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5 LEITURA SIMBÓLICA DAS TOADAS DE DONATO ALVES

5.1 Imaginação e imagem

Gaston Bachelard é considerado um dos mais importantes filósofos contemporâneos. Suas reflexões abrangem diversas áreas do conhecimento, em especial a ciência e a filosofia, e propõem rupturas com as ideias tradicionais de cunho positivista, racionalista, realista e formalista. Estudiosos de sua obra identificam pelo menos duas vertentes em seu pensamento: uma diurna e outra noturna. A primeira está ligada à atividade intelectual, científica, racional; a segunda relaciona-se com a dimensão artística, a imaginação, o sonho e o devaneio.

Ao Bachelard diurno estão relacionadas as obras de cunho epistemológico, que caracterizaram o filósofo como crítico do racionalismo e do empirismo científico, tais como A Formação do espírito científico. Já ao Bachelard noturno correspondem as obras que destacam o lugar da criação artística no imaginário, tais como A poética do espaço e A poética do devaneio, e que fazem do autor um “inovador da concepção de imaginação, explorador do devaneio, exímio mergulhador das profundezas abissais da arte, amante da poesia” (PESSANHA, 1994:vi).

Segundo Elyana Barbosa (1996), a existência dessas duas linhas de pensamento na filosofia bachelardiana – a epistemológica e a metafísica da imaginação – pode supor erroneamente uma separação entre ciência e poética na obra do filósofo francês. Porém, o que existe é uma continuidade entre essas duas posturas, uma vez que ambas têm o mesmo ponto de partida: o homem, considerado em sua totalidade como um ser dotado de imaginação e criatividade, capaz de instaurar novas realidades. Um demiurgo.

A imaginação é vista por Bachelard como essência do espírito humano. É a imaginação que dá dinamismo às atividades do homem, atividade intelectual e atividade onírica, o homem enquanto pensador, o homem enquanto sonhador. (BARBOSA, 1996, p. 17).

Com essa concepção, Bachelard promove uma releitura da faculdade de imaginar, recolocando-a no centro do debate filosófico e fazendo com que a imaginação ocupe uma posição análoga à da razão. A partir daí, a imaginação passa a ser encarada não como algo posterior à percepção, nem como cópia mal feita ou simples reprodução da realidade, tal como enxergava a tradição filosófica

ocidental30, mas como fonte que impulsiona o pensamento e como instrumento de

construção de objetos e saberes.

Sob o olhar bachelardiano, o âmbito da imaginação poética não está circunscrita aos limites das sensações vividas, mas é fundamentalmente fonte e poder de criação. A imaginação está vinculada à vontade, e desvela- se como atividade potencialmente transformadora do mundo. Destarte, seja pela ciência, seja pela arte, a imaginação é a forma pela qual se instauram novas realidades, o caminho para o novo, para fazer ser o que não é. (PAIVA, 2005, p. 23)

Nas palavras do próprio Bachelard (1989, p. 17-18): “A imaginação inventa mais do que coisas e dramas. Ela inventa a vida nova, ela inventa o espírito novo, ela abre os olhos a novos tipos de visão”. É, portanto, uma força imaginante que vai além do psiquismo, porque capta a imagem em seu movimento e afirma o homem como ser instaurador da novidade. Talvez por isso ele a considere "não como uma faculdade de formar imagens da realidade; mas uma faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade”. (ib. ibid.). Enfim, para o filósofo da ruptura, a imaginação é uma faculdade de “sobre-humanidade” (ib. ibid.).

De acordo com Elyana Barbosa (1996), a metafísica da imaginação bachelardiana pode ser dividida em duas etapas, caracterizadas em função da metodologia adotada para o estudo das imagens. No primeiro momento, o filósofo procura realizar uma interpretação objetiva das imagens a partir dos elementos cósmicos: ar, água, fogo e terra. Para Bachelard, esses elementos da matéria formam os arquétipos31 - imagens primordiais enraizadas no inconsciente coletivo. A

ênfase aqui é no caráter primitivo das imagens e no papel desempenhado pelos quatro elementos. Daí afirmação de que “as imagens imaginadas são antes

30 “É importante observar que a tradição filosófica relegou à imaginação um lugar subalterno;

postulou-a ora como uma faculdade reprodutiva e inferior no processo de conhecimento, ora como fonte de erros e ilusões. Na história da filosofia, ela assume uma conotação que se opõe ao ser, uma vez que, por sua própria natureza, contradita a lógica das determinações. Oposta a essa tradição em que é constantemente denegada enquanto fonte de criação, a imaginação corresponde, no pensamento bachelardiano, a um poder constitutivo do homem através do qual ele assume sua mundanidade e se revela como sujeito de seus atos”. (PAIVA, 2005, p. 126).

31De acordo com Felício (1994), Bachelard se apropria da noção jungiana de arquétipo, enquanto

matriz arcaica da psique, mas atribui a ela um caráter dinâmico: “Segundo Bachelard, o ‘arquétipo’ junguiano é uma imagem cuja raiz está no inconsciente longínquo, que não vem de nossa vida pessoal e somente se pode referir a uma ‘arqueologia psicológica’. Os ‘arquétipos’ são símbolos-

motores, e isto é o que Bachelard acrescenta ao ‘arquétipo’ junguiano’. As várias definições de ‘arquétipo’ dadas por Jung – ‘imagem original existente no inconsciente’, ‘um complexo inato’ ou uma ‘imagem primordial’ – recobrem o que Bachelard lhes empresta”. (FELÍCIO, 1994, p. 109).

sublimações dos arquétipos do que reproduções da realidade”. (BACHELARD, 2013, p. 3).

