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É importante ressaltar que a palavra para gênio em alemão é Genius, um substantivo, sempre grafado com a letra maiúscula Por consequência, não devemos confundi-lo com um adjetivo, tal qual falamos de alguém que é genial.

No documento Corpo e genialidade em Schopenhauer (páginas 39-41)

Feita a observação, neste trabalho optamos por não diferenciar a grafia, conforme é realizado no alemão, não obstante, feita a ressalva, o leitor deve sempre ter em mente a especificidade do termo. Devemos esta observação ao professor Eduardo Ribeiro da Fonseca, a partir das notas nos manuscritos de nossa qualificação.

da afetação dos objetos em nós é substituído pela essência mesma do ato de ser afetado, da tomada de consciência quanto aos mecanismos envolvidos neste processo, com isso, compreende-se quem é o verdadeiro artista e sua produção legítima. Em Kant, o gênio é definido como “[…] o talento (dom natural) que dá regra à arte. Já que o próprio talento enquanto faculdade produtiva inata do artista pertence à natureza, também se poderia expressar assim: Gênio é a inata disposição de ânimo (ingenium) pela qual a natureza dá a regra à arte”72. A partir disso, alguns fundamentos são derivados, com conexões diretas com o conceito que Schopenhauer erigirá: o gênio é a base de determinada produção original, que não provêm de aprendizagem, ao contrário, é aquilo que estabelece as regras, o marco zero; sua produção é modelar: consistirá no parâmetro para tudo ao que venha a ser criado, logo, não há espaço para a imitação, porque sua matéria-prima é a Ideia platônica, o modelo, a essência das coisas que existem sob a égide da Representação, também exposto na forma da espécie; o processo de criação não é racionalizável: este modo não pode ser produzido, segundo o método científico, com a finalidade de ser replicado, porque está fora das mãos do próprio sujeito controlá- lo73. Ora, se a linguagem é uma atividade relativa à razão, quando descrevemos o processo – como fazemos agora neste trabalho –, ele não é racionalizado? Reforçamos que o enfoque está na replicabilidade, descrever é uma função da razão, porém, não existe nenhum tipo de método possível que torne um ser humano comum em um gênio74, visto que é uma capacidade, diretamente relacionada, como veremos no segundo capítulo, a dada constituição do corpo. Neste plano, uma vez mais emerge a reconfiguração conceitual realizada sobre a obra de Kant, ela é empreendida para a elaboração do gênio schopenhaueriano:

A genialidade é a capacidade (Fähigkeit) de proceder de maneira puramente intuitiva, de perder-se na intuição e de afastar por inteiro dos olhos o conhecimento que existe originariamente apenas para o serviço da vontade, isto é, deixar de lado o próprio interesse, o próprio querer e os seus fins, com o que a personalidade se ausenta completamente por um tempo, restando apenas o PURO SUJEITO QUE CONHECE, claro olho cósmico: tudo isso não por um instante, mas de modo duradouro e com

72 KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Valério Rodhen (trad.). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, §46, 181, p.163.

73 Id. Ibid. Quanto ao termo alemão Genius, segundo Kant, remontaria a certa origem latina, no qual transparece a influência do culto aos antepassados, na figura de um “gênio” tutelar que inspiraria seus protegidos, em outras palavras, uma fonte segura para delinear os melhores caminhos.

74 Se, por um lado, não existe um método que torne o homem comum um gênio, de outro lado, é importante lembrar que todos possuem, em dado sentido, um pouco da genialidade, é o que torna possível fruir a obra de arte. MVR, §37, p.224.

tanta clarividência quanto for preciso para reproduzir, numa arte planejada, o que foi apreendido.75

O puro sujeito do conhecer, princípio para atingir as Ideias, identifica-se com o gênio, na medida em que a pura contemplação, alicerçada totalmente na intuição, afasta as influências corpóreas, o entrave, e desvela um plano de novas apreensões. A partir disso, a originalidade emerge como consequência da apreensão das Ideias; a produção artística é a comunicação do que foi apreendido, sendo modelar, porque se trata de imprimir nas obras a própria essência das coisas; por fim, o divórcio com os conceitos e a filiação à intuição justificam a impossibilidade de racionalização do processo, logo, barram o domínio técnico e o ensino.

Ainda no âmbito da identidade entre o gênio e o puro sujeito do conhecer, vemos sua significação profunda na relação entre o modelo e os particulares. As Ideias platônicas consistem na coisa em si kantiana, com a única exceção que estão imersas no mundo como Representação, respeitam sua lei geral, sujeito-objeto, no entanto, estão fora dos limites do princípio de razão suficiente. A transição da espécie para os particulares corresponde a atuação do princípio de individuação, segundo as formas do espaço e tempo, no qual aparece a multiplicidade do mundo. Enquanto indivíduos, vemos somente o mundo dos particulares, justamente fixados naquelas formas e na ação do entendimento. O puro sujeito rompe com esse quadro, para abrir caminho às Ideias, em um modo de consideração exclusivamente intuitivo, contemplativo, diverso do procedimento comum de apreensão do mundo.

Não se cria um gênio, se nasce gênio76, nesse sentido, Kant e Schopenhauer parecem não divergir; sobressai tão somente as diferenças da exposição: de um lado, temos a natureza, conceito mais geral, que engloba diversos seres e relações, responsável por conceder a alguns seres certo “dom”, traduzido na faculdade inata de criação; por outro lado, o termo geral, a natureza, é revisto na forma da Vontade, a força primaz do mundo, o infundado, causadora do surgimento de certo corpo mais aprimorado, uma exceção, no qual o intelecto é mais potente. Desse modo, no plano da metafísica do belo, o artista deve ser genial, logo, esse é o parâmetro máximo de determinação da arte verdadeira – ou arte bela, na letra kantiana –, é a condição para que a fonte seja autêntica, pois

75 MVR, §36, p.214.

76 Precisamos ter muito cuidado com essas palavras. Quando falamos de “nascer gênio”, queremos ressaltar que

No documento Corpo e genialidade em Schopenhauer (páginas 39-41)