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Imaginação, sonho, ilusão: Kafka e a Boneca Viajante

Clare Winnicott, amor incondicional

D. W Winnicott, brincar de escrever

3.1 Imaginação, sonho, ilusão: Kafka e a Boneca Viajante

O maior absurdo depende da sinceridade com que é contado (JORDI SIERRA I FABRA, 2006, p. 26).

O livro “Kafka e a Boneca Viajante”, de Jordi Sierra i Fabra (2006), configura-se como uma autêntica superposição de narrativas, tempos e ilusões, no sentido mais winnicottiano do termo. Temos a narrativa sobre como o livro

97 foi concebido pelo autor, mobilizado pela beleza em si do gesto de Kafka, o próprio gesto, embora não documentado, e a recriação do suposto encontro de Kafka com uma garotinha que havia perdido sua boneca.

Conta a lenda que em 1923, um ano antes de falecer em um sanatório da Áustria, vítima de tuberculose, Kafka teria se dedicado a escrever cartas a essa garotinha, que encontrara casualmente em um parque do subúrbio de Berlim. Bastante sensibilizado com o sofrimento expresso no choro convulsivo, para consolá-la, Kafka inventou que a boneca, na verdade, havia ido viajar. Autodenominando-se carteiro de bonecas, durante três semanas Franz Kafka encontrou-se com a garotinha no mesmo parque, sempre na mesma hora, para lhe entregar a ansiada correspondência.

Pois bem, segundo o relato da companheira de Kafka à época, Dora Dymant34, o autor de “Metamorfose”, “escreveu a primeira carta com absoluta seriedade e entrega, e depois todas as demais, tão devotado a elas como teria estado a um de seus romances e contos” (JORDI SIERRA I FABRA, 2006, p. 123). Mas não há qualquer vestígio, a não ser o relato de Dora – a garotinha e as cartas nunca foram encontradas, “uma obra de Kafka exclusiva para uma só pessoa, uma menina. E talvez a mais bela e lúcida de suas incursões literárias” (op. cit., p.124).

Teria mesmo Franz Kafka, notável por emoldurar em sua obra a angústia de se viver em um mundo impessoal, crítico à deterioração de valores e ao poder do Estado, materializado em entraves burocráticos, se dedicado à tarefa tão trivial? Teria sido uma forma de se distrair da densidade de seus escritos e da desesperança que atingira a Europa no pós-guerra? Ou, na verdade, livros e cartas servem ao mesmo propósito, curar feridas e permitir que a vida se mantenha harmoniosa? (SIERRA I FABRA, 2006)

Pouco importa o que aconteceu na realidade. Importa mais a transgressão de Jordi Sierra i Fabra, que, quase um século depois, permitiu-se recriar a narrativa e as cartas, para deleite do leitor, caracterizando muito bem o que seria o trabalho de um escritor – “alquimista de palavras e emoções, um mago da natureza humana” (SIERRA I FABRA, 2006, p. 95):

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98 Estava em jogo uma esperança.

O que há de mais sagrado na vida.

Franz Kafka sentiu o formigamento nas mãos, o nascimento das asas de Ícaro que o elevavam até aqueles mundos possíveis apenas em sua mente inquieta e inquietante, quando se debruçava sobre o papel empunhando a caneta e entrelaçava as histórias mais extraordinárias já concebidas.

Era escritor (JORDI SIERRA I FABRA, 2006, p.32)

Na narrativa criada por Sierra i Fabra (2006), o jogo entre as personagens Kafka e a garotinha, chamada Elsi, durou três semanas. As cartas da boneca viajante, de nome Brígida, chegavam de Londres, Paris, Viena, Veneza, deserto do Saara, Índia, China, Japão, México, Cuba – na verdade, pouco importava a lógica, ou a falta dela em termos de espaço geográfico e tempo; nas mãos de Kafka, “a boneca fizera o mundo ficar pequeno” (op. cit., p. 74).

Além da descrição minuciosa das maravilhas de todos esses lugares, as cartas eram entremeadas com justificativas pela partida repentina, afinal, muitas coisas só podem ser ditas se escritas: “... as despedidas são tristes, e eu não queria que você chorasse nem tentasse me convencer a ficar mais um pouco...”. Traziam também ensinamentos simples: “Elsi, você deve saber que viver é seguir em frente, aproveitar cada momento, cada oportunidade e cada necessidade...”; agradecimentos, reconhecimento e conforto: “Quero que fique contente, e muito, porque tudo que sou devo a você. Você cuidou de mim, me ensinou muitas coisas, me amou e me fez ser uma boa boneca... a partida foi triste por deixá-la, mas bonita porque graças a você sou livre para fazer isso” (JORDI SIERRA I FABRA, 2006, pp. 48-49).

