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Improvisos Energéticos – “Não Pensar”

CAPÍTULO 4 – Treinamento corpóreo-improvisacional para o ator: a nossa

4.1 Modulações energéticas de uma consciência tornada corpo – Treinamento

4.1.5 Espreguiçamento: Conduzir e ser conduzido

4.1.5.3 Improvisos Energéticos – “Não Pensar”

Figura 15 – Treinamento. Improviso com a qualidade “ar denso como um bloco de aço”.

Outra esfera de trabalho abordada a partir da incursão nestas diferentes qualidades energéticas foi a improvisação a partir daquilo que em nosso vocabulário denominamos “improvisos energéticos”. Assim como no trabalho vocal, partíamos de um determinado estado, o qual tínhamos explorado primeiramente num âmbito individual, e, como condutor do trabalho, de fora eu propunha alguns jogos no sentido de fazer as atrizes interagirem entre si, sendo que, após este momento, lançava-lhes uma situação ficcional bastante aberta para que elas colocassem em ações físicas o que antes caracterizava-se como “estado puro”. Mesmo sem termos nos aprofundado em discussões conceituais sobre quais processos eram desencadeados nas atrizes durante estas improvisações, é recorrente em seus diários de bordo a percepção de que nestes improvisos elas “não pensavam, simplesmente agiam, eram espontâneas”:

Fazer improvisações a partir de um estímulo físico muscular intenso gera menos psicologismos e muito mais ação. As mãos, as pernas, rosto, tronco, o corpo todo está em prontidão e aberto para entrar em qualquer proposta. A ação pelo corpo é maior do que a pelo pensamento e as composições surgem mais naturalmente. (C, diário de bordo, 05/03/09)

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Improvisações a partir dos elementos. No principio, falta de escuta. Depois, abrem-se espaços a verdadeira espontaneidade. Canibalismo. Noivas desesperadas. Usina de energia. Afogamentos. Noivo fujão. (D, diário de bordo, 05/03/09)

Fazer as improvisações durante o energético é bastante interessante. Realmente nosso corpo já está num outro fluxo de energia, isso faz com a relação entre nós não seja “forçada”. O jogo instaurado entre nós não fica “comandado” pela cabeça. (B, diário de bordo, 05/03/09)

A improvisação do fogo com o tema “O jantar” foi o ponto alto do dia. Toda aquela sensação tomou conta de mim, e de repente não estava mais pensando, simplesmente agia. Era toda impulso. Foi uma das coisas mais libertadoras que já fiz. (F, diário de bordo, 05/03/09)

Neste contexto, com o que este “não pensar” pode se conectar? É possível ficar “sem pensar”? Trata-se aqui de não pensar ou de um pensar de caráter diverso daquilo que costumamos entender como pensamento? Para ajudar a compreender esta relação recorro a tão famosa fábula chinesa da centopéia:

Era uma vez uma centopéia que sabia dançar excepcionalmente bem com suas cem perninhas. Quando ela dançava, os outros animais da floresta reuniam-se para vê-la e ficavam muito impressionados com sua arte. Só um bicho não gostava de assistir à dança da centopéia: uma tartaruga. “Como será que eu posso conseguir fazer a centopéia parar de dançar?”, pensava ela. Ela não podia simplesmente dizer que a dança da centopéia não lhe agradava. E também não podia dizer que sabia dançar melhor que a centopéia, pois ninguém iria acreditar. Então ela começou a bolar um plano diabólico. A tartaruga pôs-se, então, a escrever uma carta endereçada à centopéia: “Oh, incomparável centopéia! Sou uma devota admiradora de sua dança singular e gostaria muito de saber como você faz para dançar. Você levanta primeiro a perna esquerda número 28 e depois a perna direita número 59, ou começa a dançar erguendo a perna direita número 26 e depois a perna esquerda número 49? Espero ansiosa por sua resposta. Cordiais saudações, a tartaruga”. Quando a centopéia recebeu esta carta, refletiu pela primeira vez na sua vida sobre o que fazia de fato quando dançava. Que perna ela movia primeiro? E qual perna vinha depois? E sabe o que aconteceu? A centopéia nunca mais dançou. (Fábula de

domínio público, disponível on line em

http://descubrapnl.com/index.php?option=com_content&view=article&id=116:1 16&catid=1:metaforas&Itemid=19, acesso em 29/07/2010)

