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CAPÍTULO 1 – Stephen Crane e The Red Badge of Courage

3.2 Impressionismo e literatura

De acordo com Schapiro (2002, p.286), “não sabemos ao certo como entender um estilo impressionista na literatura”. Para o autor, seria mais exato falarmos de aspectos impressionistas em obras literárias e admitir que estes podem aparecer em estilos com características muito diferentes. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer tendências independentes para esse tipo de literatura. Formas, temas e qualidades impressionistas aparecem nos escritos de Gustave Flaubert, na década de 1840, e nos de Edmond e Jules de Goncourt, na década de 1850.

Par les champs et par les grèves (Pelos campos e pelas praias, escrito em

1847, mas só publicado em 1886), de Flaubert, não é, segundo Schapiro, um romance, mas sim um registro das sensações, sentimentos e reflexões do autor durante uma viagem de três meses pelo oeste da França. A obra é lida quase como uma série de telas pintadas por um impressionista, tão ricas são as suas percepções

de cor, luz, atmosfera, contrastes sutis e do movimento na paisagem sempre em mutação.

Edmond e Jules de Goncourt foram impressionistas por excelência, no dizer de Schapiro. A aptidão dos irmãos Goncourt para desenhar e pintar com habilidade considerável fundamentou o seu romance sobre um pintor francês, Manette Salomon (1867). “O estilo desse romance é muito bem descrito pelo termo criado por eles mesmos, ‘écriture artiste’ (escrita artística), já que demonstravam uma visão pictórica da paisagem, da cor, tons, luz e atmosfera” (SCHAPIRO, 2002, p.291). Em outro de seus romances, Renée Mauperin (1864), a linguagem descritiva é expressa em toques e pinceladas.

Alguns contos de Henry James possuem vários temas e cenários que manifestam a sensibilidade impressionista que surgiu nas décadas de 1860 e 1870. Seu conto “Daisy Miller” (1879) começa com imagens de uma estância de veraneios em Vevey – a hospedaria, a vista da varanda,o lago e os turistas. Uma criança que fala o que lhe vem à cabeça e sua irmã, cândida, inocente e bela, ingênua e espontaneamente encantada com o lugar e ansiosa para viajar, contrastam com a sua tia velha e rica, que é arrogante, esnobe e tradicional. James faz uma pausa para descrever o ato de acender um cigarro, de beber à mesa, o garçom, o passeio pelo jardim com suas flores e uma sombrinha, todos detalhes que podemos ver nas pinturas de Manet, Renoir e Monet:

There is a flitting hither and thither of ‘stylish’ young girls, a rustling of muslin flounces, a rattle of dance-music in the morning hours, a sound of high-pitched voices at all times. You receive an impression of these things at the excellent inn of the Trois Couronnes. […] A beautiful summer morning. […] He […] was enjoying a small cup of coffee which had been served him on a little table in the garden by one of those waiters who looked like attachés. At last he finished his coffee which had been served to him on a little table in thegarden and lit a cigarette.”

(JAMES, 1937, p.3-5 apud SCHAPIRO, 2002, p.292).

Há, aqui e ali, um movimento rápido de mocinhas “na moda”, um farfalhar de babados de musselina, um estrépito de música para dançar pela manhã, um som de vozes agudas todo o tempo. Recebe-se uma impressão dessas coisas na excelente hospedaria Trois Couronnes. [...] Uma bela manhã de verão [...] Ele [...] estava se deliciando com uma pequena xícara de café que lhe fora servida em uma mesinha no jardim por um daqueles garçons que pareciam diplomatas. Finalmente, terminou o café que lhe fora servido em uma mesinha no jardim e acendeu um cigarro”. (SCHAPIRO, 2002, p.292).

Os diálogos são entremeados com vislumbres da paisagem e efeitos transitórios de cor que evocam uma atmosfera pictórica de sensação, receptividade e informalidade. Em mais de um momento, uma figura aparece inicialmente como desconhecida, não identificada, vaga, indistinta, até emergir no primeiro plano e ser perfeitamente reconhecida.

As pinturas impressionistas são freqüentemente descritas como “poéticas”. Mas, poéticas em que sentido? O poético nesse tipo de pintura “não está,

obviamente, na escolha de um tema retirado de um poema, mas na concepção do tema em um espírito que é também o de um poeta contemporâneo e que se equipara ao estético na experiência” (SCHAPIRO, 2002, p.293). No período impressionista uma certa visão da natureza era considerada essencialmente poética. Envolvia a contemplação de cor, luz, movimento, textura e experiência de suas qualidades como carregadas de sentimentos; esses elementos se fundem para constituir uma disposição, um estado de espírito, um símbolo de uma essência complexa de homem e natureza.

