• Nenhum resultado encontrado

A inatualidade como desterritorialização

A filosofia pode habitar diversos Estados, fre- quentar diversos meios, mas à maneira de um eremita, de uma sombra, viajante, locatário de pensões mobiladas.

Deleuze

A relação da filosofia com a vida tornou-se um dos preceitos não negociáveis do pensamento contemporâneo. A possibilidade de dar um sentido à interrogação crítica sobre o presente – que, segundo Foucault, encontrava a sua formulação fundadora na reflexão kan- tiana sobre a Aufklärung – não perdeu importância nem eficácia nos dois últimos séculos. Essa concentração sobre o presente é o resultado de um verdadeiro deslocamento das preocupações da filosofia da teo- ria à praxis, e constitui, no essencial, uma exigência inerente à ação, da qual parece não poder desligar-se semelhante reflexão. O presente constitui-se no horizonte de toda a intervenção e deve ser contem- plado necessariamente na autoposição do pensamento.

Agora, as exigências da época são muitas e multiplicam- -se sem cessar; de todos os lados (a história, a opinião, a ciência, a arte, a religião) põem-nos problemas como sendo nossos. Mas, como assinala Philippe Mengue, Deleuze procura abrir no campo de todas estas interrogações contemporâneas um espaço próprio e original (MENGUE, 1994, p. 9). Mesmo quando o dispositivo universitário tende a reduzir a filosofia, ora a uma meditação sobre a sua própria

história, ora a uma reflexão sobre as práticas e os saberes que lhe são contemporâneos, a filosofia não deixa de debater-se para posicionar- -se para além da história da filosofia, da epistemologia das ciências e da ética das suas instituições. Por outras palavras, para além dos pro- blemas herdados por uma hipotética destinação histórica, para além dos dilemas que rodeiam continuamente a atualidade dos meios de comunicação e dos debates acadêmicos, a filosofia continua pro- curando, na fronteira desses discursos, colocar os seus problemas específicos e levantar as suas próprias questões, isto é, procura auto- posicionar-se, encontrar um lugar próprio no seio da sua época.

Isso significa que existiria uma especificidade propriamente filosófica, uma posição do filósofo entre as demais personagens do saber e do poder. Significa, também, que os problemas que a filoso- fia coloca ou se coloca como sendo os nossos, não vêm totalmente determinados pela sua história passada, nem se encontram inscritos num horizonte ideal, nem muito menos esboçados pelas opiniões da atualidade que lhe é contemporânea, mas devem ser colocados – numa tensão constante com essas forças em concorrência – conjun- tamente com a produção efetiva dos seus próprios conceitos. Porque, como afirmava Deleuze (1977, p. 7), “as questões fabricam-se como qualquer outra coisa. Se não nos deixam fabricar as nossas questões [...] se nos são “colocadas”, não temos grande coisa a dizer. A arte de construir um problema é muito importante: inventa-se um pro- blema, uma posição de problema, antes de encontrar uma solução”. Contra a história, mas também contra a eternidade de determinados ideais, sobre o presente, mas também contra o que há de opressivo ou redutor nele, o filósofo trabalha pelo porvir a trama do passado e das relações de força do presente, num esforço por propiciar, através do seu próprio movimento, a mudança política da realidade na qual se encontra inscrito. Essa procura, no registo nietzschiano, coincide com aquilo que temos vindo a caracterizar como inatualidade. E não é surpreendente que o problema se apre- sente nesses termos. De fato, procurando levar o problema da rela- ção do pensamento com o presente para além destas alternativas das

filosofias da história e das reflexões positivistas e fenomenológicas, tornou-se frequente (na realidade, converteu-se num verdadeiro lugar comum, muitas vezes simples figura retórica, no melhor dos casos cifra de uma esperança de mudança) a referência à inatualidade (ou intempestividade, ou extemporaneidade) nietzschiana. Deleuze afir- mava que a razão do “retorno a Nietzsche” à qual assistimos na atu- alidade se deve, provavelmente, à redescoberta dessa dimensão que se distingue, ao mesmo tempo, da filosofia clássica na sua empresa “eternitária”, e da filosofia dialética na sua compreensão da história, e que propõe fins “um pouco mais altos” que os do Estado, das insti- tuições e da sociedade em geral (DELEUZE, 2002, p. 180).

