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Foto 10 Festa de São João no CREAS – Dança, comidas e interação com os

6 CONSTRUÇÃO DAS UNIDADES DE SIGNIFICAÇÃO E NOÇÕES

6.1 A IMPORTÂNCIA HEURÍSTICA DO CONCEITO DE

OUTSIDERS”

Partindo-se da lógica da não universalidade, é possível afirmar que a cultura se particulariza em cada grupo de sujeitos e em cada sujeito em particular. (VALSINER, 2012) Portanto, a experiência cultural e a diversidade de possibilidades aprendentes que esta engendra é pressuposto fulcral da multiplicidade de formas de conviver, interagir e aprender em um contexto cultural humano.

Seguindo-se este pensamento, o processo de construção de conhecimentos e aprendizagens entre o sujeito e seu grupo cumpre um papel fundamental na estruturação da história de vida das pessoas. O conceito de etnoaprendizagens tem sido desenvolvido por Sá (2013) e diz respeito aos saberes formativos e implicados do cotidiano, que são essenciais para a sobrevivência física e simbólica do indivíduo em determinado contexto. Abrangem todos aqueles conhecimentos informais que são essenciais tanto para a convivência em um determinado contexto, quanto para a sobrevivência social dos atores envolvidos em um determinado aspecto das inúmeras possibilidades de interação humana. O conceito de etnoaprendizagens situa a experiência e as possibilidades de aprendizado dos atores sociais em um âmbito eminentemente cultural e inaugura, com intensidade, novas reflexões no âmbito das pesquisas “antropoeducacionais”. A autora trabalha densamente com teóricos de inspiração antropológica interpretativa e da psicologia sociocultural, a exemplo de Clifford Geertz e Jerome Bruner e engendra este conceito através de detalhada pesquisa etnográfica.

Sá (2013) capta o cerne do pensamento de Geertz (2008), de que a cultura é um processo fluido que ganha existência nas interações humanas implicadas e que são fontes de criação e recriação de significados. Portanto, cultura é recriação contínua e função da ação sociocultural humana e de suas potencialidades filogenéticas. Segundo Geertz (2001), cérebro e cultura evoluíram juntos numa dependência mútua e intrincada, portanto, o autor discorda da ideia da “mente” enquanto um processo circunscrito ao cérebro:

Nosso cérebro não se encontra num tonel, mas em nosso corpo. Nossa mente não se encontra em nosso corpo, mas no mundo. E, quanto ao mundo, ele não está em nosso cérebro, nosso corpo ou nossa mente: estes é que, junto com os deuses, os verbos, as pedras e a política, estão nele. (GEERTZ, 2001, p. 181)

Geertz busca em Bruner (1997) e em sua psicologia cultural os pressupostos para uma virada no conceito de “mente” situando-a nas interfaces das relações do sujeito com o mundo, interfaces estas que são sempre mediatizadas pela linguagem e precipitadas em narrativas. E como afirmam Macedo e Sá (2015) a propósito da materialidade da linguagem que esculpe e é esculpida pelo social, trabalhada por Wittgenstein:

[...] a linguagem é o lugar do social e o social do lugar. Assim, pela linguagem nos constituímos interativamente pelas vias das bacias semânticas mediadas por essa própria linguagem. Nesses termos, a vida social se constitui pela linguagem e vice-versa. (MACEDO; SÁ, 2015, p. 29)

Segundo os autores, o conceito de bacias semânticas advém de Gilbert Durand. Este conceito é fulcral para o entendimento dos etnométodos enquanto métodos forjados na interação linguageira e na ação coletiva. Estes se destacam como instituíntes e se atualizam através das etnoaprendizagens. Por serem processos instituíntes se situam em um lugar social vivo de encontros, tensões, consensos e discordâncias e expressam em primeiro lugar o saber e a experiência cultural das pessoas e suas analisibilidades práticas.

Com o desenvolvimento do conceito de etnoaprendizagem, Sá (2013) situa-se numa posição diversa dos olhares etnocêntricos. A autora busca uma perspectiva que faça falar as experiências formativas de aprendizagem em grupos humanos marcados pela alteridade em suas formas de vida e de vivenciar educação como é o caso dos índios Kiriri do sertão Baiano por ela estudados. O interesse da autora em desvelar como a aprendizagem é experienciada por este grupo humano a levou a cunhar o conceito de etnoaprendizagens.

