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Essas sugestões que entrevemos, aqui e ali, nas en- trelinhas da palestra, fazem pensar na ousadia com que o romance Desonra apresentou – além dos temas difíceis, porém cruciais, da era do pós-apartheid  – situações em- baraçosas que geraram protestos e censuras, originadas sobretudo de setores do Congresso Nacional Africano. Durante a palestra que Coetzee proferiu em Porto Alegre, muitos participantes do evento devem ter tido a expecta- tiva de que seriam ilustrados sobre as posições do autor a respeito desse episódio, episódio que de fato revela a incrível capacidade da censura de se metamorfosear, res-

surgindo em novas modulações nas novas práticas que pretendem promover o Estado de Direito. No entanto, há sempre o perigo das boas intenções se transformarem em meros simulacros, nas fórmulas do ‘politicamente correto’. Essa preocupação é onipresente nas obras de Coetzee a partir de Desonra. No capítulo 12 de Diário de um Ano Ruim, é possível discernir um comentário da voz ficcional do autor a respeito da censura que sofreram o autor e o romance Desonra. O detalhe interessante desse episódio é que a censura não foi exercida por um órgão do Estado, mas por setores do partido do Congresso Nacio- nal Africano e – paradoxalmente – com o apoio de alguns colegas escritores. Coetzee jamais fez comentário público sobre esses fatos, nem sobre as razões de sua mudança para a Austrália. No Diário, porém, ouvimos a versão fic- cional da reflexão coetzeeana a respeito do poder de cen- sura que muitos intelectuais e acadêmicos exercem hoje em toda parte nas universidades progressistas:

Quanto a sexo entre professores e alunos, tão for- te é hoje a onda de reprovação que pronunciar até a mais tênue palavra em sua defesa se transforma em algo como um combate contra a maré, sentin- do o débil esforço vencido pela vigorosa corrente que nos puxa para trás. O que se enfrenta ao abrir a boca não é o toque silenciador do censor, mas um decreto de exílio. (COETZEE, 2008a, p. 57)

Há sem dúvida uma preocupação de Coetzee com as novas e mais veladas formas de censura. O que se observa hoje em determinadas camadas da sociedade civil é nada menos que a tentativa de impor limitações severas à liberdade de expressão e de pensamento, em nome, muitas vezes, de uma suposta preocupação hu- manitária ou emancipatória. O fato é que essa atitude põe em perigo o próprio espaço da literatura e da arte. Esse mesmo problema reaparece nas mais diversas reflexões – uma delas intitulada Sobre a Autoridade na Ficção. Coetzee é incansável quando se trata de reivin- dicar a autonomia da literatura, seu direito de praticar um pensamento e formas de expressão sui generis, cujo valor moral depende justamente do respeito dessa re- doma – espaço de jogo fundamental para reflexões e ações eticamente relevantes.

Em Diário de um Ano Ruim, assim como em Dou- bling the Point,  Coetzee reforça esse caráter de isola- mento que constitui o ato de escrever. “Escrever não é propriamente uma atividade como as outras – mas um lugar” (COETZEE; ATWELL, 1992, p. 205). Esse lugar é possivelmente, como ele próprio assinala em Doubling the Point,  um “estado de perceptividade re- alçada” (COETZEE; ATWELL, 1992, p. 63), um estado, ele completa, que “despersonaliza o autor” (COETZEE;

ATWELL, 1992, p. 63), e possivelmente um ato em que o autor abre “mão do sujèt supposé savoir ” (COETZEE; ATWELL, 1992, p. 65), “quando ele desce da posição de alguém que possui o saber” (COETZEE, 2008, p. 70). O encontro do escritor com o ato de escrever não ape- nas suspende o saber, mas passa a ser determinado pela própria história que passa a contar a si mesma. Finalmente, no interior desse processo, a verdade apa- rece, algo que só é possível num espaço reservado, no isolamento, no silêncio. Em outros termos, a ideia da escritura não deve ser confundida com um lugar de en- tretenimento, nem com o da propaganda. Ela é lugar do aparecer da verdade que é outra – diferente daquilo que seu autor queria ou pensava dizer. Essa outra voz da ver- dade escrita requer um constante jogo da imaginação: oscilação entre a voz ativa (eu escrevo um romance), a

voz média (eu escrevo um romance) e a voz passiva: eu

estou sendo escrito/determinado pelos discursos que constituem meu ambiente, romance e assim por diante.

