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2. A “CASA DOS DOIDOS”: O CAMPO DE POSSÍVEIS

4.2 Impressões do campo na “casa dos doidos”

Iniciei meu primeiro campo, efetivamente (considerando o contato com os sujeitos e não apenas com os técnicos do CAPS e os profissionais de saúde envolvidos com as RTs) no dia 22 de janeiro de 2016, quando dois residentes de uma das RTs que eu trabalharia, foram ao CAPS consultar-se com o psiquiatra, e aproveitei para conversar com eles e convidá-los a pintar comigo na mesa do café.

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Foi então que tive meu primeiro “choque”, quando não conseguir fazer um dos residentes nem mesmo sentar-se, e o outro mais solícito, sentou, e escreveu letras seguidamente e repetidamente efetuando movimentos circulares. Saia um “g”, um “o”, um “m” e, às vezes, um “a”, sem escrever nada inteligível, ele apenas trocava as cores do giz de cera, não sendo capaz de desenhar, ou de reconhecer o meu desenho (sentei ao seu lado e desenhei uma casa), já que também “escreveu” em cima do meu desenho quando seu papel acabou.

Como estudante de psicologia já havia tido contato com pacientes com transtorno mental, e também tive experiências próximas a mim, com parentes que já haviam passado por momentos traumáticos em sua vida, tendo desenvolvido surtos psicóticos, mas nunca havia tido contato próximo com pacientes com tantas dificuldades de comunicação.

Fiquei feliz quando o morador da residência, que aceitou desenhar comigo, interrompeu o desenho dizendo: “agora acabou”. Senti aquele “acabou” como uma espécie de empoderamento do sujeito, e sorri, obedecendo prontamente, afinal, era ele que ditava as regras ali!

Meu primeiro contato foi esclarecedor do meu campo: nada seria como planejado e tudo fugiria da estratégia elaborada. Tanto os moradores das RTs apresentavam diferentes estágios de interação e níveis de transtorno mental, como as minhas estratégias para me aproximar e me relacionar com eles deveria ser diferenciada.

Durante o campo, me dediquei à disciplina de Saúde e Psicopatologia, ofertada na graduação de psicologia da UFES, como forma de melhor me preparar, e compreender as psicoses de cada um. Meus doidos queridos, como eu os chamava, mereciam ser tratados como sujeitos únicos e singulares.

Em todas as minhas visitas ao campo estive acompanhada de uma psicóloga e uma terapeuta ocupacional, dessa forma, minha interação se dava também de forma

intermediada com e por elas. As conversas com as cuidadoras eram sempre muito

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empresa, dificuldade com os colegas de trabalho, conflitos com outros cuidadores.

O procedimento de escuta ocorria como uma terapia, na qual eu estava lá apenas para ouvir e provocá-las a falar mais e mais, e, onde as perguntas eram direcionadas pelos próprios desabafos das cuidadoras. Minhas intervenções visavam sempre focar as relações dentro da casa, o uso dos espaços da casa, relacionamento com a vizinhança, as relações entre os residentes, as cuidadoras e os residentes, os residentes e a vizinhança, mas principalmente em compreender a dinâmica que estava estabelecida naquele lugar.

Um dos grandes dificultadores para a realização dessa pesquisa, que deve ser destacado aqui, foram as constantes mudanças de cuidadoras; em meus primeiros três dias de campo, conheci cinco cuidadoras diferentes. Essas ficavam sempre em duplas, e em dois turnos, mas as duplas não eram sempre as mesmas. Com isso, pude ter acesso a diversos olhares sobre a residência e também ouvir sobre a realidade de outras (já que algumas estavam cumprindo atestado e/ou férias e viriam de outras residências), mas não foi possível traçar um padrão de rotina para a casa com base na descrição dos cuidados e do dia a dia, por parte das cuidadoras.

Estressadas entre os cuidados com a casa e com os residentes, elas ainda tinham que se virar sem “estrutura”; limpar a casa, banheiro, fezes e urinas sem equipamento de proteção e se proteger de alguma reação mais violenta de algum residente mais exaltado. Algumas cuidadoras relataram ter passado por momentos de tensão e ter sofrido agressão, mas demostraram entender, ser um fato isolado, e problema específico de “pacientes” mais nervosos ou sem medicação adequada.

A relação afetiva e a forma como conheciam pessoalmente cada um, me fez perceber que apesar das dificuldades, a relação dentro da casa era de cuidado. Aproveitei para perguntar sobre a relação com a vizinhança. E obtive a seguinte

resposta: “É como se não existíssemos, não existe relação, nem bom dia eles nos

dão, é elas lá e nós aqui, acho que eles têm medo, e mesmo com a gente que trabalha,

eles não dão nem bom dia e boa tarde” 61.