Este conceito inovador e atual traz consequências radicais aos campos antropossociais e educacionais. Não se trata de negar a pedagogia ou a psicologia da aprendizagem, mas de complexificar o fenômeno com a experiência etnográfica que mostra um entendimento outro, radical, produzido pelos próprios atores sociais de experiências de aprendizagens indissociáveis do afeto, de valores, de solidariedades e da interpretação social das peculiaridades de cada aprendente. Neste sentido, a relação cultura e aprendizagem se complexifica na irredutibilidade das experiências e vivências dos sujeitos sociais que impossibilita uma noção generalizante do conceito de aprendizagem.

Ao conceber a aprendizagem como processo eminentemente cultural, Sá (2013) ressalta os acontecimentos do cotidiano em grupo como fundamentais para os processos de aprendizagem do homem enquanto ser social. A autora cita o Toré e outros ritos e práticas de transmissão de cultura oral como os mitos como exemplos. Interessante ressaltar, de acordo com a autora, que os ritos como o Toré não são práticas mecânicas, mas abrangem um leque denso de interações humanas formativas que envolvem o aprendizado antes, durante e após a sua execução. Neste ritual, a autora relata o uso de uma mistura provavelmente psicoativa denominada de “Jurema”. Ressalta também a importância dos processos relativos à identidade nestas interações.

Neste contexto etnográfico, refletido novamente sobre as perspectivas de Geertz e Bruner, sobre o poder da narrativa, observo que na educação escolar diferenciada os processos de aprendizagem, devido ao enfoque que os professores indígenas dessa comunidade dão à tradição, ao seu sistema cosmológico, fazem com que entre os Kiriri, a oralidade seja um potencial cultural e político, também, da práxis pedagógica. (SÁ, 2013, p. 87)

Particularmente das interações que envolvem certo tipo de risco e exposição. Os saberes relacionados com a vida são tão cruciais para a sobrevivência social quanto os itens que satisfazem as necessidades vitais. Pois, estes saberes estruturam as cognições sociais, ou seja, as possibilidades de cognição e ação diante de certas contingências que se apresentam aos sujeitos sociais. Em outras palavras, estes saberes se misturam com as práticas que auxiliam o sujeito em sua jornada cotidiana pela manutenção de seu equilíbrio psíquico e social.

A ideia de que existam controles societais têm sido formulado nas ciências antropossociais, particularmente na temática do uso de drogas. Estes dizem respeito à ação protetiva e vigilante dos grupos primários e secundários, bem como da comunidade da qual o usuário de substância faz parte. (TRAD, 2009) Os controles “societais” ou “informais” formam um complexo que dialetizam o que se oculta e o que se mostra, o sigilo e a confraternização e o grau de interlocução entre usuários e não-usuários. O autor pressupõe uma relação interativa entre o sujeito e os controles societais e inclui nestes últimos o papel regulador do próprio grupo que compartilha uma determinada substância psicoativa. O grupo de usuários é um grupo social sujeito às lideranças, diferenças de status, normas implícitas e explícitas, diferenciando-se, portanto de um bando desordenado. Tal grupo estabelece

parâmetros entre o uso individual e o coletivo permitindo aos seus membros formar sua própria cota de quanto e com que frequência consumir. A alteração de consciência é, portanto, modulada seguindo-se padrões pessoais e grupais. Influem também neste processo de modulação de consciência: as características farmacológicas da substância, o grau de experiência do sujeito no seu uso, as condições gerais de saúde e sociais deste sujeito, bem como a estrutura de ritualização envolvida neste uso. Dito isto, pode-se parafresear e transpor a celebre frase de Garfinkel e afirmar que: os jovens em situações de vulnerabilidades sociais além de não serem “idiotas culturais” também não são “idiotas morais” já que possuem uma intrincada forma de atribuir sentido às suas transgressões e às opressões que lhes são impostas, formando um complexo dialógico interativo entre si e seu contexto.