Ora é à luz dessa compreensão sutil que podemos entender também a posição de Coetzee diante da cen- sura. Adiantemos isto: ele não está preocupado com as repetidas tentativas de censura ad hominem que sofreu – tanto por parte dos setores partidários importantes na África do Sul, particularmente pelo partido do Congresso

Nacional Africano em sua “Submissão à Comissão de Direitos Humanos” (AFRICAN NATIONAL CON- GRESS, 2000), como por alguns de seus pares. Estes, em particular, ignoraram as ‘regras da arte’. Coetzee sempre silenciou quando seus detratores interpreta- vam formulações ficcionais e opiniões de personagens como se fossem declarações ofensivas do autor que exi- giriam alguma censura. Lembremos, por exemplo, que foi a antiga companheira de lutas contra o apartheid , Nadine Gordimer, que expressou seu repúdio contra uma passagem – tendenciosamente alterada por ela – de Desonra, declarando-a inverossímil:

Considero difícil de se acreditar, realmente mais que difícil, tendo vivido aqui toda minha vida e sendo parte de tudo o que aconteceu aqui, que uma família negra protegeria um estuprador por- que ele é um deles. (DONADIO, 2007)

Ainda sete anos após a publicação de Desonra, Gordimer não poupou críticas ao livro, desacreditando o valor e a pertinência do romance, que aborda com muita coragem o labirinto do mútuo desconhecimento que isola africanos e europeus, gerando preconceitos e fantasmas que impedem o entendimento. Com severi- dade um tanto condescendente, Gordimer arrematou:

Se esta tem sido a única verdade que Coetzee pôde encontrar na África do Sul pós-apartheid, eu muito o lamento e tenho pena por ele. (DONADIO, 2007) Quem leu Desonra, certamente se impressionou com o núcleo desse romance: a reflexão ficcional sobre um dos problemas que ocupou as manchetes dos jor- nais – na África do Sul e no mundo –, as reportagens sobre os farm attacks, assaltos e assassinatos, roubos e estupros que grupos de jovens africanos praticavam nas fazendas. Coetzee ousou abordar esse problema em toda sua complexidade, borrando os limites entre fatos e fantasias paranoicas dos brancos, tal como in- vestigamos anteriormente em um estudo sobre a re- cepção de Desonra (PEREIRA, 2015). Nesse sentido, é notável que o menino Polux, personagem de Desonra, que participou supostamente do estupro de Lucy, não seja apresentado categoricamente como ‘o estupra- dor’. Lucy nunca revela o que exatamente ocorreu após o assalto, enquanto seu pai imagina que se tratou de um estupro em grupo. Ela chama Polux de criança ‘per- turbada’ que precisa da proteção da família de Petrus, o coproprietário da chácara de Lucy. Obviamente essa visão nos é transmitida pelos olhos e sentimentos de Lucy – ao passo que Lurie, na intensidade de sua re- volta, é incapaz de sustentar essa visão. A responsabi-

lidade do menino não pode ser estabelecida, e a narra- tiva faz habilmente desaparecer os outros dois rapazes maiores, dificultando a tarefa do leitor na compreensão e atribuição da violência. Até mesmo para Lucy, vítima do estupro, a versão de seu pai parece ser questionável e duvidosa.

A avaliação de Gordimer tem um fio condenatório que equivale a uma forma sutil de censura ex post facto, pois fortalece e legitima aquela, mais ameaçadora, que o Conselho Nacional Africano lançou contra a obra e o autor, taxando a narrativa de perpetuadora do antigo preconceito da “criança primitiva” (AFRICAN NATIO- NAL CONGRESS, 2000), ideia originada dos escritos de James Barry Munnik Hertzog, o general Boer , da União da África do Sul, de 1924 a 1939, que incentivou o desenvolvimento e a mitificação da cultura africâner.

