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1.3. Funções dos Direitos Fundamentais

1.3.3 Inalienabilidade/indisponibilidade

Inalienável é um direito ou uma coisa em relação aos quais estão excluídos quaisquer atos de disposição, quer jurídica – renúncia, compra e venda, doação –, quer material – destruição material do bem. Isto significa que um direito inalienável não admite que o seu titular o torne impossível de ser exercitado para si mesmo, física ou juridicamente. 31

Exemplificando, se o direito à integridade física é inalienável, o indivíduo não pode vender uma parte do seu corpo ou uma função vital, nem tampouco se mutilar voluntariamente.32

A inalienabilidade traz uma conseqüência prática importante – a de deixar claro que a preterição de um direito fundamental não estará sempre justificada pelo mero fato de o titular do direito nela consentir.

28 RE 154.134-SP, rel. Min. Sydney Sanches, julgamento em 15.12.98. Informativo STF n. 136. 29 MS 1.119 - RSTJ 28/279.

30 Extr. 598-Itália (RTJ 152/430), Extr. 669-0/EUA (DJ 29/3/96) e Ext 711-Itália, julgamento em 18.2.98 (Informativo STF n. 100).

31PUJALTE, Martínez. Los derechos humanos como derechos inalienables in Ballesteros, Madri: Tecnhos, pág. 87.

Os autores que sustentam a tese da inalienabilidade, afirmam que ela resulta da fundamentação do direito no valor da dignidade humana – dignidade que costumam traduzir como conseqüência da potencialidade do homem de ser auto- consciente e livre.33 Da mesma forma que o homem não pode deixar de ser homem, não pode ser livre para ter ou não dignidade, o que acarreta que o Direito não pode permitir que o homem se prive da sua dignidade.

Martinez Pujalte busca ainda justificar essa assertiva, do ponto de vista prático, salientando que o homem é, por definição, um ser social, em interação com outros homens. Assim, “se uma pessoa atenta contra sua dignidade, isto significa atentar contra deveres que o podem ligar a outras pessoas (um pai pode ter deveres frente a seus filhos, um devedor frente a seus credores, uma pessoa casada frente a seu cônjuge…), deveres cujo cumprimento ver-se-ia dificultado ou impossibilitado se a pessoa perdesse os atributos que configuram a sua dignidade”.34

Uma vez que a indisponibilidade se funda na dignidade humana e esta se vincula à potencialidade do homem de se autodeterminar e de ser livre, nem todos os direitos fundamentais possuiriam tal característica. Apenas os que visam resguardar diretamente a potencialidade do homem de se autodeterminar deveriam ser considerados indisponíveis. Indisponíveis, portanto, seriam os direitos que visam a resguardar a vida biológica – sem a qual não há substrato físico para o conceito de dignidade – ou que intentem preservar as condições normais de saúde física e mental bem como a liberdade de tomar decisões sem coerção externa.

Nessa perspectiva, seria inalienável o direito à vida – característica que tornaria inadmissíveis atos de disponibilidade patrimonial do indivíduo que o reduzissem à miséria absoluta. Também o seriam os direito à saúde, à integridade física e as liberdades pessoais (liberdade ideológica e religiosa, liberdade de expressão, direito de reunião). 35

33 Idem, p. 93. 34 Idem, p. 94. 35 id. ob. cit., p. 95.

Do ponto de vista prático, o caráter inalienável entrevisto em alguns direitos fundamentais conduziria à nulidade absoluta, por ilicitude de objeto, de contratos em que se realize a alienação desses direitos. Seria nulo, por exemplo, o contrato que previsse a esterilização voluntária irreversível.36

Na doutrina nacional, José Afonso da Silva acolhe essa característica.37

É preciso, porém, cautela no trato desse predicado clássico dos direitos fundamentais. Nem sempre o observador consegue apurar com segurança quais os direitos que seriam inalienáveis. As conseqüências práticas advindas da adjetivação de certos direitos fundamentais como inalienáveis podem, de toda sorte, ser obtidas por outra gama de argumentos.

A respeito da indisponibilidade dos direitos fundamentais, ainda, é de se ver que a realidade mostra que são freqüentes – e aceitos – contratos em que alguns direitos fundamentais são deixados à parte, em virtude do exercício da própria liberdade de contratar, que resulta da autonomia que a ordem jurídica reconhece aos indivíduos. A liberdade de expressão, v.g., cede às imposições de não-divulgação de segredos obtidos no exercício de um trabalho ou profissão. A liberdade de professar qualquer fé, por seu turno, pode não encontrar lugar no recinto de uma ordem religiosa específica.

A relativização da característica da indisponibilidade opera, aqui, para tornar aceitável que, em nome da autonomia contratual, se reduza, em certos casos, o alcance de um direito fundamental, desde que respeitados certos limites. Canotilho, a propósito, lembra que, embora se admitam limitações voluntárias quanto ao exercício de direitos específicos em certas condições, não é possível a renúncia a todos os direitos fundamentais. Essa autolimitação voluntária que deve estar sujeita a revogação a todo o

36 id., ob. cit., pág. 98.

tempo, há de guardar relação razoável com a finalidade que se tem em vista com a renúncia.38

1.3.4 Constitucionalização

Uma característica associada aos direitos fundamentais diz com o fato de estarem consagrados em preceitos da ordem jurídica. Esta característica serve de traço divisor entre as expressões direitos fundamentais e direitos humanos.

A expressão direitos humanos, ou direitos do homem, é reservada para aquelas reivindicações de perene respeito a certas posições essenciais ao homem. São direitos postulados em bases jusnaturalistas, contam índole filosófica e não possuem como característica básica a positivação numa ordem jurídica particular.

A expressão direitos humanos, ainda, e até por conta da sua vocação universalista, supranacional, é empregada para designar pretensões de respeito à pessoa humana, inseridas em tratados e em outros documentos de direito internacional.

Já, a locução direitos fundamentais é reservada aos direitos relacionados com posições básicas das pessoas, inscritos em diplomas normativos de cada Estado. São direitos que vigem numa ordem jurídica concreta, sendo, por isso, garantidos e limitados no espaço e no tempo - pois são assegurados na medida em que cada Estado os consagra.39

Essa distinção conceitual não significa que os direitos humanos e os direitos fundamentais estejam em esferas estanques, incomunicáveis entre si. Há uma interação recíproca entre eles. Os direitos humanos internacionais encontram, muitas vezes, matriz nos direitos fundamentais consagrados pelos Estados e estes, de seu turno, não raro acolhem no seu catálogo de direitos fundamentais direitos humanos proclamados em diplomas e em declarações internacionais. É de se ressaltar a

38 CANOTILHO, ob. cit., pág. 422-423. 39 CANOTILHO, ob. cit., pág. 359.

importância da Declaração Universal de 1948 na inspiração de tantas constituições do pós-guerra.

Esses direitos, porém, não são coincidentes no modo de proteção ou no grau de efetividade. As ordens internas possuem mecanismos de implementação desses direitos mais céleres e eficazes do que a ordem internacional.

Sendo verdade que um direito fundamental se peculiariza por estar recepcionado por algum preceito de direito positivo, é também fato que, no direito comparado, essa técnica de recepção pode variar. No direito brasileiro, como nos sistemas que lhe são próximos os direitos fundamentais se definem como direitos constitucionais.

Essa característica da constitucionalização dos direitos fundamentais traz conseqüências de evidente relevo. As normas que os abrigam impõem-se a todos os poderes constituídos, até ao poder de reforma da Constituição.