A importância das sensações (de cor, luz, movimento, som) como essências coloridas pelo sentimento é comum à pintura e à poesia nesse momento. As substâncias poéticas da linguagem como uma estrutura paralela de apoio, composta por “palavras-sons” e ritmos com evocação correspondente, são de grande relevância, também, nessa época. Para o autor:

A pintura impressionista é poética, então, em dois aspectos, ambos em harmonia com o conteúdo e o estilo da poesia contemporânea. Ela representa uma aparência momentânea do ambiente como um correlato ou fonte do sentimento do espectador; tece uma substância artística de tons raros, mas observados com exatidão, como a escolha de palavras pelo poeta. As unidades menores das palavras – as vogais e consoantes – e seu agrupamento rítmico são como as pinceladas e as silhuetas decorativas com pulsações e projeções vagas que suavizam o todo e reduzem os contrastes mais fortes. (SCHAPIRO, 2002, p. 294)

Segundo Schapiro, aspectos impressionistas ou “impressionísticos” continuaram a aparecer na literatura do século XIX. Em Os cossacos (1863), de Tolstói, o personagem central, Oliênin, que está viajando pelas montanhas, aparece, na descrição, com uma sensibilidade semelhante a de um artista. Para evocar o seu estado mental, Tolstói construiu uma estrutura de palavras especial, segundo a qual o impacto das impressões foi captado vividamente por meio de toques rápidos, repetitivos, com pausas na forma da frase.

O rápido progresso da carroça puxada por três cavalos ao longo da estrada plana fazia as montanhas parecerem correr acompanhando o horizonte, com as suas cristas rosadas refulgindo à luz do sol nascente. De início, Oliênin ficou aturdido com a vista, em seguida, regozijou-se; porém, mais tarde, olhando cada vez mais atentamente a cordilheira com seus picos nevados que pareciam se erguer não detrás das montanhas escuras, mas diretamente da planície, e perder-se na distância, ele começou lentamente a ser penetrado por sua beleza e, finalmente a sentir as montanhas. A partir desse momento, tudo que viu, tudo que pensou, tudo que sentiu, adquiriu uma nova qualidade, implacavelmente grandiosa como as montanhas! Todas as suas reminiscências de Moscou, a vergonha, e o arrependimento, todos os seus sonhos triviais em relação ao Cáucaso se esvaeceram e não retornaram. “Agora, começou”, uma voz solene parecia lhe dizer. A estrada e o Terek, apena s começando a aparecer ao longe, e as aldeias e o povo cossaco, tudo deixara de ser uma piada. Olhou para si mesmo ou Vaniúcha e, de novo, pensou nas montanhas. (...) Dois cossacos passaram, as armas balançando ritmicamente às costas, as pernas brancas e acastanhadas dos cavalos mesclando-se confusamente...e as montanhas! Além do Terekergue-sea fumaça de uma aldeia tártara...e as montanhas! O sol se levantou e refulge sobre o Terek, agora visível por trás dos juncos...e as montanhas!

Da aldeia vem uma carroça tártara, e mulheres, moças belas, passam...e as montanhas! “Abreks (tchetchenos hostis) a meio galope pela planície, e aqui estou eu passando por eles e sem temê-los! Tenho uma arma, e força, e juventude...e as montanhas!”. (TOLSTÓI, 1930, p.18-19 apud SCHAPIRO, 2002, p.305-306).

A escrita de Tolstói mistura as impressões do personagem com a descrição objetiva do autor. O seu estilo, tão simples, claro e vigoroso, evitando toda e qualquer aparência de artifício e floreio, pôde incorporar a descrição impressionista da visão de Oliênin das montanhas, porque era para ele uma reação humana natural, até mesmo um momento de revelação, no qual o herói se purifica das recordações de sua existência na cidade. Aí, vemos e somos levados a sentir de uma forma mais vívida o sentido moral positivo de novas impressões da natureza. O impacto do primeiro confronto apaga as antigas imagens e dúvidas do personagem, sua vergonha e seu arrependimento. Impregnado pela paisagem vista como um espetáculo puramente estético, Oliênin torna-se um novo homem, demonstrando o poder transformador, estimulador e revigorante das impressões.

Entre as semelhanças pictóricas dessa passagem estão as alusões às aparências, ao movimento e papel da luz e à impressão confusa das pernas dos cavalos. Há, ainda, a mudança de tom, passando das observações da paisagem para uma descrição bem acabada, e do tempo verbal do passado para o presente à medida

que as impressões visuais crescem em intensidade, envolvendo fortemente o personagem.

Uma característica comum ao Impressionismo e à literatura é o interesse no ambiente como um fator que influencia o estado dos personagens. O ambiente não é simplesmente o cenário onde ocorrem as ações. Alguns escritores descrevem uma paisagem com clima em transformação, nuvens em movimento, chuva, vento, umidade, luz do sol, sombra, cores salpicadas, a agitação da natureza em sua totalidade. Todos esses efeitos fornecem um contraponto dinâmico ao fluxo do sentimento, ao desejo, às respostas dos indivíduos aos estímulos mutáveis, aos efeitos difundidos de uma mudança súbita na consciência. A natureza visível, em suas interações instáveis, ilimitadas, aparece como uma metáfora grandiosa daquilo que é instável e ilimitado no sentimento e pensamento do “eu” inconstante. Nada pode igualar-se à paisagem, com o seu impacto multisensorial sobre o observador: seus ruídos, cores, odores, pressões, movimentos e texturas.

