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Karpfen-Carpeaux: novas imagens e possibilidades

Volto do enterro no São João Batista. [...] Ao atravessar o jardim, encontro Jacobo de Giorgio lendo num banco. Seus encontros me agradam, numa mescla de sedução e mortificação. [...] Trazem-me a alegria dos encantos comuns – Renard, Jens Peter Jacobsen, Thorton Wilder – impulsionam-me para a descoberta de tantos valores despercebidos – Kafka, Holderlin, Lichtenberg, o desempenado anão e corcunda para quem „um dia será tão ridículo crer em Deus como hoje acreditar em fantasmas‟. Parei: – Que está lendo com tanto interesse? – Estou relendo. Um xará: Jacó Burckhardt. Não precisaria ser lince para ver no meu rosto o sinal do desconhecimento. E fala-

me de Burckhardt, que para nós, no momento que atravessamos, tornou-se o conselheiro íntimo da nossa angústia, profeta que esperava crises terríveis, mas que nenhuma revolução anularia a sinceridade, a sua verdade interior – antes de tudo, será preciso ser sincero, sempre sincero. Expõe em ordem direta, sem interpolações esdrúxulas, como um bom condutor de ideias. Sua linguagem e o fluxo lógico, concatenante da sua explanação, têm muito do divulgador, todavia lhe sobra, abundante, o conteúdo do ensaísta, do pensador. Adivinho a onda que poderá formar contra si, com a extensão da sua formação humanística, com a sua severidade de criticismo europeu, aferição rude para as nossas almas auto suficientes, sem lastro e sem tradição, tão afeitas ao ligeirismo da crítica impressionista, tão acostumadas ao adjetivo fácil e rotundo, à louvação desenfreada, sensitivas, que ao mais leve reparo ou remoque se ofendem, se revoltam e, revoltadas, mordem, apunhalam! Marques Rebelo – O espelho partido. 1º tomo: O trapicheiro

‘Apresentação de um companheiro europeu em exílio’

Foi sob o este título que, em 19 de abril de 1941, o nome Otto Maria Carpeaux debutou na imprensa brasileira. Enquanto a primeira página do matutino carioca Correio da Manhã informava sobre o bombardeio alemão a Londres, a morte do primeiro ministro grego e o avanço italiano sobre a Albânia,1 o já respeitável crítico literário Álvaro

Lins escrevia, na página seguinte e ainda em conexão com as notícias da primeira página, aquele que seria o artigo de apresentação de um escritor austríaco exilado e futuro colaborador do Correio da Manhã, informando os primeiros dados biográficos sobre Carpeaux, a começar pelo pseudônimo:

Ainda na Europa, Carpeaux já não utilizava o seu nome pessoal para os seus artigos e livros. Esta deliberação é uma consequência do seu propósito de jamais confundir uma vida particular de pequeno burguês com uma vida pública de escritor combativo e inconformista.2

Parece significativo que o nome de batismo de Carpeaux, Otto Karpfen, não tenha sido sequer mencionado nesta apresentação, e que a própria escolha do pseudônimo seja apresentada por Lins como indicativo do interesse e capacidade do exilado em “se despersonalizar dentro de suas ideias. [...] A escolha deste nome francês [...] se torna explicável por intermédio da formação intelectual do escritor e da formação histórica de sua pátria. O caso pessoal de Otto Maria Carpeaux não é propriamente de cosmopolitismo; e sim de universalismo.” 3 Mas até mesmo este espírito

universalista e ecumênico – “os fundamentos de sua vida e da sua cultura são os da Igreja e um homem católico há de ser, antes de tudo, um espírito ecumênico”4, continuaria Álvaro Lins – carecia de maiores dados

imanentes, sobretudo porque Carpeaux passaria a integrar o meio literário

* Referência da página anterior: REBELO, Marques. O trapicheiro. Primeiro tomo de O espelho partido. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 470.

1Jornal Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 19/04/1941, p. 01.

2LINS, Álvaro. “Apresentação de um companheiro europeu em exílio” In Jornal Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 19/04/1941, p. 02. Há uma pequena diferença entre o artigo original, publicado no Correio da Manhã e aquele transcrito na coletânea de ensaios de Álvaro Lins, O relógio e o quadrante, publicado em 1964. No artigo posteriormente transcrito, aparece a expressão “[...] confundir uma vida pessoal de cidadão pacífico com uma vida[...]” Cf. LINS, Álvaro. “Apresentação de um companheiro europeu em exílio” In ________ O relógio e o quadrante. Ensaios e estudos 1940-1960. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964, pp. 153- 160. [Itálicos meus]

3LINS, Álvaro. “Apresentação de um companheiro europeu em exílio” In Jornal Correio da Manhã. Op. cit.

brasileiro, e a aposta por parte do crítico pernambucano para que esta inserção fosse positiva era grande: “Estou certo de que a presença de Otto Maria Carpeaux no nosso meio literário significará uma nova corrente de vida, muito rica de sugestões, de ensinamentos, de afirmações morais e intelectuais.”5 Quem era, então, segundo esta primeira apresentação ao

meio literário, o escritor austríaco de pseudônimo francês, Otto Maria Carpeaux?

