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Capítulo 3 – Tradução de literatura em O Archivo e na Revista Americana

3.1 Imprensa periódica e tradução no século XIX

Podemos afirmar que os periódicos do século XIX eram um importante suporte para a veiculação de traduções que, por sua vez, favoreciam a produção literária brasileira ao desempenhar um papel importante na disseminação do gosto pela leitura de romances folhetins no público. Um dos fatores apontados por Barbosa (2007, p. 21) para explicar o número de traduções publicadas era justamente esse, o público, que exigia traduções de romance folhetins, gênero que aos poucos foi sendo ensaiado pelos escritores brasileiros.

O número de livros estrangeiros que circulavam no país também era grande. De acordo com um levantamento de Márcia Abreu (2011, p. 122), entre os anos 1808 e 1821, os títulos enviados com mais frequência de Lisboa para o Rio de Janeiro eram compostos por 46% de obras escritas originalmente em francês. No mesmo trabalho, Abreu (2011, p. 118) afirma que o mercado editorial francês exportou para o Brasil ao todo 1.000 toneladas de livros em 1841, tendo duplicado o valor para 2.000 toneladas no ano de 1869, e chegando a 4.7 mil toneladas de livros exportados no ano de 1890. Essa, certamente, era uma das maneiras pela qual os responsáveis por O Archivo e Revista Americana tinham acesso aos escritos para publicação.

Os títulos em circulação no Brasil não se restringiam a obras escritas por autores franceses; havia entre eles inúmeras traduções para o francês, cujas obras na língua de origem, muitas vezes nem chegavam a ser requisitadas para importação. Apresentamos adiante alguns desses casos de traduções de segunda mão, ou até de terceira mão, nas duas revistas alvo desse estudo, que foram traduzidas para o português com base na tradução em francês.

Mesmo com a grande importância da França no nosso país, a veiculação de escritos não acontecia em sentido único, essa relação deve ser pensada mais em termos de conexão que de dependência. Temos como exemplo de obra brasileira publicada na França, Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga, traduzida para o francês em 1825. Mesmo antes da tradução, a obra já havia sido bastante divulgada em português, pois até 1821 esse livro constava como um dos 10 títulos mais exportados por Portugal, apesar de ter sido editado e publicado pela Impressão Régia no Rio de Janeiro (ABREU, 2011, p. 124).

A ampla divulgação da literatura estrangeira no Brasil do século XIX estava diretamente relacionada às práticas de leituras e ao gosto do público que, por sua vez, determinava e orientava o trabalho dos editores e livreiros. De acordo com Wyler (2003, p. 57-59) esses leitores faziam parte da elite brasileira, que lidava com uma dupla exposição cultural, do colonizador português e também da cultura francesa que havia se fortalecido, principalmente, durante o período anterior a 1808, em que era proibida a impressão no Brasil, e a única opção da população era recorrer a impressos importados.

Também era comum que os filhos das elites coloniais, compostas por funcionários públicos, senhores de engenho, criadores de gado e oficiais, fossem encaminhados a universidades na Europa. Tanto que, consta na Universidade de Coimbra que até o ano de 1889, 1.021 brasileiros receberam os graus de bacharel e doutor (WYLER, 2003, p. 55, 59). Eram esses membros da elite que, ao voltarem dos seus estudos na Europa, traziam consigo os hábitos e modos de lá. Tal panorama descrito por Wyler coincide com o perfil dos colaboradores de O

Archivo (APÊNDICE A). Como vimos no capítulo anterior, eles eram estudantes

ou recém formados nos cursos de Direito ou Medicina no Maranhão, em Pernambuco ou na Europa.

Com relação à autoria, a questão da falta de apego à mesma – pelo menos por parte dos autores – era uma forte característica de jornais e periódicos do século XIX. Segundo Barbosa (2007, p. 32), desde os primórdios da imprensa brasileira, observa-se uma tendência forte ao anonimato ou ao uso indiscriminado de pseudônimos, tanto nos jornais da Corte como naqueles existentes nas províncias no século XIX. Outra razão para o anonimato apontada por Barbosa (2007, p. 33) diz respeito à necessidade de proteção, fosse das autoridades, fosse da reputação, ou até mesmo, no caso das mulheres, de algum pai ou

marido. O certo é que havia quase um padrão, em que ora se utilizavam as iniciais do nome, ora os asteriscos. Nas revistas O Archivo e Revista Americana não era diferente, pois na grande maioria dos textos constam apenas as iniciais dos autores, e no caso das traduções, em muitos casos, não há referência ao nome nem do autor, nem do tradutor, e quando há, não é mencionada a publicação de origem.

Tratando especificamente das traduções de literatura publicadas na imprensa periódica, o nosso trabalho monográfico de 2013 com a revista paraibana Alva (1850) mostrou que esses textos passavam por várias modificações e transformações para se integrar à produção nacional. Nas seis edições da Alva foram encontrados textos estrangeiros11, geralmente, servindo de

epígrafe às produções regionais. Essas epígrafes funcionavam como introdução ou estratégia para enfatizar algum aspecto do texto, dando base para a argumentação, mas, acima de tudo, tinham a função de ornamentar o texto, demonstrando o conhecimento do autor. Com relação à estrutura das traduções, podemos citar como característica comum a todas elas a não citação do nome dos autores, a não ser nos casos em que se tratava de uma figura ilustre. No entanto, mesmo nesses casos, não era feita referência à obra de origem. Outra característica da Alva é a forma como os editores se apropriavam dos textos estrangeiros, sempre de maneira muito peculiar, realizando as modificações que consideravam necessárias para que o importado se tornasse parte integrante e indissociável da produção local.

Como veremos no próximo capítulo, as apropriações dos textos estrangeiros empreendidas por meio de modificações diversas não se restringem ao contexto da Alva e abrangem também as duas revistas de que tratamos aqui, provavelmente, por conta do Código Criminal do Império do Brasil de 1831, na seção “Crimes contra a propriedade”, ter criado indiretamente uma lei de direito autoral que proibia a reprodução, em várias modalidades, de escritos ou estampas feitos, compostos ou traduzidos por cidadãos brasileiros (SOUZA,

11 Aqui, falamos de “textos estrangeiros” e não “textos traduzidos” porque, além de traduções,

foram encontradas na Alva (1850) diversas citações em língua estrangeira; No corpus do presente trabalho foram considerados apenas os textos traduzidos.

1858, p. 96; 97)12. A proteção conferida pela lei durava a vida do autor/tradutor, e

um período de dez anos após a morte deste na existência de herdeiros. No entanto, essa lei não garantia aos estrangeiros o direito a sua propriedade e, exatamente por conta da não proteção da propriedade intelectual estrangeira pela lei de direitos autorais nacional, é que os tradutores gozavam de bastante liberdade para se apropriar dos textos estrangeiros, tornando-os parte da produção literária nacional, através de inúmeros cortes e modificações, característica comum a muitas traduções da época, em que os textos eram adaptados livremente para que se ajustassem aos propósitos de determinado editorial.

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