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Ao conceber o mundo como algo plenamente material, a filosofia materialista de Marx reconhece a existência concreta de tudo que se encontra fora da consciência humana. Os múltiplos e variados fenômenos do mundo são apreendidos como movimentos da própria matéria, que desenvolvem e modificam a realidade material. Percebendo, desse modo, que o mundo concreto é composto por tudo aquilo que se apresenta diferente do sujeito pensante, a imaterialidade somente pode ser compreendida como algo que não se objetivou do indivíduo, isto é, naquilo que lhe é subjetivo: sua consciência.

Portanto, imateriais são as ideias. É tudo aquilo que se encontra reservado na mente humana: os pensamentos e elaborações da psique. Ou seja, são as representações que os seres humanos elaboram de sua realidade, de seu contato com a objetividade do mundo e são reproduzidos por eles em sua consciência – uma vez que ela é, desde o início, um reflexo da experiência do homem com o mundo material72. Assim, enquanto de um lado há o mundo material, realidade concreta e viva perante os indivíduos, de outro há representações sobre ele, que correspondem a toda imaterialidade do mundo, viva em um só lugar: na mente humana – assim, fruto da interação do sujeito com a realidade concreta.

72 ―[...] [A consciência] não é desde o início, consciência ‗pura‘. O ‗espírito‘ sofre, desde o início, a maldição de estar ‗contaminado‘ pela matéria [...]‖ (MARX; ENGELS, 2007, p. 34).

Na medida em que os indivíduos produzem e reproduzem suas condições materiais, eles também produzem representações de si mesmos: sua consciência é desde sempre um produto social. Suas ideias e reflexões são, portanto, reproduções da realidade concreta no pensamento humano. Quer dizer, o mundo material é o espelho para a existência do imaterial73. Destaca Laymert Garcia dos Santos (1982, p. 47):

―Ocorre que os homens pensam e, como seres pensantes, representam para si mesmos e para os outros o que fazem. Essas representações, esse pensamento, são uma emanação direta de como se comportam. Então os homens produzem e pensam, produzem materialmente e produzem representações, ideias sobre a sua produção material. Representações e ideias que também são condicionadas pelas mesmas condições materiais de produção. Essas representações, essas ideias, formam a consciência; uma consciência que é determinada pela produção [...]‖

Ao desenvolverem as bases da dialética materialista, Marx e Engels (2007, p. 35) apontam para a existência de dois níveis distintos de consciência. A primeira seria aquela imediata, resultante do primeiro contato do sujeito com o meio sensível: é puro reflexo. Já a segunda seria uma consciência racional, em que o homem domina sua interação com o objeto e, dessa forma, determina e conduz, a seu modo, suas relações com o mundo. A consciência de seu domínio sobre a natureza faz do homem um agente transformador, que se apropria da materialidade do mundo conferindo-lhe vida útil em vista de sua satisfação. São suas ideias, portanto, produto de suas interações com o meio objetivo, que os conduzem ao seu desenvolvimento enquanto ser social, levando-os a encontrar utilidades e criar necessidades – para si mesmos – à medida que trilham seu caminho sob o solo da história.

Há que ressaltarmos que as ideias sempre acompanharam o homem nas intervenções sobre seu meio e que a busca por suas satisfações sempre o levaram a produzir e encontrar valores-de-uso para atender suas incessantes necessidades, constituindo-se em ―[...] fatos históricos a descoberta dos diferentes modos, das diversas maneiras de usar as coisas [...]‖ (MARX, 2003a, p. 57). No entanto, do mesmo modo que as ideias permitem aos seres humanos verem utilidade nas coisas

73 ―As representações que esses indivíduos produzem são representações, seja sobre sua relação com a natureza, seja sobre suas relações entre si ou sobre sua própria condição natural. É claro que em todos esses casos, essas representações são uma expressão consciente – real ou ilusória – de suas verdadeiras relações e atividades, de sua produção, de seu intercâmbio, de sua organização social e política [...]‖ (Nota de Rodapé MARX; ENGELS, 2007, p. 93).

concretas, os valores de uso somente se lhe apresentam, mediante a materialização de seu pensamento, de sua ação. E ainda que esta ação constitua-se em uma realidade material, a ideia sobre ela permanece como uma representação mental da coisa material em uso e, portanto, imaterial. Vejamos a coisa mais de perto.