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Ao contrário do que se pode supor ao realizarmos uma primeira leitura desta fábula, a centopéia pensa, mas seu pensamento anda e tem cem patas que não de forma intelectiva, mas sabiamente, se articulam a fim de prover seus deslocamentos e sua dança. Seu pensamento é seu próprio corpo, isto é, um corpo de pensamento159. Nesse sentido, no nosso treinamento energético, “não pensar” era chegar a um estado onde a consciência de si, das próprias ações, diluía-se em micropercepções para avizinharmo-nos do que Gil abarca sob a noção de Corpo de Consciência, pois

Se nos tornamos demasiado conscientes de nosso gesto, aumentaremos consideravelmente as probabilidades de o falhar. Como se a consciência sugasse a energia do corpo que deveria, por si própria, levar o gesto ao seu termo. “Por si própria”: devemos pôr aspas na expressão, porque o movimento dançado não é de modo algum inconsciente ou reflexo, cego, totalmente desprovido de consciência. Simplesmente, já não se trata aqui da consciência entrópica que isola e paralisa o seu objeto a fim de (pensa ela) melhor apreender o sentido. (GIL, 2005, p. 127)

Este corpo de consciência é um corpo que age movendo-se num território de micropercepções, onde miríades de ações do outro afetam suas ações. Não poderia afirmar que em nossa prática atingimos um ápice do que isso pode vir a ser. Inicialmente, as improvisações realizadas eram bastante caóticas em termos de estrutura espaço-temporal, e, comumente, as primeiras interações aconteciam com certa “surdez”, onde a dificuldade se dava no sentido de articular estado e escuta, de forma a empreender uma manutenção da qualidade energética e abrir-se para ter suas ações afetadas pelas colegas. Ao longo dos processos improvisatórios, fomos tentando sofisticar esta relação, de modo a “não intensificar os poderes da consciência de si (...) por um lado; e, por outro, não abolir estes poderes ao ponto de deixar o corpo agir às cegas” (GIL, 2005, p. 128).

159 Sobre o corpo de pensamento José Gil esclarece que “a consciência dos movimentos transformou-se por seu turno em movimento da consciência, de tal modo que deixa de haver hiato entre o pensamento e o corpo. O pensamento já não descreve como pensamento do corpo, mas como corpo de pensamento, quer dizer, tendo a mesma plasticidade, fluência e consistência dos movimentos corporais” (GIL, 2005, p. 43).

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Figura 16 – Treinamento. Improviso com a qualidade “incêndio contido”.

Para isso era necessário manter-se num espaço intermediário entre dois pólos, num limiar entre consciência e inconsciente, de forma a não operar um total abandono de si, mas sem também delimitar em demasia a fronteira que separa este “si” do outro. A seguir descrevo o processo instaurado num destes “improvisos energéticos” onde uma qualidade de relação mais sofisticada pôde ser presenciada:

Trabalhando com o fogo como imagem, primeiro exploramos sua intensidade menor (chama da vela) até sua maior (incêndio descontrolado). Elas estavam administrando sua intensidade da forma como preferiam, quando então propus a situação de “navegadores famintos num barco sem comida”. As atrizes então se jogaram na proposta dada de imediato. Primeiro de uma forma mais frenética, explorando um nível de intensidade da imagem bastante grande, o incêndio, através de ações que se direcionavam a matar um dos passageiros para poder comê-lo depois. Então pedi para que, mantendo a energia, elas abrissem a escuta ao grupo, para que fizessem o improviso mais juntas e conectadas, e não sozinhas com sua energia. O trabalho então deu um salto visível. Mesmo aquietando e diminuindo o frenesi anterior, as atrizes mantiveram sua qualidade energética e começaram a responder as ações e palavras umas das outras. Vendo que estavam já jogando com a energia, abertas umas as outras, pedi para que B, mantendo o estado, me apresentasse o cardápio da noite. Ela então foi falando as especiarias: coração acebolado, tripas ensangüentadas etc... E, enquanto isso, as outras atrizes começaram a fazer um coro em comemoração às delícias que B ia apresentando. Pareciam um bando de bufonas ou de zannis famintos e imorais a comemorar o menu antropofágico da noite. Mesmo controlando a energia, as atrizes a mantinham viva, e isso sustentava a continuidade do improviso, não deixando a chama apagar. Elas poderiam seguir improvisando por muito tempo ainda. (Rodrigo, diário de bordo, 05/03/09)

Aqui entrou um elemento muito importante, o jogo, isto é, o uso da energia com inteligência. Não uma inteligência objetivante e cartesiana, mas uma sensibilidade outra que dava conta de agenciar a escuta à qualidade energética aprofundada. Nestes improvisos,

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as atrizes deveriam estar “tomadas pela energia”, mas também sendo capazes de dar um passo adiante no sentido de manterem sua escuta ao grupo aberta para que fosse possível a criação de uma improvisação em conjunto minimamente articulada.

Vejo a energia como um rio no qual o manuseio do ator é sutil. Este rio pode ser aterrado e transformado em uma piscina rasa, onde o ator está imerso sem correr qualquer risco, pois tem decoradas as medidas de largura e profundidade construídas de acordo com seu próprio tamanho, quando o ator põe a energia em função de um controle pessoal/racional excessivo, desabriga-a desafiando-a160. Pode também permanecer sendo rio, onde o ator se joga sem saber nadar, no qual acaba se afogando, no qual o caos energético faz sucumbir qualquer mínimo controle e possibilidade de contato com o outro. E enfim, pode ser um rio no qual o ator mergulha sabendo nadar, está imerso nele, não o controla de todo, mas consegue tomar direções, ir de um ponto ao outro, aproveitar as correntezas para ir onde quer e não para onde sabe-se lá o rio o levaria. No nosso energético tentamos “aprender a nadar”, não desejamos emoldurar o rio, mas também não nos agradava a idéia de nos afogarmos nele.

160 Martin Heidegger, no texto “A questão da técnica”, traça um paralelo entre a tékhne grega e a técnica moderna. Segundo o filósofo, a diferença fundamental reside numa contradição entre o desocultar àquilo que na physis apela por vir à tona, o que caracteriza a tékhne grega, e o desabrigar desafiante, que põe a natureza em função da técnica. Um exemplo de um dispositivo forjado pela técnica moderna é a usina hidrelétrica, que modifica o curso do rio a fim de extrair deste a energia e armazená-la. Um exemplo do desocultar grego pode ser o moinho, que não intervém na lógica da physis, mas revela a partir de si uma energia que apela por seu desocultamento. Nas palavras de Heidegger: “O desabrigar que domina a técnica moderna, no entanto, não se desdobra num levar à frente no sentido da poiesis. O desabrigar imperante na técnica moderna é um desafiar <Herausfordern> que estabelece, para a natureza, a exigência de fornecer energia suscetível de ser extraída e armazenada enquanto tal. Mas o mesmo não vale para os antigos moinhos de vento? Não. Suas hélices giram, na verdade, pelo vento, permanecem imediatamente familiarizadas ao seu soprar. O moinho de vento, entretanto, não retira a energia da corrente de ar para armazená-la”( HEIDEGGER In Scientia Estudia, 2007, p. 385).

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4.2 Elementos do jogo no corpo de consciência – Treinamento