Mas o que significa, nesse sentido, a inatualidade? De que modo, em todo o caso, a inatualidade pode ser o modelo de uma relação produtiva do pensamento com a atualidade? Que tipo de relação nos propõe entre o nosso pensamento e a nossa época? A leitura de Nietzsche (pelo menos a leitura da Segunda Consideração Inatual) não nos oferece senão uma caracterização muito sumária desse pathos filosófico, mas encontramos, nas suas declarações pro- gramáticas, elementos fundamentais para qualquer elaboração da inatualidade contemporânea que pretenda apresentar esse conceito de um modo mais detalhado. Como escreve Peter Pal Pelbart (1999, p. 70): “Com o intempestivo, Nietzsche teria dado à filosofia esse tempo próprio a partir do qual pode contrapor-se ao presente da cidade sem invocar o eterno: o instante que, enlaçado ao futuro, se volta contra o presente”. E, efetivamente, as fórmulas nietzschianas apontam em direção às duas dimensões problemáticas que assinalá- vamos na relação da filosofia com o presente:

1º) Nietzsche diz que o inatual não é da ordem do histórico (opõe-se à ordem histórica do antes e do depois), mas também não pertence a uma hipotética eternidade. Qualquer eventual tematiza- ção da inatualidade deverá procurar a liberação do presente (aqui e agora) do duplo jugo da história e da intemporalidade. Deverá responder à pergunta: como estabelecer uma relação entre o pen- samento e o presente que não se reduza nem à história nem à sua

suspensão? Como pensar sobre o tempo, mas ao mesmo tempo con- tra o tempo, e isto sempre sem sair do tempo, porque do que se trata é de atuar em favor de um tempo por vir?

2º) Nietzsche propõe a inatualidade como um modo de autoposição da filosofia com respeito às demais forças discursivas e institucionais em jogo. Posição diferencial, que não adota nem os problemas nem as perspectivas da sua história passada, nem os encontra inscritos num hipotético horizonte ideal, mas também não se debruça sobre as questões postas à atualidade pela ciência, a arte e a opinião. Nesse sentido, a inatualidade caracteriza-se por um movi- mento de resistência e subversão, arte de inverter as perspectivas e transvalorar as questões, que começa por compreender como um mal, uma doença, uma carência, algo do qual a época se glorifica.

Para além de todas as subtilezas que possa implicar o seu pensamento, temos que dizer que Deleuze soube fazer sua essa pre- ocupação, assim como formou (e forma) parte da polêmica à qual o próprio conceito de inatualidade dera lugar, de um modo recorrente e ativo. Assim como não falta na sua obra a revalorização da posi- ção nietzschiana, também não está ausente – em nenhuma das suas obras – a necessidade de estabelecer uma relação produtiva entre pensamento e ação. Arrancar a teoria da sua torre de marfim (“a teoria é exatamente como uma caixa de ferramentas. Deve ser útil. Deve funcionar. E não para si própria” (DELEUZE, 2002, p. 290)), sair do texto (“Eu nunca me apresentei como um comentador de textos. Um texto, para mim, é só uma pequena roda numa prática extratextual. Não é questão de comentar o texto por um método de desconstrução, ou por um método de prática textual, ou por qualquer outro método; é uma questão de ver o uso que um texto tem na prática extratextual que prolonga o texto”) (DELEUZE, 2002, p. 363)), pôr a filosofia em conexão com o seu exterior (“Um livro não existe senão pelo [que está] fora e no fora” (DELEUZE; GUATTARI, 1985, p. 10)), foram sempre palavras de ordem recor- rentes na exposição do seu pensamento. Os textos citados são de 1972, de 1973 e de 1984, respectivamente. Em todos, como uma

constante, pode apreciar-se uma concepção do pensamento como ato político, a intuição marxista de origem feuerbachiana segundo a qual não se trata de interpretar o mundo, mas de mudá-lo29. Ou,

melhor, a ideia de que pensar o mundo é transformá-lo. Ou, melhor ainda, que o pensamento só tem lugar na medida em que transforma o mundo, e que um pensamento que não produz nenhum tipo de transformação não é pensamento de jeito nenhum.

