• Nenhum resultado encontrado

A imersão na comunidade de Icozinho ocorreu no período de quatro semanas ininterruptas a partir do dia 21 de março, de modo que tive que fixar residência na casa dos meus avós maternos que residem na comunidade, ao explicar sobre a pesquisa solicitei um espaço para trabalhar e assim me foi concedido. O fato dos meus avós residirem em Icozinho foi um beneficio imenso para o desenvolvimento efetivo da pesquisa, já que pude trabalhar de modo contínuo, com um contato diário com os colaboradores do estudo.

A escolha pela comunidade se justifica pela singularidade social dos modos de organização comercial preservados pelos seus moradores. O distrito de Icozinho, localizado no Centro-Sul Cearense, faz parte do munícipio de Icó e tem pouco mais de 3 mil habitantes, a economia local é baseada na agricultura, horticultura e pecuária. A localidade conserva costumes populares e mantém firmes as tradições relacionada ao comércio, com suas bodegas e açougues públicos. Os/As comerciantes ainda anotam seus fiadosem cadernetas e vendem de porta em porta hortaliças, leite, queijo, carne, roupas, perfumes. Essas observações são colocadas com base em minha experiência pessoal na comunidade, visto que morei durante um ano nesse distrito e meus avós maternos ainda residem no Icozinho.

O acesso ao distrito de Icozinho é um pouco difícil, as estradas ainda são de ―terra‖, vegetação fechada e presença abundante de répteis e animais peçonhentos. Como podemos observar na Figura 1, as estradas são estreitas e muitas pedras dificultam a passagem de motos e carros. No inverno, algumas partes do caminho são inundadas e torna-se impossível a travessia; visitantes, ou até mesmo os moradores, esperam a água baixar para conseguir ter acesso a alguns locais. Na Figura 2 podemos observar o registro fotográfico com vista aérea da comunidade de Icozinho. O registro foi realizado por um morador da comunidade que no mês de julho, durante a quermesse, subiu uma serra para a procissão de Nossa Senhora Sant´Ana. Na oportunidade, foram realizados diversos registros desse tipo.

Figura 1: Estrada para Icozinho (CE) Figura 2: Vista aérea de Icozinho (CE)

Fonte: Arquivo pessoal (2019). Fonte: Silva (2018).

O primeiro passo ao me inserir na comunidade foi identificar quais seriam as pessoas que estariam dentro dos critérios de inclusão para participação no estudo. Para isso contei com um ―ponto zero‖, que foi o contato com uma pessoa conhecida na comunidade que poderia me direcionar para as pessoas que corresponderia aos objetivos da pesquisa. Nesse caso, o ponto zero foi o meu avô, que é bastante conhecido na região e soube me indicar vários nomes que poderiam contribuir na pesquisa. As relações de afeto e respeito que meu avó cultivava com as pessoas da comunidade facilitaram muito no processo de indicação das pessoas e aproximação entre o pesquisador e os colaboradores da pesquisa, já que os sujeitos depositavam confiança no pesquisador em razão da indicação e, assim, agiram normalmente em suas relações comerciais do dia a dia, conseguindo desenvolver com facilidade uma parceria de confiança.

O convite aos colaboradores foi realizado a partir da minha visita às suas casas, explicando a relevância do estudo e da participação deste na contribuição para uma pesquisa científica. O contato inicial foi muito importante porque o estudo dependia da disponibilidade da pessoa, da abertura para aceitar um universitário investigando sobre sua vida e ainda

publicá-la. Então o diálogo inicial foi repleto de muito carisma e sensibilidade. Ao conversar com eles, mostrei a relevância de suas práticas, de seus costumes, a importância de mostrar isso para que outras pessoas pudessem também conhecer.

Consumado o primeiro contato, iniciou-se a fase de observação e aproximação do pesquisador no cotidiano dos colaboradores, uma fase determinante para que pudéssemos visualizar suas práticas matemáticas de modo natural. Nessa fase não houve questionamentos acerca dos cálculos realizados para, por exemplo, vender, plantar ou deduzir estimativas de lucro e prejuízo, o objetivo era apenas manter uma conexão confiável com os colaboradores e participar de suas rotinas, ouvindo-os e perguntando apenas o que fosse estimulado pelo próprio colaborador, quando, por exemplo, relatava as dificuldades que passara na infância. Nessa fase foi realizado, também, registros fotográficos, filmagens e anotações, tudo com prévia autorização do colaborador.

As visitas eram realizadas todos os dias e passamos a conviver de modo tão próximo que diversas vezes almoçamos juntos, tomamos café, conversamos sobre muitas coisas e muitas lágrimas vinham, lembro que Dona Margarida dizia com os olhos cheios d´água ―Lá em casa nós passava muitas dificuldades, mas pai sempre dizia: minha fia trabalhe que você vai conseguir uma coisinha melhor. Hoje eu tenho minha casinha, é pequena, mas é minha. Consegui com meu suor‖ (DIÁRIO DE CAMPO, 22/03/2019). Então, embora eu estivesse ali para pesquisar sobre o conhecimento matemático, muitas outras informações me eram apresentadas, o que foi importante para conhecer a gênese da motivação que mobilizou a organização desse conhecimento, reconhecer que a Etnomatemática se constitui na vida em toda sua dimensão social e cultural.

Na terceira fase da pesquisa as pessoas participantes do estudo já se sentiam confortáveis em conversar abertamente comigo, tratando com intimidade e carinho. Nessa etapa foi realizada a gravação das histórias de vida numa abordagem experiencial mediante entrevistas individuais organizadas a partir de categorias direcionadoras, já que não havia perguntas formuladas, apenas categorias que precisariam ser contempladas nas falas das pessoas, o que foi estimulado a partir de questionamentos dentro das próprias narrativas dos colaboradores, tornando essa ação um movimento dinâmico, singular e variável de sujeito para sujeito. Cada história de vida foi gravada na residência da própria pessoa, em horários que se alternavam entre manhã, no período de almoço para não atrapalhar o trabalho matutino, ou à noite, após a finalização do trabalho exercido pelo colaborador na comunidade. Após a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), iniciou-

se a gravação das histórias de vida, que sempre começavam abordando o período da infância/adolescência e finalizavam com relatos dos dias atuais do colaborador.

Dito isto, torna-se relevante apresentar uma pequena síntese da história de vida de cada um dos colaboradores, buscando assim partilhar minimamente o sentimento e as emoções compartilhadas entre pesquisador e colaborador, desde o contato inicial até a realização da gravação das histórias de vida.