61 Esta fala não está identificada, por ter sido uma fala escutada no campo e não durante uma entrevista. Dessa forma, a mesma não está transcrita e sim lembrada, como me veio a memória durante as minhas anotações de

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Os moradores da residência não possuíam qualquer relação com a vizinhança e não tinham o costume de sair. Durante uma conversa, as cuidadoras relataram ter existido um problema antigo com um dos internos que teria a algum tempo atrás,

“mexido”62 com crianças do bairro, mas há muito tempo esse mesmo paciente mudara

os remédios e nunca mais havia ocorrido qualquer fato parecido.

Em uma de minhas visitas, um rapaz mais jovem e de libido mais aflorada, até mesmo havia tentado apalpar as nádegas da terapeuta ocupacional quando chegamos, tendo sido repreendido por ela. Ele era o mais saidinho63, conforme

relatavam e fazia o mesmo com as cuidadoras. O que era perfeitamente compreensivo por se tratar de um rapaz jovem, internado ainda adolescente, e sem muito contato com mulheres para além delas.

Conversei com as cuidadoras, também, sobre passear com eles, e estas afirmaram ser isso, naquela ocasião, impossível, e relataram sentir muito com o isolamento dos residentes: “Pois é, tadinhos, eles ficam trancados aqui, não saem, deve ser muito ruim, muito mesmo. Eles ficam presos, e seria bom se pudéssemos sair com eles, eles passearem interagirem com as pessoas, eu penso que seria bom”.

A sensação de isolamento dos residentes era fato consumado para as cuidadoras, que por serem apenas duas, para tudo: cuidar da casa, cuidar deles, e dar atenção para todos; jamais teriam condições de levar os pacientes para um passeio no bairro ou qualquer outro lugar. As mesmas afirmavam que esse tipo de contato “com outras pessoas” faria muito bem para os pacientes, para interagirem mais, falarem mais, e não se sentirem “presos”.

Em conversa com uma cuidadora que atuava também em outra Residência, pude acessar importantes considerações sobre o meu campo. A conversa com a mesma foi muito interessante, tanto por nos fornecer dados sobre a rotina em outras residências, quanto pelo seu perfil pessoal. Dada sua experiência em residências

campo, já que se tratam de escutas de campo e não entrevistas a mim concedidas.

62 Indaguei sobre o mexido, mas não souberam explicar, existe um tabu sobre este tema, entre as cuidadoras. 63 O termo “saidinho” foi utilizado por uma das técnicas do CAPS.

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onde os sujeitos seriam mais autônomos, ela afirmava que naquela residência existiriam cuidados excessivos que não permitiriam aos moradores serem mais independentes: “Aqui eles ganham tudo nas mãos, são tratados como criança, é tudo nas mãos, eles não participam das tarefas, eu não estou acostumada com isso, e para eles é ruim, ficam o dia todo sem fazer nada, andando na varanda! Eles têm que ter tarefa, mesmo que depois tenhamos que ir atrás e fazer tudo novamente, mas eles têm que começar a apreender, nas outras funciona, aqui também tem que ter”.

A mesma informou que seria uma cultura das cuidadoras infantilizar os moradores e não promover a autonomia na casa, uma forma de manterem maior controle, mas que acabaria por agravar a situação dos moradores, tratados como crianças.

Essa cuidadora teria sérios problemas de relacionamento com as mais antigas, e por esse motivo, não teria a intenção de ficar na residência, o que deixou claro o tamanho do desafio que temos, no que diz respeito a uma mudança de prática das cuidadoras, principalmente em relação ao estabelecimento de uma rotina de tarefas e responsabilidades para os moradores, visando o desenvolvimento de maior autonomia: “Lá em Tabajara [bairro do município de Cariacica] eles sentam na mesa [sic] e se servem, aqui não, cada um recebe o prato na mão... parece que querem que continue assim, não querem agir diferente”.

A cultura naquela residência visava a manutenção da relação hospitalar, e o sentimento era seguramente assimilado pelos residentes que insistiam em chamar as cuidadoras de “enfermeiras”. Outra expressão muito comum por parte das cuidadoras é a “tadinhos” e outros termos diminutivos e desqualificadores dos indivíduos que os encerram numa posição de “coitados”, “vítimas” e os retiram da posição de sujeitos.