À medida que o homem altera suas condições materiais, também modifica seu pensamento74 – uma vez que sua consciência é produto de sua interação com a realidade sensível –, diversificando com isso suas formas de enxergar utilidade nas coisas concretas. Eis que suas ideias se materializam em ações, em atividades úteis para a sociedade (i.e, trabalho), que produzem valores de uso. Entretanto, mesmo que suas ideias se concretizem por meio da ação humana, elas ainda permanecem subjetivadas na mente do indivíduo e, desse modo, não se constituem cristalização de trabalho – embora os valores de uso produzidos pelas ações imbuídas desses pensamentos, sejam, efetivamente, trabalho humano cristalizado75.

Voltemos nossa atenção para esse ponto: o valor de uso. Se, por um lado, a utilidade das coisas é revelada para o homem por meio de seu pensamento (determinado por seu contato com o mundo sensível), por outro, ela somente se concretiza através do consumo das propriedades materiais dessas coisas – que são destruídas quando completamente consumidas. Afirma Marx (2003a, p. 58): ―A utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso. Mas essa utilidade não é algo aéreo. Determinada pelas propriedades materialmente inerentes à mercadoria, só existe através delas. [...] O valor de uso só se realiza com a utilização ou consumo [...]‖.

Tal perspectiva engendra na seguinte percepção: as ideias executadas resultam em elementos materiais (objetos ou atividades) sem, contudo, serem consumidas. Ou seja, à medida que ideias são postas em prática, resultados materiais são obtidos e o mundo é seguidamente modificado, ao passo que as ideias continuam estáticas, invioladas. A execução de uma ideia materializa o que antes era somente imaginação. Ele pensou e a ideia foi executada: eis a matéria. Assim pondera Feuerbach: ―Realizar-se para o pensamento significa negar-se, deixar de ser mero pensamento. Mas o que é então esse não pensar, esse diferenciar-se do

74 ―[...] pois o ser é determinado por sua existência concreta, real, é ela quem impõe limites ao pensamento [...]‖ (SANTOS, 1982, p. 26).

75 ―O que é a consciência senão esse ser irredutível que não pode tornar-se objeto de nenhum outro, porque transforma todas as coisas em objetos, em predicados de si mesmo‖? (grifo nosso SANTOS, 1982, p. 27)

pensamento? O sensível. Realizar-se para o pensamento significa pois tornar-se objeto dos sentidos 76‖ (Feuerbach, 1975 apud SANTOS, 1982, p. 26).

Nesse âmbito percebemos que as ideias jamais podem ser úteis enquanto tão somente ideias, pois ―[...] enquanto ato puro, o pensamento não chegaria a nada se ficasse em si mesmo, se não se deixasse invadir pelo sensível [...]‖ (SANTOS, 1982, p. 26). Por exemplo. A ideia de entrar no rio e refrescar-me, me leva a realizar essa ação, ela é concretizada, o ato consumido e a realidade transformada. Já não sou a mesma pessoa e nem o rio é o mesmo77. A representação, contudo está preservada: ainda posso me imaginar entrando pela primeira vez naquele rio. Embora a ação modifique a realidade, a ideia dela é algo estático, tudo se modifica, exceto a ideia78. A utilidade foi, portanto, extraída da ação – na medida em que seus elementos materiais foram consumidos durante esse processo – e não de sua representação, que se encontra imaterializada na consciência humana. Ao passo que é a sensibilidade que determina o pensamento, este se objetiva num produto de si próprio – da consciência – sem, contudo, cindir-se de seu próprio sujeito. Pois, o ser que pensa não é separado do ser real que vive e é condicionado pelos objetos de sua própria realidade. As ideias fazem do homem um ser consciente, mas somente por meio de suas ações, que se torna um ser histórico. Afinal, o imaterial não é nada sem o objeto (o material), pois é nele que a consciência se realiza e se revela – mas não se consome.

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