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A imprescindibilidade do mundo da arte

No documento Investigações acerca do conceito de arte (páginas 64-70)

CAPÍTULO I – O CONCEITO RESTRITO DE ARTE: ARTHUR DANTO

1.2. A imprescindibilidade do mundo da arte

Há um tom no discurso de Danto que o torna mais próximo de reflexões a respeito da arte não apenas por parte de filósofos, mas de artistas e de qualquer pessoa que se interesse teoricamente pelo assunto. Esse tom emerge porque sua investigação é despertada pelos problemas filosóficos colocados pela arte de sua época. Especialmente pela pop art, que surge desde o princípio em contraposição à teoria formalista do expressionismo abstrato. A pop art, o minimalismo e a arte conceitual, aflorados no final da década de cinquenta e difundidos na década de sessenta, concretizam o processo de descaracterização sensorial da arte. Seu público, nessa época, não podia mais ser o indivíduo passivo a contemplar belos objetos. A arte contemporânea começa demandando um espectador ativo, responsável por compreender historicamente e conceitualmente as obras expostas. É esse tipo de arte que acorda em Danto o filósofo da arte. É a experiência, tão marcante para o autor, de encontrar uma pilha de caixas idênticas às caixas de esponja de aço Brillo expostas em uma galeria que o leva a uma teoria fundada na ideia de que qualquer coisa pode, em princípio, ser uma obra de arte. Pois torna-se evidente que a distinção entre coisas reais e obras de arte não está na aparência sensível.

Essa é a intuição fundamental de O Mundo da Arte – texto escrito em 1964 para o encontro da American Philosophical Association, inspirado na experiência filosófica iluminadora com a Brillo Box de Andy Warhol – e é base de toda a teoria da arte desenvolvida por Danto em seus textos posteriores. É uma tese elaborada para e através da arte contemporânea. Notamos que a definição desenvolvida em A Transfiguração do Lugar-

Comum, livro publicado em 1981, não se funda em propriedades “exibidas” ou sensoriais.

Afirmamos que o conceito “mundo da arte” é constantemente pressuposto pelo autor e funciona como pano de fundo para o estabelecimento de todas as propriedades essenciais que

ele sugere para definir a arte. No entanto, a noção de “mundo da arte” é abordada diretamente e centralmente apenas no texto homônimo escrito quase duas décadas antes. Em O Mundo da

Arte, o autor defende que certa coisa pode tornar-se uma obra de arte em virtude de teorias,

que a inscrevem em uma rede de significações históricas, atribuindo-lhe o estatuto de arte:

O que, afinal de contas, faz a diferença entre uma caixa de Brillo e uma obra de arte consistente de uma caixa de Brillo é uma certa teoria da arte. É a teoria que a recebe no mundo da arte e a impede de recair à condição do objeto real que ela é (num sentido de é diferente do da identificação artística). É claro que, sem a teoria, é improvável que alguém veja isso como arte e, a fim de vê-lo como parte do mundo da arte, a pessoa deve dominar uma boa dose de teoria artística, assim como uma quantia considerável da história da recente pintura nova-iorquina 39.

Ou seja, o que faz qualquer coisa ser uma obra de arte não é algo que pode ser percebido pelos sentidos, como a beleza, a imitação bem executada da realidade, a harmonia entre as partes, a relação entre a linha e as cores, a pureza das formas em relação ao material empregado ou a expressividade das pinceladas. As teorias filosóficas que tentaram definir a arte ao longo da história falharam porque tentaram captar algo no objeto que indicasse sua “artisticidade”. Notando essas falhas sistemáticas, Weitz e outros wittgensteinianos defenderam a impossibilidade de definir a arte, como uma espécie de cura radical à fadiga crônica das estéticas. Danto, por outro lado, conjectura que o problema não estava no ato de definir a arte, mas na tentativa de fazê-lo através de propriedades sensivelmente perceptíveis: “a dificuldade com as grandes figuras do cânone da estética, de Platão a Heidegger, não consiste em que eles tenham sido essencialistas, mas, antes, em que entenderam a essência erradamente” 40. Desse modo, ele constrói uma teoria que não fundamenta a “artisticidade” da

arte em algo que pode ser percebido no objeto, mas na relação do objeto com diversos outros

39DANTO, A. “O mundo da arte”. Tradução de Rodrigo Duarte. Artefilosofia. N. 1. UFOP. 2006. p. 22.

