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2 HISTÓRIAS DE VIDA: O QUE DONA MARIA LUZIA TÊM A

2.8 A imposição religiosa e a religiosidade

A religião católica, durante a escravidão dos negros, é imposta “goela abaixo” por brancos colonizadores, com a justificativa de salvar-lhes a alma. Era importante que o escravo fosse cristão:

Abandonando sua religião de origem, ele perderia um importante referencial de sua vida como homem livre e adotando o catolicismo teria como se conformar com sua condição. Assim, o escravo não apenas podia ser católico: ele tinha que sê-lo (PINSKY, 2010, p.58).

Na verdade, a religião católica, durante a escravidão, serviu para acalmar os revoltados, consolar os desanimados, dar esperança aos desgraçados e alentar os fracos (PINSKY, 2010). O senhor deveria ser entendido como um pai, severo e duro, temido e respeitado, que tudo fazia para o bem de seus filhos. Pela religião, os negros escravos eram induzidos a acreditar que, pelo trabalho duro para o seu sustento, na conformidade em manter- se manso, em submeter-se à ordem vigente, em respeitar o senhor e em arrepender-se das faltas, que eventualmente cometesse, se tornariam virtuosos. A religião católica, então, não ensinava senão a mansidão e o conformismo, desestimulando qualquer revolta.

Mas, nenhuma imposição fez desaparecer a religiosidade trazida junto aos negros africanos.

Antigamente, eles tinha aquela lenda deles, não era lenda, era realidade

também, que eles fazia, não sei como eles fazia, porque, eles não sabia ler, eles não sabia escrever, eles não foi em escola, então eles juntavam.... como é que eles aprendia oração, faz reza... diz que Nossa Senhora materializava pra eles, ensinava para ele que o sofrimento era muito, do escravo... eles sabia orações forte, sabia benzer e qualquer coisa. Se dava dor de dente eles sabia benzer, dor de cabeça, eles sabia benzer, dor de barriga, eles sabia benzer (Maria Luzia)32.

Pelo contrário, não se pode negar que a grande massa de escravos foi se adaptando, tanto à sua condição quanto à religião, como se observa implicitamente na narrativa da senhora Maria Luzia. A religião como consolo acaba sendo aceita pela maior parte dos escravos.

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Nessa narrativa, observa-se também a resistência, no sentido já discutido nas páginas 59 e 60 dessa dissertação.

Mil oitocentos e oitenta e oito entrou a liberdade... tem até uma, música que eles canta, em muitos lugares, chamava... É vila, arraial, os bar, o lugar não tinha nome não... a primeira missa, foi rezada lá na... Santa Rita... lá tinha uma capelinha.... então eles rezava, ela era campal, eles rezava lá... custou muito para os padre ir lá para rezar, porque antigamente não podia ter padre preto, não podia ter freira preta33... não podia misturar nada... (Maria Luzia).

A legitimação social do catolicismo dos senhores continuava sendo uma eficiente forma de controle social, e valores como o conformismo, resignação e trabalho duro, formas de se chegar ao paraíso celeste, marcavam de maneira inesquecível a vida cotidiana dos escravos brasileiros (PINSKY, 2010).

É também interessante lembrar que os escravos negros, no espaço sagrado do terreiro, conforme afirma Barros (2010), rezavam padre-nossos, ave-marias e invocam os orixás e as “entidades” da umbanda. O culto era composto de músicas e danças sagradas, que tinham os ritmos marcados por atabaques. Havia a liderança da mãe ou do pai de santo, que dançavam em roda, e recebiam as suas “entidades” espirituais, funcionando como seus “cavalos” e “aparelhos”. Além de se expressarem dançando a sua energia vital (segundo a concepção destas comunidades religiosas), se apresentam para dar conselhos aos fiéis que deles se aproximam. Orientavam estes e os purificam por meio de “passes”, protegendo-os de possíveis ataques místicos de que são ou poderão se tornar vítimas.

Para muitos, o grande trunfo desta religião umbanda estaria no fato de que, por meio do seu universo mágico/religioso, expressaria uma inversão simbólica no que diz respeito às relações de poder. Tal como exposto por Maggie (2001, p.118):

Esses modelos sociais expressos nos exus, pretos-velhos, pombas-giras e caboclos, figuras desprestigiadas pela sociedade mais ampla transformam-se, no ritual, não só em figuras de prestígio, mas em deuses, e entre eles os que mais atuam. Ou seja, o inverso do que seriam na vida cotidiana, não sagrada.

Para Barros (2010) esse mecanismo de inversão simbólica, em que figuras desprestigiadas pela sociedade mais ampla – ex-escravos, índios, crianças, marginais, prostitutas, estrangeiros – passam à categoria de deuses, poderosos e atuantes, surge como forma de resistência. Desta forma, a umbanda se configurou como alternativa de resistência étnica e cultural, uma vez que o culto conjuga saber popular, práticas de cura de feridas históricas e de mazelas da memória, a uma ética crítica implícita às suas “magias”.

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Faz-se necessário, por isso, pensar e refletir sobre as origens desse pensamento colonizador, escravista, não na tentativa de justificar a escravidão, processo de opressão contra os negros desumanizados, mas para que se possa entender o passado no cuidado de não deixá-lo repetir no presente e no futuro. Enfim, a partir da Educação Popular novas reflexões podem orientar a tarefa do “que-fazer”, para a libertação, construção da autonomia, da ética e, acima, de tudo, da esperança.

CAPÍTULO III

“É por estarmos sendo assim que vimos nos vocacionando para a humanização e que temos na desumanização, fato concreto na história, a distorção da vocação. Jamais, porém, outra vocação humana. Nem uma nem outra (humanização, ou desumanização), são destinos certos, dado dado, sina ou fato”.

3 DA INDIGNAÇÃO AO ENCANTAMENTO: OS PORQUÊS DA ESCRAVIDÃO E A