Os escritores reconheceram na pintura impressionista a originalidade e o conteúdo humano sutil das imagens e perceberam a nova abordagem artística. Conteúdo e método foram imitados por romancistas, que não somente introduziram extensas descrições ou quadros completos como a fonte dos sentimentos dos personagens, mas também deram à linguagem e ao enredo de sua narrativa novas formas análogas à superfície e forma impressionista, como Zola e os irmãos Goncourt. No romance Une Page d’amour, de Zola (1878), a imitação dos pintores

impressionistas tornou-se um hábito; a literatura absorveu a lição da pintura. Escrito no auge do movimento impressionista, é composto de cinco seções, cada uma encerrando-se com um capítulo que descreve Paris vista de uma janela alta. É uma série de vistas da cidade pintadas em horas diferentes, variando a luz e o clima que representa, como a última série de Monet (a Catedral de Rouen),4 os mesmos objetos em perpétua transformação. Nas descrições de Zola, o céu é um campo vasto de muitas cores que se alteram durante a contemplação; também os edifícios e as ruas aproveitam-se de toda essa paleta. A multidão parece uma massa densa de breves pinceladas, as inúmeras janelas são toques de cor, as chaminés e telhados são linhas denteadas, os objetos são convertidos em traçados de pincéis e as nuvens, em manchas coloridas informes. De acordo com Schapiro:

Zola introduz, como instrumento para solo, a paisagem parisiense poética em diferentes tonalidades – iluminação, estações, horas diversas. Com um critério perspicaz, negando a seu espectador, a heroína da história, qualquer conhecimento da cidade, ele eleva a contemplação da paisagem pela heroína a puro fenômeno ao nível do discernimento do pintor. Ela não consegue identificar os edifícios, os parques e as ruas espalhados sob sua janela. É uma estranha que vive solitariamente reage com emoção à riqueza e mobilidade grandiosa da paisagem misteriosa, uma imensa teia de cores mutáveis. Ela é quase um espectador impressionista ideal, que recebe impressões sem saber o que está vendo. Às perguntas de sua filhinha sobre as manchas distantes e atraentes de cor, só consegue responder: “Não sei, minha filha”. (2002, p.308).

4 Vide pp.145, 146, 147, ANEXO A.

Os românticos, os realistas e os naturalistas, com seus fortes sentimentos pelo visual, foram os que mais escreveram sobre arte. No período naturalista, de acordo com Schapiro, as obras consideradas “impressionistas” preocuparam-se especialmente com percepções individuais, como a personagem vê e sente o ambiente e as outras pessoas, como ela aparece para os outros, que estímulos influenciam suas ações e por quais gestos, movimentos e aparências ela manifesta sentimentos e pensamentos. Os momentos impressionistas são, segundo Schapiro, parte vital da história. Com cada mudança no ambiente, seja de cenário, seja de atmosfera, o indivíduo como sensibilidade receptiva é imediatamente transformado.

A antiga oração fluente, equilibrada e perfeitamente modelada é substituída por orações fragmentadas em uma série de frases, ou por orações curtas, breves, sem conjunções e, muitas vezes, sem verbos. Os adjetivos e verbos são transformados em substantivos, como se os escritores registrassem somente percepções desconexas. Para descrever uma cena ou mesmo uma ação, o escritor justapõe os pensamentos e as sensações e o discurso de um personagem apresenta-se sem verbos de ação. A história é contada por um acúmulo de vários toques, pequenas observações, sensações e sentimentos, que os leitores têm de unir e interpretar durante sua leitura.

Embora a geração seguinte tenha reagido veementemente contra esse movimento artístico, a descoberta impressionista da estética na vida diária tornou-se um ingrediente importante na arte e literatura posteriores. O seu efeito persistente

pode ser traçado na arte daqueles que romperam com o impressionismo: no sentimento intenso de Van Gogh pela paisagem, pelo homem, flores, luz do sol e cores vivas5; nas imagens festivas de Gauguin no Taiti6; na preocupação de

Toulouse-Lautrec com os artistas e espectadores7; nas paisagens construídas de Cézanne; na arte “intimista” de Bonnard e Édouard Vuillard e, especialmente, em Matisse.

Enfim, para Schapiro, o Impressionismo preparou o terreno para o caráter geral da pintura moderna oferecendo, também, indícios de feitos similares na literatura moderna. A independência do impressionismo em relação ao tema ou objeto estabelecido e a sua fé nas operações da arte como processo humano tornaram-se artigos de fé modernista. Esse movimento artístico na pintura iniciou a luta com a técnica e a luta para se estabelecer durante uma época de mudanças na arte e na vida social, definindo as suas grandes incertezas, insatisfações gerais e profundas ansiedades.

Faremos, no próximo item, uma análise mais detalhada de alguns trechos que evidenciam traços impressionistas na obra de Crane, marca inconfundível desse autor americano.

5 Vide p.148, ANEXO A.

6 Vide p.149, ANEXO A. 7 Vide p.150 e 151, ANEXO A.

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