O que teria motivado a reação pouco solidária de Gordimer? Há algumas indicações. Desonra  recorre a uma narração em terceira pessoa, mas esse narrador não tem um ponto de vista fixo. Ele se desloca, ora ade- rindo às opiniões e aos preconceitos, ora às ideias e fantasias dos personagens, deixando cada personagem aparecer sob o olhar crítico dos outros.

Com essa técnica narrativa, Coetzee combina ele- mentos realistas (personagens, etnias, regiões, conste-

lações familiares e sociais) segundo as leis de um outro ‘espaço’ peculiar: o espaço-domínio reservado da escri- tura. O romance, diz Coetzee, é um “lugar em que o es- critor vai, todos os dias, por um certo número de horas” (COETZEE; ATWELL, 1992, p. 205), para encontrar seus personagens, aqueles que estão à sua procura, que vêm até ele...e se dispõem a lhe falar, com gestos, palavras ou pelo silêncio – silêncio esse que é uma maneira par- ticularmente eloquente de (não)comunicação.

Em vez de postular abstratas ideologias, Coetzee capta o que está ao alcance da escritura: jogos de discur- sos que determinam os possíveis modos dos raciocínios, das representações e dos sentimentos se reconfigura- rem, tecendo a trama de relações movediças, lançando os personagens inadvertidamente de um afeto a um de- safeto. No momento de transição difícil do pós-apartheid , simpatias, ressentimentos e culpas mal articulados se conjugam num quebra-cabeça que obriga todos os en- volvidos a debater-se com o outro (des)conhecido, a adi- vinhar qual é o seu novo lugar e como esse redefine os lugares que os demais tiveram e terão. Um território fértil a fantasias, a temores e a pesadelos.

Gostaríamos de finalizar este posfácio com alguns rápidos comentários a respeito de uma questão que surgiu junto ao público que estava presente na palestra

proferida por Coetzee em Porto Alegre. Na ocasião, per- guntaram, inquietos, o que Coetzee quis dizer ao ironi- zar a censura da pedofilia, pois tendemos a considerá-la como inadequada.

Uma primeira resposta, de princípio, seria: no es- paço reservado da arte, o que determina a diferença en- tre pornografia obscena e arte são critérios artísticos: a autenticidade, a qualidade da apresentação, não os conteúdos tirados de contexto. Além desse princípio básico, Coetzee ainda alerta que um certo tipo de aten- ção exagerada, quase obsessiva, que hoje predomina no tratamento de um elenco de assuntos (em particular em questões de gênero e raça, além da pedofilia), ten- de a ser contraproducente; surge uma deformação da percepção devido ao foco reduzido e repetitivo sobre certos temas. Ele lembra que, durante o período em que vigorou a censura na África do Sul - proibindo qualquer tipo de cena com envolvimento sexual ou amoroso en- tre negros e brancos -, muitos escritores escreveram histórias com esse tema. No entanto, quando a censu- ra foi abolida, os mesmos temas foram esquecidos. De modo análogo, Coetzee, longe de inocentar a pedofilia, apenas alerta que a intensidade do foco atual é sinto- mática de um mal-estar que pouco ou nada tem a ver com a pedofilia em si.

O autor comenta sobre as armadilhas imprevisíveis da censura na entrevista Obscenidade e Censura, que con- cedeu a Atwell (COETZEE; ATWELL, 1992). De um lado, a censura produziu em toda uma geração de artistas na África do Sul um alto grau de responsabilidade e serieda- de na atividade de escritura: “Escrever sob a ameaça da censura oficial concentra a mente maravilhosamente” (COETZEE; ATWELL, 1992, p. 299). Ao mesmo tempo, porém, essa concentração gerou o perigo da obsessão. A exasperação compulsiva que procura devassar e ante- cipar a mente do censor e do torturador pode facilmente contaminar o escritor capturado pela lógica da opres- são, abolindo sua liberdade imaginativa e anulando, na verdade, o espaço da escritura – o domínio reservado no qual possibilidades ainda não vistas podem acontecer.

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