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As relações entre Estados, que se queiram soberanos, passa, inevitavelmente, pela capacidade financeira desses atores internacionais. Tal capacidade, além de ser um entre vários fatores, ainda está relacionada a diversos meios de arrecadação; à presente tese interessa destacar a arrecadação de tributos (principal das receitas derivadas dos Estados). A preservação da capacidade de arrecadação tributária é dada, no âmbito internacional, pelo conceito de soberania fiscal, que é assim apresentado nas palavras de Heleno Tôrres:

“A expressão soberania tributária deve ser admitida como a designação da qualidade do poder que coloca o Estado como sujeito da ordem mundial, que lhe proporciona autonomia e independência na determinação dos fatos tributáveis e que só admite autolimitação de fontes originariamente internas e constitucionais.

A contraface da soberania tributária, outrossim, é o seu aspecto negativo, através do qual a exclusividade de autodeterminação refuta qualquer possibilidade de aplicação de atos de autoridade e leis alienígenas” (TÔRRES, 2001a:59).

Tomado esse conceito de soberania fiscal, podemos iluminá-lo com as luzes das duas teorias das relações internacionais aqui destacadas: teoria realista e teoria integracionista.

Relembrando: a teoria realista das relações internacionais considera fundamental a luta pelo poder, pelo território, inclusive, se preciso for, por meio de instrumentos militares e da guerra. Não é difícil, dessa forma, descobrirmos qual a orientação desse pensamento teórico para a capacidade de arrecadação tributária (ou, soberania fiscal): o estado deve usar da sua “autonomia e independência na determinação dos fatos tributáveis” de maneira a impor a sua vontade perante os demais, preservando, ainda que às custas de outras nações, a sua plena capacidade tributária. Assim será com a incidência dos tributos sobre a importação, dos tributos sobre a renda, quando houver relacionamentos comerciais internacionais, dos tributos sobre a distribuição e remessa de valores para o exterior etc.; aqui, ainda que sejam celebrados acordos internacionais que tratem da matéria tributária ou a ela façam referência, prevalecerá sempre a

legislação fiscal interna, caso se verifiquem conflitos entre a norma local e a norma internacional.

A gangorra, a qual fizemos referência no início do capítulo, entre os momentos protecionistas e os momentos liberalizantes do comércio internacional, teve como principal instrumento os denominados tributos aduaneiros (ou direitos alfandegários), que eram mais ou menos rigorosos dependendo da postura dos governantes de plantão. O poder político, que determinava a capacidade de arrecadação tributária, variava a carga fiscal das importações de bens, serviços e direitos e das remessas de recursos financeiros para o exterior de acordo com a postura adotada na comunidade internacional. Seguida a teoria realista, tal postura seria determinada para a conquista e manutenção desse poder, além de territórios.

Por outro lado, a expectativa de outras Nações no campo tributário, quer manifestada por meio de legislação interna (alienígena ao nosso ponto de referência) quer acertada em acordos bi ou multipolares, que dissessem respeito também à matéria tributária, não seriam necessariamente respeitadas pelo outro Estado, salvo se também a ele fosse conveniente e até o momento que assim o fosse. Com fundamento na “exclusividade da autodeterminação”, reafirma-se a prevalência da legislação interna sobre os acordo internacionais. Com isso, o conflito existente no cenário das relações internacionais teria a sua faceta tributária também (daí o desejo de, mais tarde, com o integracionismo, buscar-se também a paz tributária).

Essa visão de soberania e, por decorrência, de soberania fiscal, está em franca decadência, como vimos anteriormente, quando analisado o atual estágio de desenvolvimento das teorias das relações internacionais. Quem aponta com clareza essa situação, inclusive com enfoque jurídico, é André-Jean Arnaud:

“(...) a autonomia dos Estados-nações viu-se bastante com prometida pela interdependência que se desenvolve no seio de uma economia globalizada. E bem verdade que a dependência recíproca entre os países criou uma submissão inconcebível no passado pelos Estados soberanos. Oficial mente, a soberania dos Estados não é recolocada em questão; mas, de fato, os governos recentemente sofreram, e sofrem cada vez mais, uma erosão de sua autoridade devido, entre outras, à porosidade das fronteiras à dificuldade de controlar os fluxos transfronteiriços monetários, de mercadorias e de informação, aos avanços tecnológicos. As pressões sofridas pelos governos nacionais provêm ao mesmo tempo do ponto mais alto e do mais baixo: da globalização, por um lado, e dos movimentos localmente enraizados, por outro.

A questão da soberania estatal encontra-se, pois, no ponto central de toda a problemática da regulação pelo direito. Que essa soberania seja recolocada em questão, fragmentada, dividida – nem que fosse apenas – e é toda a autoridade da regulação jurídica que se torna problemática. Além mesmo da dúvida sobre a autoridade da regulação pelo direito, é sobre a sua própria oportunidade, sobre a sua efetividade e sobre a sua eficácia que recaem as suspeitas. O desafio é imenso.

Podemos até entrever um movimento de desequilíbrio da soberania em direção a uma outra forma de organização política global, com uma tendência à “perda da autoridade exclusiva dos Estados em reconhecer a soberania; (à) transferência de autoridade metapolítica para agentes ou instituições não-estatais; (ao) fim do monopólio do Estado sobre a coerção legítima; e à desterritorialização das reivindicações de autoridade por parte dos Estados.

Ora, sob esse ponto de vista, nos encontramos, por assim dizer, esquematicamente, diante de vários graus de intervenções cujo efeito está em reduzir o poder total do Estado no seu papel de produtor de direito: falaremos

respectivamente de direito estatal substituído, de direito estatal suprido, e de direito estatal suplantado. Essa abordagem tem seus riscos. Ela pode transmitir uma impressão de soluções fixas, ao passo que tudo é, na matéria, essencialmente movente, flexível. O argumento que permite falarmos hoje de “substituição” será amanhã motivo para falarmos, quem sabe, de suprir, talvez até de excluir, ou do inverso. Nós optamos pelos três momentos indicados acima, sem intenção de dar uma imagem definitiva. Ainda mais porque vemos, aqui, uma dialética permanente entre o movimento histórico de tendência à globalização e as resistências baseadas em uma tradição que já provou seu acerto” (ARNAUD, 1999:154-155).

Visão completamente diferente têm as teorias integracionistas acerca da soberania fiscal (capacidade de arrecadação tributária), como ocorre em outros campos de análise. A visão integracionista da capacidade financeira do Estado não ignora ou desconsidera a soberania fiscal; mas a relativiza, no mais, como faz com a própria noção de soberania política (poder político). No âmbito da integração econômica, o tributo deve ser analisado na sua função extrafiscal, isto é, sua principal atribuição não é, única e exclusivamente, garantir arrecadação aos Estados, mas servir como um instrumento para a consolidação do bloco econômico10

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Além disso, os acordos internacionais (bilaterais, regionais ou multipolares), escritos e firmados dentro da concepção anteriormente comentada, isto é, tratando o tributo como um instrumento para a consolidação da relação internacional – com vistas, inclusive, a manutenção da paz –, devem ser entendidos como hierarquicamente superiores às leis tributárias internas. Da mesma forma que se questiona a soberania plena dos Estados no século XXI,

também se questiona o viés fiscal dessa mesma soberania. A presente tese pretende, exatamente, analisar, de maneira teórica, a sucessiva e gradual transformação da soberania fiscal no processo de formação dos blocos econômicos, à luz da função extrafiscal do tributo e dos entraves tributários que se verificam a cada etapa desse processo.