Na página dois daquela edição do Correio da Manhã, Carpeaux foi apresentado como escritor político que deixara sua pátria “cinco dias após a invasão nazista” – aquilo que ficou conhecido com o Anschluss, anexação da Áustria pelo III Reich – e que, “apesar da universalidade de seu espírito”, ainda encontrava-se em exílio. Álvaro Lins reforça que o caminho até o Brasil fora longo: “Itália, Suíça, Bélgica. Depois, por uma intervenção do Papa Pio XII, o Brasil”. A falta de oportunidade profissional dos primeiros meses não havia garantido segurança suficiente para que Carpeaux vislumbrasse o Brasil como o seu locus de refúgio. Álvaro Lins menciona a intenção do escritor em “desdobrar o seu caminho de exílio”, ou seja, sair do Brasil em busca de novas oportunidades:

Em setembro de 1939, entrava em nossas fronteiras. Dois meses, no Rio; um ano, em São Paulo; agora, a volta ao Rio, com o projeto de desdobrar o seu caminho de exílio. Uma iniciativa do Correio da Manhã, porém, faz paralisar, ao menos momentaneamente, este projeto. O escritor austríaco, a que estou me referindo, começará a escrever amanhã, no

Correio da Manhã, sob o pseudônimo de Otto Maria Carpeaux.6

Esta passagem é importante porque já indica, ao menos implicitamente, as hoje conhecidas agruras vividas por Carpeaux nos seus primeiros meses no Brasil, antes do início de sua colaboração no Correio da Manhã. Também é interessante notar que na edição publicada em 1964 deste mesmo artigo, a iniciativa em fixar Carpeaux no Brasil através da oportunidade de emprego foi personalizada por Álvaro Lins, que modificou a frase original “Uma iniciativa do Correio da Manhã” para “Uma iniciativa que me coube levar à prática, nos últimos dias [...]”.7 É desta

mesma edição o subtítulo dado ao artigo de apresentação de Carpeaux, inexistente no publicado em 1941: “Como do exilado Otto Maria Karpfen,

5 Ibidem. No trecho, há outro descompasso com o artigo republicado na coletânea O relógio e o quadrante: Nesta versão, o “Estou certo [...]” foi substituído por “Espero que [...]”. Cf.: LINS, Álvaro. Op. cit., p. 159.

6 Ibidem. [Itálicos meus]. 7 LINS, Álvaro. Op. cit., p. 153.

já em desespero humano, surgiu o nome literário Otto Maria Carpeaux, lançado na imprensa brasileira.”8

Mas voltemos ao que Álvaro Lins escrevera em 1941 – ano em que o Brasil vivia em pleno Estado Novo varguista. Depois de apresentar o austríaco exilado e explicar o porquê do uso e do pseudônimo escolhido, Lins relacionou o caráter multicultural de Viena – “ponto de encontro de três mundos diversos: o mundo germânico, o mundo eslavo e o mundo latino” – ao caráter também multifacetado da especialização profissional de Carpeaux na Europa: “A sua especialização se orientou no sentido da literatura comparada, para qual levou um conhecimento de oito línguas vivas e mortas, inclusive, hoje, da portuguesa. Escreve, com a mesma naturalidade, em alemão, em holandês ou em francês; e dentro em pouco escreverá na nossa língua [...].”9 Após este trecho, Álvaro Lins descreve

algumas atividades desenvolvidas e algumas obras publicadas por Carpeaux na Europa, ligadas ao catolicismo político muito ativo no continente europeu daquele período. Segundo Lins, Carpeaux havia escrito artigos para a revista belga Cité Chrétienne, em francês; em alemão, como diretor da página cultural de Reichpost – “principal diário católico da Áustria”; e em holandês, como redator de Gazet van Antwerpen, “grande jornal católico da Bélgica flamenga”. Ainda segundo Lins, Carpeaux também fora redator- chefe de Berichte zur Kultur und Zeitgeschicht, “revista austríaca e ponto de convergência dos católicos mais inteligentes e lúcidos.”10

