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Da imaginação e da razão

3. A RAZÃO À REBOQUE DAS PAIXÕES OU FUNDAMENTO DO PACTO?

3.2 Da imaginação e da razão

Como entendido, na filosofia hobbesiana as sensações são as portas de entrada para tudo o que o homem pensa e produz, bem como da sua interação com o mundo. As sensações, deste modo, constituem-se no princípio do conhecimento, pois somente após haver percepção é que a mente pode processar algo e sair em busca do entendimento das causas e consequências.

Após o objeto ter causado a impressão em nossos órgãos sensoriais e ao não estar mais presente, permanece dele uma ilusão ou aparência, ou seja, passamos a ter uma memória ou imaginação da coisa sentida que Hobbes denomina de fantasia. Esta concepção tida a partir do ato da sensação vai declinando pouco a pouco, porém, quando o mesmo objeto novamente visto volta a impressionar nossos sentidos, faz agitar a fantasia ou imaginação dele que já estava retido na mente. Com o decorrer do tempo, a mente vai armazenando muitas e diversas imaginações assim denominadas de memórias, isto é, algo que ficou da sensação originalmente sentida. “Uma memória copiosa, ou seja, memória de muitas coisas é

denominada experiência”.154 Estas memórias são necessárias a fim de tornar possível o discurso mental, que nada mais é que a sucessão de um pensamento a outro, numa sequencia que podemos classificar de desorientada quando divagamos ou estamos mais ou menos distanciados de uma paixão ou desejo, ou orientada, neste caso, quando regulada por algum desejo ou desígnio. Este segundo tipo de pensamento, efetivamente, é mais constante, intenso e permanente quando guiados pelas coisas que desejamos ou tememos, de tal modo que a impressão:

É tão forte, às vezes, que chega a interromper ou impedir nosso sono. Do desejo surge o pensamento de alguns meios que vimos produzir efeitos análogos aos que perseguimos; do pensamento desses efeitos nasce a ideia dos meios que conduzem a esse fim e, assim, sucessivamente, até chegarmos a algum começo dentro de nossas possibilidades.155

Desse modo a mente, além da faculdade de conhecer os objetos que estão no mundo através das sensações que nos chegam, trabalha com cálculos e previsões, causas e efeitos. Este é o campo da faculdade racional. Hobbes é claro quando diz o que entende por razão, ela é uma faculdade que lida com cálculos, conforme ele especifica:

Então, em qualquer matéria onde há lugar para adição ou subtração, há também lugar para a razão e, quando aquelas operações não são possíveis, a razão nada pode fazer. Tomando isso por base, pode-se definir (isto é, determinar) o que é e o que significa a palavra razão, quando incluída entre as faculdades mentais. Porque a razão, nesse sentido, nada mais é que a consideração (isto é, adição ou subtração) das consequências dos nomes gerais ajustados, para a caracterização e significação de nossos pensamentos.156

Assim, podemos dizer que, em Hobbes, a razão é dotada de uma dupla função: calculadora e instrumental. Quando esta é apropriada pelo homem como um meio, isto é, um instrumento base para efetuar cálculos, recebe adequadamente este nome. Porém ela é calculadora na sua utilidade em antever resultados ou calcular nomes de coisas e fatos. Com este fim, a razão elabora uma fala discursiva lógica e coerente capaz de propiciar ao homem a saída do estado de simples natureza, que é de guerra de todos contra todos, por meio do pacto que institui um poder soberano, capaz de promover as condições para a paz, a segurança e a estabilidade que inexistem no estado natural.

154 HOBBES, 2008, I, II. 155

Ibid., I, III. 156 Ibid., I, V.

Neste ponto, Hobbes alerta quanto à importância do uso da linguagem a fim de transformar o discurso mental em verbal e daí construir todo o alicerce seguro do conhecimento humano e oferecer efetiva racionalidade às ações humanas.157

Necessária para se construir ciência, a razão não é, contudo, suficiente. Este edifício só se erguerá, por sua vez, com o estabelecimento da linguagem. Apenas partindo do cuidado com a exatidão dos primeiros princípios a fim de estes serem bem compreendidos e claros para todos e da mesma forma, e mais ainda, se os cálculos das conseqüências estiverem corretos, é que se pode ter a certeza da verdade dos discursos, e da validade da ciência.

A razão é diferente dos sentidos e da memória – inatos ao homem – pois, de acordo com Hobbes, trata-se de uma faculdade adquirida através do esforço; primeiramente, impondo nomes corretos às coisas de acordo com uma metodologia adequada e comum a todos. Desse modo, chegamos até a construção da ciência que nada mais é do que o conhecimento das conseqüências e dependências de um fato com respeito a outro. Assim, de modo coerente, ao nos depararmos com o surgimento de algo, ao sabermos por que motivos e de forma essa coisa surge, quando a mesma coisa, no futuro, cair sob nosso domínio, esperamos que ela viesse outra vez a produzir os mesmos efeitos produzidos anteriormente. Desse modo Hobbes conclui:

A luz da mente humana é constituída por palavras claras e perspicazes, porém livres e depuradas da ambiguidade mediante exatas definições; a razão é o passe; o incremento da ciência, o caminho; e o benefício do gênero humano, o fim. Por outro lado, as metáforas e as palavras sem sentido ou ambíguas são como os ignes

fatui; racionar tomando-as por base equivale a perambular entre absurdos

incontáveis; o seu fim será o litígio, a sedição e o desdém.158

Fica claro, pelo até aqui apresentado, que o objetivo final da filosofia política hobbesiana é o benefício para a humanidade: a saída ou superação do estado de natureza e obtenção da paz refletida na convivência pacífica entre os homens pela mediação de uma soberania absoluta concentrada nas mãos de um homem ou grupo de homens a quem é delegado esse poder. Esta conquista, no entanto, requer um longo processo que tem início na compreensão de como o homem percebe o mundo e quais as forças que o guiam, sua condição ou natureza. Nesse desiderato se torna ainda preciso um adequado e satisfatório conhecimento das causas e dos efeitos das coisas e do uso correto da linguagem, sendo a razão o instrumento

157

Devido à limitação do nosso trabalho nós não vamos aprofundar este aspecto da filosofia hobbesiana, o papel da linguagem, que trataremos como dado o que não irá se constituir em nenhum prejuízo tendo em vista os objetivos que colimamos.

adequado e necessário para calcular os meios apropriados para efetuar tal navegação de modo seguro.

O homem, no entanto, é mais que um ser calculador. Pela própria eficácia do processo cognitivo os apetites estão presentes de forma constante potencializando as ações humanas e Hobbes, ao ressaltar a função calculadora da razão, parece querer retirar desta última uma pretensa relação de comando e autonomia em relação aos primeiros.

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