha sua maior perda. A morte de Vina, a morte do “amor de vida inteira”, como ele diz a certa altura, é registrada pelo olho fascinado de sua câmera, o olhar que paralisa aquele que olha, não porque é possível ver, mas porque já é impossível não ver, já é impossível, nesse mesmo instante, não querer escrever. A essa visão insuportável da morte, a esse terrível cataclismo, Rai sobrevive pela escrita, pela palavra, como modo de expurgo da memória traumatizada pela imagem, e reedita o mito órfico em sua descida ao Inferno.

Para Barthes, “toda narrativa mítica recita (conta) que a morte serve para alguma coisa. Para Proust, escrever serve para salvar, para vencer a

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Morte: não a sua, mas a daqueles que ele ama, testemunhando por eles, perpetuando-os, erigindo-os fora da não-Memória”.216 Assim, a experiência da

morte da mulher amada “serve” para instaurar, no mesmo espaço da dor, o desejo de uma escritura que, ao ser processada, expande-se para outros espaços – nos quais se encontram outras perdas, nos quais ele se vê “diante da dor dos outros”.217

A escrita representa, nesse processo, também a sua salvação, ao conectá-lo novamente com a vida, com uma história que não é mais a recitação infinita da sua dor mais íntima. É então pela escolha do isolamento que o trabalho da escrita impõe, pelo exílio, que Rai se verá, ilusoriamente, inserido num espaço de pertencimento, espaço solitariamente humano, território franqueado.

Dessa forma, para além das demarcações geopolíticas – construções da cultura –, espaço e território são imagens visuais e não visuais, diz Cássio Viana Hissa; formas, volumes e fluxos; processos visíveis e invisíveis.218

Essas categorias parecem configurar o que Gilles Deleuze chamaria de “espaço háptico”, muito mais intensivo que extensivo, “ocupado pelas qualidades tácteis e sonoras”, pelas relações de afeto que se estabelecem a partir dos diferentes modos de espacialização, pelas maneiras de estar no espaço, de “ser no espaço”.219

A percepção háptica refere-se, pois, a certa forma de ver que é

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BARTHES, 2005. p. 18.

217

Refiro-me, explicitamente, ao texto de Susan Sontag, do qual empresto essa expressão. Ver: SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Trad. Rubens Figueiredo . Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2003.

218

Cf. HISSA, 2002.

219

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. v. 5. Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. Rio de Janeiro: Editora 34, 2005. p. 185-90.

mais um contato, paradoxalmente destituído da sensação tátil, um “contato a distância”, que se dá unicamente pelo olhar que imobiliza aquele que olha, que não toca, mas é tocado, quando o que é visto impõe-se como cena arrebatadora. Para Maurice Blanchot, desse contato, resta reter tão-somente a imagem, e o fascínio – por excelência, a “forma de ver” da solidão, e que nada mais é que a paixão pela imagem.220

A imagem adquire, aqui, não o formato de expressão exterior, mas, acima de tudo, de representação, mesmo que reclusa apenas ao imaginário, abstraída do objeto a que se refere, podendo compreender, ainda, os modos de representação gráfica, cartográfica, fotográfica, literária. O mundo representado seria, nesse âmbito, recriado pelo imaginário, ao mesmo tempo em que estaria a conformá-lo.

Nesse novo espaço, o da escrita, Bombaim, ou Londres, Nova York, são “imagens imaginadas”, que, no âmbito exclusivo da narrativa, condicionam a experiência de cada personagem, ao mesmo tempo em que são condicionadas. É possível que resida, exatamente nesse ponto, um impedimento a que se faça uma “leitura sociológica” do romance, como se poderia esperar ao considerar-se a experiência biográfica de Salman Rushdie. A escrita de Rai, a outra escrita, no entanto, faz com que a existência de um referente não ficcional – pela remissão às cidades, aos países, às regiões que, sem dúvida, “estão no mapa” – remeta o leitor para um espaço diverso, no qual importa apenas a história representada, seja ou não uma “história real”.

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