Kafka ia assim procurando ajustar seu idioma – “fizera [Kafka] muitos rascunhos, estudara o tom, mudara as palavras, calculara a intensidade, procurara uma linguagem simples e compreensível” (JORDI SIERRA I FABRA, 2006, p.56) –, de modo a não só se fazer compreender por Elsi, mas buscando tornar tudo verossímil, de acordo com as possibilidades do jogo imaginativo: todas as cartas traziam os selos dos locais visitados por Brígida e os envelopes sempre estavam devidamente lacrados. Além disso, as palavras de Brígida eram mesmo as de uma boneca ou de uma filha que deixa a casa dos pais para se experimentar, com a reserva de amor que lhe proporcionaram,

99 sentindo-se potente para enfrentar os reveses da vida: “Você [Elsi] a ensinou a não ter medo e a enfrentar a vida quando foi preciso. Por isso acho que deveria se sentir muito orgulhosa” (op. cit., p.52). Assim, ao mesmo tempo em que acolhia o sofrimento de sua pequena amiga, Kafka sinalizava que ela havia experimentado com sua boneca exercer a função de cuidado maternal, por sinal, de modo suficientemente bom...

Mas muitas cartas foram ainda necessárias para que Elsi voltasse a ser feliz e para que Brígida conseguisse se libertar: “Estava metido até o pescoço numa armadilha da qual não sabia como escapar e tinha iniciado um jogo que não podia abandonar no meio” (JORDI SIERRA I FABRA, 2006, p.57).

Na verdade, o escritor Franz Kafka e a garotinha Elsi haviam se tornado cúmplices de um grande segredo, tomados pelo magnetismo da história, contaminados pela vivacidade de Brígida e seu espírito aventureiro, vivendo o sonho de viajar, o sonho de poetas e cegos - aqueles que podem ver na escuridão: “Sem sonhos, somos apenas corpos perdidos vagando na rotina” (JORDI SIERRA I FABRA, 2006, p. 85).

Mas sonhos sonhos são, e chegam ao fim. “O que acontece quando bonecas e meninas crescem?” – quis saber Elsi, diante da penúltima carta, vinda da Tanzânia, e que já anunciava a despedida: “Viveremos cada uma na memória da outra, e isso é a eternidade, Elsi, porque o tempo não existe para além do amor” (JORDI SIERRA I FABRA, 2006, p. 87).

Por que Brígida interromperia tão intensa correspondência? Simples: apaixonara-se por um explorador africano que a havia salvado de um elefante que quase a atropelara enquanto se dirigia a seu cemitério para morrer! “Gustav e eu somos marido e mulher... muito em breve, teremos filhos e filhas tão lindos como você... Não conseguiria isso sem seu amor. Eu não poderia ser livre e feliz se você não tivesse me feito livre e feliz” (JORDI SIERRA I FABRA, 2006, p. 109) – foram as últimas palavras de Brígida à menina/mãe Elsi.

Mas Kafka ainda precisava se despedir, sentia que faltava um fecho para a história, de modo que ele mesmo obtivesse conforto em um final feliz: “Por que ele [Kafka] não encontrou um carteiro de bonecas quando era menino? Por que sempre teve de enfrentar seu pai? Por que não havia bonecas viajantes na vida real?” (JORDI SIERRA I FABRA, 2006, p. 113).

100 Chegou ao parque Steglitz na mesma hora e sentou-se no mesmo banco em que passara as últimas três semanas com sua amiguinha – ela logo o avistou e, surpresa, correu até ele, já não haviam se despedido no dia anterior? Sim, mas repentinamente, Brígida enviara uma nova breve carta, e um presente: uma boneca de porcelana, que deveria ser chamada de Dora... “A infância é o tempo de acreditar em bonecas. É na infância que existem os finais felizes. Mas são muito mais necessários na maturidade os carteiros capazes de receber cartas que só um louco é capaz de escrever” (JORDI SIERRA I FABRA, 2006, p.114).

3.2 Travessias: jogo do rabisco, objetos e fenômenos transicionais