40DANTO, Arthur. Após o fim da arte: a Arte Contemporânea e os Limites da História. São Paulo: Odysseus

fatores. Ou seja, “é arte” não é um predicado qualitativo (one-place predicate, i.e., um predicado elementar ou monádico, na terminologia da lógica), mas um predicado relacional. Isso significa que, para sabermos o que é essencial à arte, não podemos olhar apenas para obras de arte, mas também para o que não é arte, e investigar o que funda essa diferença. Diante da Brillo Box de Warhol e da caixa de Brillo no supermercado, Danto compreende que a diferença não pode ser perceptual, uma vez que as duas são idênticas, mas contextual. Isso significa que “ser arte” é ocupar uma posição específica no mundo em relação a outras coisas que não são arte: é ocupar não o mundo das coisas reais ou banais, mas o “mundo da arte”. Este famoso conceito refere-se ao contexto histórico, social, teórico, cotidiano e institucional no qual certas coisas são tratadas como obras de arte: “ver qualquer coisa como arte requer uma coisa que o olho não pode discernir (descry) – uma atmosfera de teoria artística, um conhecimento da história da arte: um mundo da arte” 41.

Assim, o que choca Danto na Brillo Box é a radicalidade com que ela estabelece que a diferença entre arte e não-arte não pode ser encontrada em qualquer propriedade sensível, e, no entanto, ainda existe uma diferença:

Não importa que a caixa de Brillo possa não ser boa – menos ainda grande – arte. O que chama a atenção é que ela seja arte de algum modo. Mas, se ela é, por que não o são as indiscerníveis caixas de Brillo que estão no depósito? Ou toda a distinção entre arte e realidade caiu por terra? 42

A distinção entre arte e realidade não desapareceu. Prova disso é que as caixas de

Brillo, após o consumo do seu produto, são consideradas, na melhor das hipóteses, material

reciclável. As caixas de Warhol, por sua vez, são objetos extremamente célebres, que podem ser exibidos para milhares de admiradores, podem ser difamados ou ufanados por críticos de arte, podem ser vendidos a preços imódicos e podem, inclusive, inspirar imensos tratados

41DANTO, A. “O mundo da arte”. Tradução de Rodrigo Duarte. Artefilosofia. N. 1. UFOP. 2006. p. 20. 42Ibidem. p. 21.

filosóficos. E isso acontece porque elas foram colocadas na posição de correlatos de uma interpretação que, a partir da teoria e da história da arte, as identifica como arte. Como explica Noéli Ramme, “na verdade, é por ser apresentado dentro de um mundo da arte que um objeto qualquer pode ganhar o estatuto de arte” 43.

O que as caixas de Warhol têm e as do supermercado não têm? Um significado: elas não foram feitas para guardar esponjas de aço com sabão, mas para problematizar uma ideia sobre a arte, para questionar a predominância de uma teoria formalista da arte, ou para surpreender o público oferecendo um objeto popular e comercial como “candidato à apreciação estética”, para usar a expressão de Dickie. Por outro lado, esse significado não poderia ser percebido se as caixas não tivessem sido identificadas como arte dentro de um contexto cultural, social, filosófico e teórico bem determinado. O aspecto distintivo da teoria de Danto é sobretudo a ideia de que o que faz com que um objeto seja arte é a interpretação de que ele o é. Essa interpretação, constitutiva da identidade artística, é historicamente possibilitada pela apresentação do objeto no mundo da arte. Por conseguinte, sua definição de arte é relacional, contextual, histórica – não se funda em algo que é visto no objeto, mas no objeto visto como arte.