Na listagem das obras publicadas, Lins menciona “uma obra de apologia do catolicismo „largo‟ e evangélico, contra o catolicismo „estreito‟ dos bem pensantes” – provavelmente Caminho para Roma [Wege nach Rom] –

11, além de A missão europeia da Áustria [Osterreichs europäische Sendung]12, publicada por Carpeaux em 1935 sob o pseudônimo de Otto Maria Fidelis. Ainda segundo Lins, este teria sido o livro de predileção do chanceler austríaco Engelbert Dollfuss, em que ele encontrara “tranquilidade em meio aos tormentos e inquietações de seus últimos dias.” Álvaro Lins constrói uma equação complexa ao identificar a importância de uma obra do exilado austríaco à figura de um primeiro ministro que, até o seu assassinato, em 1934, governara a Áustria de forma centralizadora, dissolvendo partidos políticos e sendo apoiado pela guarda civil fascista

8 Idem.

9 LINS, Álvaro. Op. cit., p. 02. 10Ibidem.

11Ibidem. Assinado como Otto Maria Karpfen e publicado em 1934. Cf.: KARPFEN, Otto Maria. Wege nach Rom. Op. cit.

Correio da Manhã de 19/04/1941. Apresentação de Carpeaux por Álvaro Lins. Acervo: Hemeroteca Digital/FBN

Heimwehr.13 Lins baseia-se no também complexo contexto austríaco pré-

Anschluss: mesmo sob uma constituição de caráter corporativista, tendo um único partido (Frente da Pátria), o governo Dollfuss era contrário à anexação austríaca pelo III Reich, sendo esta a ponte diálogo entre o governo austro-fascista e Otto Maria Carpeaux:

13 Uma boa contextualização sociopolítica e intelectual da Áustria entre guerras pode ser obtida em: WASSERMAN, Janek. Black Vienna, red Vienna: the struggle for intellectual and political hegemony in interwar Vienna, 1918-1938. Dissertation in History. Missouri: Washington University in Saint Louis, 2010.

Aliás, sobre esta base da independência da Áustria, é que o chanceler Dollfuss e o escritor Otto Maria Carpeaux sempre se entenderam: quanto aos problemas sociais, ao contrário, nunca puderam se entender porque Dollfuss não quis se libertar inteiramente dos mitos totalitários e Carpeaux quis permanecer irredutivelmente fiel aos seus ideais de verdadeiro cristianismo.14

Com a posse de alguns artigos já escritos por Carpeaux e outros projetados para serem publicados no Brasil (escritos em francês), além de algumas cartas trocadas com o vienense, “um caderno de notas pessoais” e um “livro esboçado sob o título de Experiência da Europa”15, Álvaro Lins

não se furta em apresentar Carpeaux como portador de um estilo “vivo, preciso e ardente”, muito informado por um “máximo de variedade e de concentração” imprimidas pelo “conhecimento e assimilação de tantas literaturas”. Também “enérgico e áspero”, é um estilo que informa, confessa “um temperamento de inconformista, de panfletário, de „debater‟”. [...] Temperamento de um homem que, monologando ou dialogando, está sempre numa atitude de luta: ou a luta interior, consigo mesmo, ou a luta exterior, com os seus adversários.”16

Completa a imagem do intelectual inconformista, do homem católico, do espírito universal a imagem de um pessimista combatente, a qual Álvaro Lins extrai dos artigos e das cartas de Carpeaux e assim a apresenta a seus leitores: “Carpeaux é um pessimista e é um profeta; ou mais exatamente: é um profeta porque é um pessimista. [...] Pois o pessimismo de Carpeaux nada tem de feminino, de frágil, de demissionário. Ao contrário, é um pessimismo consciente, trágico, viril.”17 Qualificando

14 LINS, Álvaro. Jornal Correio da Manhã. Op. cit. Veremos mais adiante que mesmo a contextualização por parte de Álvaro Lins do cenário político austríaco e o papel nele desempenhado por Carpeaux não seriam suficientes para evitar os ataques sofridos pelo mesmo Carpeaux em 1944, quando foi acusado por alguns intelectuais brasileiros de ter desempenhado atividades fascistas na Europa.

15 Infelizmente, tanto o caderno de notas pessoais quanto o livro esboçado mencionado por Álvaro Lins nunca foram encontrados nos arquivos pessoais de Carpeaux.

