• Nenhum resultado encontrado

Jornais e revistas constituem uma fonte documental afetada pelo ponto de vista dos contemporâneos da época, construída sem as intervenções (ou reflexões) dos acontecimentos subsequentes. Ou seja, diferentes dos livros de história ou dos relatos de sujeitos que viveram a época, os dizeres dos periódicos conservam as condições de produção do momento em que foi escrito, sem a influência dos acontecimentos posteriores e das reflexões oriundas deles. Reunidos em uma hemeroteca, os periódicos recebem um tratamento visando a um determinado objetivo, silenciando dizeres em favor de outros, “(...) de acordo com as prioridades e os critérios definidos por quem utilizará o acervo em empresas, departamentos, órgão públicos, etc.” (PAVANI, JUNQUER, CORTEZ, 2007, p. 75). Sendo assim, a “seleção do material deve ser criteriosa para evitar a poluição do acervo com textos superficiais ou pouco informativos”(Ibid., p.75). Com isso, podemos observar que os processos de seleção bem como os de catalogação e indexação do material implicam silenciamento de certas regiões de dizeres em detrimento de outros, conforme o objetivo a ser alcançado pela unidade de informação. Em vista disso, notamos a necessidade de expor aos leitores e pesquisadores os objetivos, o critério de seleção de material e o posicionamento da unidade para romper com o efeito ideológico de que a hemeroteca reúne toda a história, e não apenas uma parte dela. Caso contrário, a tentativa de eliminar as ambiguidades do discurso e a própria seleção de material implicam o risco de um “policiamento dos enunciados, de uma normalização asséptica da leitura e do pensamento, e de um apagamento seletivo da memória histórica: “quando se quer liquidar os povos” escreve Milan Kundera, “se começa a lhes roubar a memória” (PÊCHEUX, 1994, p. 60).

A hemeroteca permite a socialização dos dizeres do passado, instigando aos sujeitos repensar a história, buscar o contexto em que os escritos foram produzidos,

127 comparar o passado com o presente e observar o que mudou e o que continua nos discursos da/sobre a história. Com isso, a hemeroteca pode ser considerada como um lugar de poder, pois jornais e revistas não disponibilizados constituem furos que podem silenciar dizeres importantes sobre determinados acontecimentos, havendo possibilidade, então, de se alterar o curso das reflexões sobre a história. Nos acervos do Jornal do Brasil (Google) e do jornal Última Hora (APESP), por exemplo, é possível perceber a ausência de algumas edições, instigando o leitor a questionar se essas lacunas são resultados de problemas físicos (como a má qualidade da impressão do jornal, perda ou dano do material ou mesmo a não existência do mesmo) ou de ordem ideológica (como a censura efetivada por fins políticos na época da produção ou mesmo na digitalização do periódico). Isso porque “o silêncio não fala, ele significa”(ORLANDI, 2007, p.42), marcando que os sentidos não são produzidos apenas nas/pelas palavras, mas também na ausência das mesmas, o que marca que o dizer não é condição necessária para significar. Dessa forma, além do silenciamento promovido no momento da seleção do material visando a um dado objetivo, os recortes que embora selecionados não entram no acervo por algum motivo qualquer (seja por motivos físicos ou ideológicos) são também silenciados. Esse duplo silenciamento influencia o discurso construído pela hemeroteca, já que omite outros posicionamentos e divulga um olhar parcial sobre a história.

Esse relato do acontecimento sob determinado ponto de vista, promovido a partir da orientação tomada pela hemeroteca, influi não só na pesquisa de profissionais, estudantes universitários ou cidadãos adultos interessados em história, mas também contribui para a formação de jovens e crianças, já que a hemeroteca constitui numa fonte em que professores de Ensino Fundamental e Médio buscam material para compor suas aulas20. Com isso, o posicionamento de uma hemeroteca, através da seleção de suas fontes e do periódico que ela acolhe, é capaz de influenciar ideologicamente o ponto de vista desde o professor que prepara sua aula até a criança que inicia ali seu aprendizado. Ao tomar como fonte de pesquisa uma hemeroteca que reúna apenas periódicos que tenham se posicionado favoravelmente ao regime militar, por exemplo, o pesquisador terá acesso a um relato parcial dos fatos, já que os aspectos negativos do governo

20Sobre a utilização da hemeroteca como fonte para composição de aulas ver TREVISANI, M.L.L. et. al.

Jornal na escola: da informação à opinião esclarecida. Comunicação e educação, São Paulo, n. 12, mai./ago. 1998, pp. 17-23. Disponível em: www.dtp.uem.br/lap/public/01.pdf. Acesso em: 04 dez. 2011

e também BODOLAY, A. N. Hemeroteca como estratégia de leitura e escrita. Signum: Est. Ling., Londrina, n. 13/2, pp. 173-192, de. 2010. Disponível em:

128 estariam possivelmente silenciados nas notícias publicadas. O sujeito-leitor, entretanto, muitas vezes não percebe a parcialidade com que jornais e hemeroteca são construídos, tendo assim a ilusão de que os dizeres que ali constam retratam o acontecimento tal qual ela ocorreu. Tal ilusão é ratificada pela própria divulgação sobre a hemeroteca, na manchete “Folha põe na internet 90 anos de história em 1,8 milhão de páginas”21, publicada no site Folha.com, em que remete ao sentido de que o jornal é a história (tal é a suposta identidade do periódico com a realidade), e não um relato parcial sobre ela.

Outro aspecto da importância da hemeroteca, em especial a digital, pode ser observado também no interesse de empresas privadas em financiar a digitalização de jornais e revistas, hospedando-os em sites específicos, como é o caso do Jornal do Brasil, disponibilizado na rede pelo Google. Outros jornais observam a possibilidade lucrativa da pesquisa, viabilizando o acesso ao acervo digitalizado apenas aos assinantes do periódico, como no caso do jornal Folha de S. Paulo em que "Após um período de degustação aberto a todos, o acesso gratuito será mantido só para assinantes do jornal. É uma ferramenta poderosa para pesquisas e uma vantagem a mais para o leitor fiel da Folha", afirma Antonio Manuel Teixeira Mendes, superintendente do jornal” (RODRIGUES, 2011, p. 1). Dos jornais pesquisados neste trabalho, apenas o Última Hora encontra-se em site de âmbito público, ou seja, subsidiado pelo governo do estado com recursos públicos. A pesquisa, bem como a forma e direcionamento com que ela é construída e disponibilizada, mostra-se, então, como uma área promissora e lucrativa para o setor privado e como uma possibilidade para o setor público de fazer emergir outras vozes que dialoguem, de forma concordante ou discordante, com o(s) posicionamento(s) das hemerotecas de capital privado.