Atualmente, entre o público interessado em arte, é quase um senso-comum a ideia de que os artistas contemporâneos não ambicionam mais produzir coisas belas, nem estimular o bom gosto do público, nem inflamá-lo exibindo formidáveis habilidades manuais. Sua ambição concentra-se em proporcionar objetos ou situações capazes de provocar sentimentos e/ou pensamentos. Por mais que se critique Andy Warhol por aproveitar-se de celebridades – da Coca-Cola a Elvis Presley – e da ingênua idolatria americana por grandes ícones, esquivando-se de apresentar qualquer coisa elevada, bela ou formalmente complexa, não podemos negar que ele provocou um imenso volume de pensamentos. Podemos até mesmo

imaginar que suas obras foram responsáveis pela maior quantidade de filosofia da arte materializada em páginas da história do Ocidente. Foi a Brillo Box, afinal, que conduziu Danto ao conceito filosófico de “mundo da arte”. E podemos ver a importância desse conceito, por exemplo, no fato de que a principal vantagem da teoria de Danto em relação à de Thomasson é sua capacidade de distinguir entre arte e não-arte. A análise da arte feita por Thomasson é coerente com seu sistema categorial, todavia, ajuda muito pouco na delimitação e na compreensão da arte. Danto preenche essa lacuna teórica providenciando uma definição contextual e histórica. As propriedades essenciais que ele seleciona são sempre temporalmente e socialmente contextualizadas, além de revelarem-se apenas no decorrer da história da arte.

Por isso estabelecemos a hipótese de que, na ontologia de A Transfiguração do Lugar-

Comum, “pertencer ao mundo da arte” funciona sub-repticiamente como condição suficiente

para que algo seja arte – o que Danto por vezes exclama de passagem, como se fosse um axioma que não precisa ser argumentado: “não há arte sem o mundo da arte” 44ou “um objeto

que contraria essa generalização pode entrar no mundo da arte e por conseguinte ser uma obra de arte” 45. A última citação é especialmente esclarecedora, pois afirma que um objeto pode

contrariar as generalizações que ajudam o público a reconhecer obras de arte ou as que foram usadas pelas estéticas para providenciar definições de arte e, ainda assim, acabar entrando no mundo da arte – e por conseguinte será arte. Essa relação de consequência entre entrar no

mundo da arte e ser arte revela o quanto o essencialismo da teoria dantiana não se sustenta

sem a delimitação contextual e histórica do mundo da arte. Ou seja, o que subjaz à toda arquitetônica de condições essenciais em sua definição é esta circularidade: arte é o que entra

44 DANTO, A. A Transfiguração do lugar comum. Tradução de Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2010. p.

190.

no mundo da arte e, evidentemente, o que se apresenta no mundo da arte não pode ser outra coisa senão arte.

Retomando a análise comparativa com Thomasson, podemos ainda destacar que o autor desenvolve ferramentas conceituais para pensar a arte contemporânea em sua singularidade, o que sequer é cogitado pela filósofa. Por estar mais preocupada com a criação de uma categoria que acomode a arte e que seja coerente com a totalidade de seu esquema analítico, Thomasson aloca todos os períodos da arte na mesma gaveta filosófica, sem importar-se com distinções entre arte clássica, paleolítica e contemporânea. É como se a teoria de Thomasson fosse um esqueleto para analisar o conceito de arte, bem como para analisar diversos outros temas, enquanto a teoria de Danto é um corpo com ossos, carne e pele. E o que preenche o esqueleto e faz com que ele se sustente sozinho é a incorporação do contexto histórico e teórico à essência da arte. Podemos aproveitar a ontologia de Thomasson como uma reflexão preparatória, capaz de esclarecer certo conceito de arte a partir da análise de seu uso na linguagem comum. Danto, por outro lado, mostra que a arte não é simplesmente um conjunto de objetos a serem dissecados analiticamente, mas algo essencialmente conectado a um ambiente, tramado sobre a urdidura da história, que viabiliza a identificação de certas coisas, ações ou eventos como obras de arte.

No documento Investigações acerca do conceito de arte (páginas 64-70)