16 Para todas as referências do parágrafo Cf.: LINS, Álvaro. Op. cit., p. 02. 17 Ibidem. Além de querer demonstrar mais uma faceta de Carpeaux, Álvaro Lins fazia uma espécie de „gancho‟ com o artigo com o qual, já no dia seguinte, Carpeaux estrearia no Correio da Manhã. Cf.: CARPEAUX, Otto Maria. “Jacob Burckhardt – o profeta de nossa época” In Jornal Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20/04/1941, pp. 01-2 [Suplemento].

ainda o pessimismo de Carpeaux como “pascalino e cristão [...] que não exclui a fé”, Álvaro Lins encerra a apresentação do futuro colaborador do Correio da Manhã com um elogio à familiaridade às letras brasileiras que já naquele momento o austríaco demonstrava: “Em pouco mais de um ano, já leu centenas de livros brasileiros e portugueses para sentir e compreender toda a literatura da nossa língua. [...] Uma das cartas, por exemplo, contém um dos mais agudos estudos sintéticos que conheço sobre as principais figuras das nossas letras.”18

Para finalizar, Álvaro Lins transcreve algumas palavras de Carpeaux – oriundas de uma das cartas trocadas pelos dois – no intuito de servirem “como uma espécie de epígrafe ao seu ingresso [de Carpeaux] na vida literária brasileira.”19 Na versão original, de 1941, o artigo de apresentação

do Carpeaux ao universo literário e intelectual brasileiro encerra-se, portanto, com a frase do escritor exilado, transcrita no francês original: “Nós, homens de mesmos ideais, de mesmos ódios e de mesmas expectativas, todos nós parecemos, todos nós estamos, enfim, em toda parte. É por isso que tenho a impressão de conhecê-lo há um longo tempo.”20 Já na versão publicada em 1964, Álvaro Lins mais uma vez

buscou salientar o seu papel na introdução de Carpeaux no Correio da Manhã e, por conseguinte, na fixação do austríaco em terras brasileiras: antes da transcrição das palavras de Carpeaux e imediatamente após “seu ingresso na vida literária brasileira”, Lins acrescentou: “[...] onde ele não conhece ninguém, a não ser o autor deste artigo, que faz assim a sua apresentação e promove a sua entrada num grande matutino, no qual não foi ainda sequer posto em conhecimento com os seus diretores e proprietários:[...].”21

Esta ênfase de Álvaro Lins presente na reelaboração feita em 1964 possivelmente é oriunda de uma visão retrospectiva da trajetória de Carpeaux. Mas nem sua permanência no Brasil tampouco a importância no cenário intelectual brasileiro estiveram assegurados a priori. A própria apresentação de Carpeaux por Álvaro Lins deixa entrever as dificuldades sofridas pelo austríaco nos quase dois anos vividos em São Paulo e pela decisão deste em “desdobrar o seu caminho do exílio”, de deixar o Brasil.

18 LINS, Álvaro. Op. cit., p. 02. 19 Ibidem.

20 Cf.: Ibidem. [Tradução livre do original: “Nous, les hommes des mêmes idéaux, des mêmes haines et des mêmes esperances, nous nous ressemblons tous, nous nous trouvons, enfin, partout; c‟est pourquoi j‟ai impression de vous avoir connu depuis longtemps.”].

Outras imagens – Je ne laisse pas périr!

Estudos recentes22 têm conseguido mapear o passado europeu de

Carpeaux e a „fuga kafkaniana‟ do casal de austríaco até aquele que seria o seu exílio definitivo, o Brasil. O acesso às já existentes e a descoberta de novas fontes concernentes à vida e as obras de Carpeaux estão paulatinamente ratificando, retificando ou problematizando dados de cunho biográfico, muitos dos quais até então disponíveis somente pelas reminiscências pessoais do próprio Carpeaux ou de seus conviventes.

Pelas pesquisas de Albert von Brünn e pelo passaporte em nome de Otto Karpfen depositado no Arquivo Nacional23, por exemplo, sabe-se

aquele “católico não-ariano” de fato só conseguiu o visto brasileiro graças a uma complexa engrenagem envolvendo o Papa Pio XII, o arcebispo de Munique, D. Michael von Faulhaber, a embaixada brasileira na Santa Sé, através do embaixador Hildebrando Pinto Accioly, e um padre holandês, Ambros Pfifigs, responsável por fazer chegar até Carpeaux a notícia da providencial iniciativa.24 Von Faulhaber foi quem pediu a intercessão do

então recém entronizado Pio XII para que este conseguisse três mil vistos brasileiros para os “católicos não-arianos” – judeus convertidos –, intercessão acedida pelo governo Getúlio Vargas, a despeito das disposições legais brasileiras25 que paulatinamente passaram a proibir a

concessão de vistos para pessoas de origem semita. Da Antuérpia, para

22São exemplos significativos: VENTURA, Mauro. De Karpfen a Carpeaux. Op. cit.; von BRÜNN, Albert. “Uma fuga kafkaniana da Europa” In jornal Rascunho. n. 157. Curitiba, maio de 2013, pp. 12-3.