Durante minhas conversas, percebi grande resistência por parte da maioria das cuidadores em relação a uma possível mudança de rotina dentro da casa. Elas se sentem confortáveis com a rotina já estabelecida, e por isso, a cuidadora que tinha experiência em outra residência mais “autônoma” se tornava facilmente uma “invasora”, ou seja, o objeto estranho no local; aquela que perturba a ordem estabelecida. O desconforto durante a conversa foi grande, quando ela destacava a

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importância de permitir aos moradores mais autonomia, as outras duas que estavam presentes (devido a troca de turno) ficavam mudas.

Apesar disso, não tive dificuldades em receber delas a informação de que os residentes não sairiam da casa, com a exceção três moradores: um senhor que seria mais autônomo e efetuaria visitas aos seus familiares (morador esse que não tive a oportunidade de conhecer, pois só dormia na casa, não sendo fácil encontrá-lo durante as nossas visitas), no caso de Oriente, e dois em Tabajara, um homem e uma mulher, que frequentava curso de inglês e academia.

Não haviam passeios e outras formas de socialização fora da casa, e era comum encontrarmos os residentes na varanda, enquanto as cuidadoras ficavam na parte de dentro da casa, realizando afazeres domésticos e preparando a comida. Com destaque para Oriente que enquanto era preparada a refeição, o portão de acesso à cozinha ficava fechado sob o pretexto de que mexeriam nas panelas quentes.

Percebi que as cuidadoras se envolveriam quase exclusivamente com os afazeres de casa, limpeza, alimentação, tendo pouca interação com os moradores. E frequentemente reclamavam da quantidade de afazeres domésticos, e o peso de uma rotina de limpeza e preparação a comida, numa casa com oito moradores.

Por isso, a sugestão do estabelecimento de uma rotina de tarefas para os moradores, como forma de reaprenderem a realizar tarefas simples como: arrumar a cama, lavar a sua louça, e outras, deveria surgir de fora, como uma meta estabelecida junto aos técnicos do CAPS, dada a dificuldade de ser assimilada pelas cuidadoras.

Uma das sugestões dadas pela equipe do CAPS foi a tarefa conjunta de lavar o quintal, como forma de terem uma atividade diária onde todos interagissem, além da tarefa de arrumarem suas camas, como forma de ganharem autonomia dentro da casa. Mas ainda não foi possível ver a realização dessas mudanças até a escrita final desta tese.

O desenvolvimento de relações com os espaços da casa, bem como as possibilidades de circulação na vizinhança e na cidade, iria ampliar a esfera das relações sociais do sujeito psicótico, lhe permitindo o acesso ao seu próprio eu. Ao

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estabelecer relações de cuidado com a casa, tarefas cotidianas, responsabilidades diárias, o sujeito amenizaria o sentido de ‘hospital’, e ascenderia o sentido de ‘casa’ e do familiar e a lógica da internação começa a ser interrompida, percebemos o nascer do amor pelo lugar, do qual fala Tuan, quando este lugar passa a constituir enquanto “vínculo de afinidade” com o sujeito (TUAN, 1980,p.106).

Seu conceito de “Topofilia” (TUAN, 1980, p.286) compreende a importância da relação emocional e afetiva, de diversas intensidades, em relação aos lugares, para o desenvolvimento de relações de familiaridade e apego. Trata-se de um sentimento que nasce da apropriação dos espaços e da convivência, e que se contrapõe a um espaço que seria indiferente.

A casa, carregaria uma forte intensidade desse sentimento de pertença, traduzido pelas profundas experiências que seriam partilhadas em teu seio. Nesse sentido, o estímulo à participação dos residentes nos afazeres da casa, bem como de sua circulação na vizinhança, se coloca como fundamental para o resgate desse sentimento de pertença, e de sua própria individualidade.

A casa é o primeiro exemplo de lugar do cotidiano, ela é sempre íntima e relacional, como na “dialética dinâmica” de Bachelard (2008, p.24), “a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo”. Essa é a sensível visão de Bachelard a respeito do lugar-casa e da casa-mundo.

O estar no mundo desses sujeitos, visando o resgate de sua dignidade e cidadania, passa necessariamente por sua reconexão aos espaços, de forma a torna- los lugares de suas experiências no mudo. Mesmo que a condição da psicose lhes permita construir um lugar que é só seu, esta relação com a casa, é fundamental para que se percebem enquanto sujeitos no mundo, capazes de construir laços, e nomear seu mundo.

Aqui a coexistência entre os residentes e também em relação as cuidadoras, os técnicos do CAPS e a vizinhança se tornam fundamentais, para o sentimento de pertencimento e por que não dizer: copertencimento, compreendido aqui, nos moldes

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de Rimbaud, um pertencimento que envolve a relação com os espaços e as pessoas, um pertencimento à um laço social, afetivo e espacial, relacional e mutuamente pensado e partilhado, um co-existir no mundo.