Na visão de Bachelard, portanto, a imaginação é anterior ao pensamento racional e provêm do fundo do psiquismo humano. Como diz Bachelard: “Sonha-se antes de se contemplar. Antes de ser um espetáculo consciente, toda paisagem é uma experiência onírica. Só olhamos com uma paixão estética as paisagens que vimos antes em sonho”. (1989, p. 5). E as imagens poéticas, oriundas das pulsões humanas, estão intimamente vinculadas aos arquétipos, surgindo assim da necessidade constante que o homem tem de transcender a realidade e criar o novo, daí a emergência de valores estéticos próprios da dimensão noturna do ser humano.

Num segundo momento de sua metafísica, Bachelard caminha para uma filosofia do devaneio propriamente dita, abordagem que considera a autonomia radical da imaginação em relação a qualquer tipo de determinação ou causalidade (seja de cunho psicológico, seja de caráter psicanalítico). ‘‘Subscrevemos esse ponto de vista: mais do que a vontade, mais do que o impulso vital, a Imaginação é a força mesma da produção psíquica". (BACHELARD, 1994, p. 161)

Para isso, o autor defende a adoção do método fenomenológico como única forma de compreensão da dimensão subjetiva das imagens. “Só a fenomenologia - isto é, a consideração do início da imagem numa consciência individual, pode ajudar-nos a restituir a subjetividade das imagens e a medir a amplitude, a força, o sentido da transubjetividade da imagem”. (BACHELARD, 2008, p. 3).

Bachelard considera, portanto, o método fenomenológico como aquele que permite ao sujeito dar livre curso às suas vivências a partir da visão da imagem, sem ser subserviente ao objeto. Em razão disso, a experiência individual se torna mais aberta e o sujeito transforma-se num criador de imagens. A fenomenologia, neste sentido, é apontada como o método por excelência da imaginação criadora32,

responsável pela formação das imagens poéticas. Estas, enquanto realidades psíquicas, são móveis e deformam as outras imagens estáticas originadas da percepção, possibilitando ampliar a experiência da criação.

32Bachelard denomina imaginação criadora aquela ligada às imagens sublimadas pelos arquétipos

ar, água, fogo e terra – que cumprem a função do irreal e promovem a articulação simbólica entre o mundo interior e o mundo exterior do indivíduo. Ela se diferencia da imaginação reprodutora (ou imaginação formal), de base racionalista e relacionada à função do real, cujo fundamento se encontra na percepção e na memória.

Assim, Bachelard passa de uma descrição cuidadosa e objetiva das imagens para vivê-las com intensidade, do cuidado com a interpretação subjetiva para um verdadeiro subjetivismo da imagem. Agora, o que importa é o sentimento que a imagem pode provocar no sujeito, o maravilhamento provocado pela poesia, pois o poeta conhece o prestígio da liberdade. (BARBOSA, 1996, p. 35).

Deste modo, se a preocupação inicial do autor era entender o homem a partir do desvelamento do seu inconsciente, o foco agora é na relação intersubjetiva entre os dois polos da criação: leitor e autor/poeta. Para dar conta desse propósito, Bachelard investe nas imagens literárias, devido ao seu dinamismo e à sua natureza plurissignificante, que permite a superposição de diversos elementos ou arquétipos, valorizando o ato criador. As imagens que motivam a investigação agora são aquelas dotadas de atualidade, autonomia, mobilidade e fecundidade de sentido. São elas que, enquanto produto dos devaneios, alimentam a alma e enriquecem a nossa experiência com a linguagem.

Deixaremos de lado, portanto, as imagens do repouso, as imagens constituídas que se converteram em palavras bem definidas. Poremos igualmente de parte todas as imagens tradicionais – como as imagens das flores, tão importantes no herbário dos poetas. Elas vêm, com um toque convencional, colorir as descrições literárias. No entanto, perderam seu poder imaginário. Outras imagens são inteiramente novas. Vivem da vida da linguagem viva. Experimentamo-las, em seu lirismo em ato, nesse signo íntimo com o qual elas renovam a alma e o coração; essas imagens literárias dão esperança a um sentimento, conferem um vigor especial a nossa decisão de ser uma pessoa, infundem uma tonicidade até mesmo à nossa vida física. (BACHELARD, 2001, p. 3).

Assim, Bachelard elabora uma teoria da imaginação que se encaminha para uma metafísica da imaginação. Ainda segundo Elyana Barbosa (1996), é possível, vislumbrar uma terceira etapa nesse percurso teórico no pensamento bachelardiano, que se caracteriza pelo abandono de qualquer preocupação metodológica para dar livre curso à imaginação através dos devaneios poéticos, entendidos como um exercício de liberdade do ser. Esse movimento não linear se expressa em várias de suas obras, entre elas A poética do espaço (2008) e a Poética do devaneio (2009)

Neste trabalho, tanto a linha de pensamento bachelardiano que persegue a descrição objetiva das imagens quanto a que investe radicalmente no subjetivismo serão levadas em consideração, uma vez que pretendo analisar não só a presença dos quatro elementos nas toadas de Donato Alves como também identificar os

arquétipos provenientes dos devaneios do artista maranhense, entre eles os arquétipos da infância.