23 Cf.: “Processo de naturalização nº 10.345/42” In Arquivo Nacional. Fundo Ministério da Justiça e Negócios Interiores. O visto nº 456, expedido pelo Consulado Geral do Brasil na Antuérpia-Bélgica, contém a seguinte mensagem: “Viagem para o Brasil em caráter permanente [...] julho de 1939. [...] O portador do presente passaporte faz parte do contingente de 3000 israelitas católicos autorizados a emigrar para o Brasil. O cônsul geral, Otaviano Machado.” Voltarei ao processo de naturalização de Carpeaux oportunamente.

24 von BRÜNN, Albert. Op. cit.

25 Foram elas: Circular Secreta nº 1.127 (07/06/1937), que textualmente estipulava “fica recusado visto no passaporte a toda pessoa de que se saiba [...] que é de origem étnica semita”; e a nova Lei de Imigração (Decreto-Lei nº 406), promulgada em 04/05/1938 que, dentre outras atribuições, praticamente acabava com a autoridade do Cônsul brasileiro no exterior, que a partir de então era obrigado a remeter os pedidos de visto à Divisão de Passaporte do Rio de Janeiro. Cf.: AVRAHAM, Milgram. Os judeus do Vaticano: a tentativa de salvação de católicos não-arianos da Alemanha ao Brasil através do Vaticano (1939-1942). Rio de Janeiro: Imago, 1994; CARNEIRO, Maira Luiza Tucci. O antisemitismo na era Vargas (1930-1945): fantasmas de uma geração. São Paulo: Brasiliense, 1988.

Passaporte de Otto Karpfen. Na página 11, o visto nº 456 do Consulado Geral do Brasil, “parte do contingente de 3.000 israelitas católicos autorizados a emigrar para o Brasil.” Acervo: Arquivo Nacional

onde havia fugido após o Anschluss, tão logo tomou conhecimento da iniciativa bem-sucedida do Vaticano, Otto Maria e d. Helena conseguiram o visto para o Brasil (precisamente em 25/07/1939)26, embarcando no

vapor Copacabana Antuérpia-Rio de Janeiro27 poucos dias antes da eclosão

da II Guerra Mundial.

O primeiro contato de Carpeaux no Rio de Janeiro deu-se através do Centro Dom Vital, instituição que naquele momento era dirigida por Alceu Amoroso Lima. Do que podemos perceber na série epistolográfica entre Carpeaux e Amoroso Lima, o intuito do escritor exilado era acelerar um circuito de indicações, referências e cooperações entre instituições católicas que ele próprio já havia experimentado no exílio europeu. O Centro Dom Vital era a instituição congênere e natural para essa primeira aproximação. E o seu diretor, o contato por excelência. Mas o diálogo entre os dois foi difícil e, no limite, improdutivo para o exilado recém- chegado, sedento pela sua inclusão no cenário intelectual brasileiro e

26 von BRÜNN, Albert. Op. cit.

carente de um trabalho que lhe trouxesse segurança material e lhe permitisse se fixar no país.

Escritas em francês e ainda assinadas por „Otto Maria Karpfen‟, essas primeiras cartas permitem conhecer melhor o período entre a chegada de Carpeaux no Brasil e seu vínculo com o Correio da Manhã (entre setembro de 1939 e abril de 1941) ou, qualitativamente, entre o exílio brasileiro como uma possibilidade e o exílio brasileiro como realidade. Vale lembrar que antes da primeira carta houve um encontro pessoal entre os dois, na sede do Centro Dom Vital, igualmente infrutífero para o exilado austríaco.28

O início deste ciclo de correspondências entre „Karpfen‟ e Alceu Amoroso Lima é marcado por uma carta datada em 14 de outubro de 1939, postada ainda do Rio de Janeiro; a última delas foi escrita às vésperas do Natal de 1940, em 19 de dezembro, na cidade de São Paulo. Entre uma carta e outra, o que podemos aferir é a existência não de um, mas de vários Carpeaux ao longo de pouco mais de um ano: do exilado político dotado de eminentes referências (do Núncio Apostólico a diretores de instituições e publicações católicas de Roma, Paris e Nova Iorque) ao irascível intelectual que não encontrou naquela instituição católica o apoio suficiente; do respeitado (e despeitado) escritor “digno da estima de três papas” ao homem “reduzido a miséria [...], sem apoio material ou moral”. A menção de um passado, uma profissão e um „projeto político-espiritual

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