Nesse sentido, Deleuze passa a medir o pensamento, e mais especificamente a filosofia, pelas redistribuições que é capaz de ope- rar, pelas ordens que desbarata ou estabelece: “O que é interessante na filosofia é que propõe um recorte das coisas, um novo recorte: agrupa num mesmo conceito coisas que se acreditara serem muito diferentes e separa outras que se acreditara serem muito próximas” (DELEUZE, 2003, p. 198).

É da ordem do singular e, como o singular, opera sobre o sin- gular, isto é, força entre forças, ou fluxo entre fluxos, corta ou prolonga as forças e os fluxos que constituem o real: “pensar é poder, ou seja, estabelecer relações de forças, com a condição de compreender que as relações de forças não se reduzem à vio- lência, mas constituem ações sobre as ações, ou seja, atos tais como: incitar, induzir, desviar, facilitar ou dificultar, ampliar ou limitar, tornar mais ou menos provável...”. É o pensamento como estratégia (DELEUZE, 1990, p. 131).

Os conceitos são inseparáveis dos efeitos que têm sobre a nossa vida, das novas maneiras de ver ou de perceber que nos inspi- ram, e, sobretudo, das redistribuições que produzem na realidade. Deleuze diz:

Todos sabem que a filosofia se ocupa de conceitos [...] os con- ceitos não são generalidades no ar do tempo. Pelo contrário, são singularidades que reagem sobre os fluxos de pensamento ordinário: pode-se muito bem pensar sem conceitos, mas desde

29 “Trata-se de fabricar o real, não de responder-lhe” (DELEUZE, 1993, p. 149).

que há conceito há verdadeiramente filosofia. Nada a ver com uma ideologia. Um conceito está cheio de força crítica, política e de liberdade (DELEUZE, 1990, p. 48-49).

Tudo é política, mesmo o pensamento, mesmo a arte, mesmo a filosofia. É algo que Deleuze repete como um refrão ao longo da sua obra (“Temos a impressão de fazer política mesmo quando falamos de música, de árvores ou de rostos” (DELEUZE, 2003, p. 166)), e que aparecerá, da maneira mais explícita, num pequeno artigo de 84 em homenagem a François Châtelet: “Compreendemos que a razão não é uma faculdade, mas um processo, e consiste preci- samente em atualizar uma potência ou formar uma matéria. Há um pluralismo da razão, porque não temos nenhum motivo para pensar nem a matéria nem o ato como únicos. Define-se, inventa-se um processo de racionalização cada vez que se instauram relações huma- nas numa matéria qualquer, num conjunto qualquer, numa multipli- cidade qualquer. O próprio ato, sendo relação, é sempre político. A razão como processo é político. Isto pode ser na cidade, mas também em outros grupos, em pequenos grupos, ou em mim, nada mais que em mim. A psicologia, ou antes a única psicologia suportável, é uma política, porque eu tenho que criar sempre relações humanas comigo mesmo. Não há psicologia, mas uma política do eu. Não há metafí- sica, mas uma política do ser” (DELEUZE, 1988, p. 9-10). E porque mesmo o próprio ser é político, o pensamento tem que assumir-se necessariamente na sua politicidade mais própria, isto é, no que tem de efetivo, de inovador, e de resistente a respeito do meio no qual se desenvolve.

Finalmente, como uma sedimentação de todos estes temas, Qu’est-ce que la philosophie?, retoma e problematiza, de modo con- creto, os pontos mais relevantes dessa relação e desse questionamento. Antes de mais, reformulando a exigência de abertura em direção ao meio que encontrávamos nos textos anteriores, que aparece agora como sendo também uma exigência de relação, na medida em que os conceitos da filosofia devem estar relacionados com os nossos pro- blemas e o pensamento, a arte ou a filosofia, têm que responder às exigências da época (DELEUZE, 1991, p. 32, 57). Porque Deleuze

define a filosofia como a arte de inventar os conceitos dos quais temos necessidade para pensar o nosso mundo e a nossa vida. Ao criar os seus conceitos, sobre a filosofia pesa a única condição de que tais conceitos satisfaçam uma necessidade real, que respondam, ou, melhor, que coloquem um verdadeiro problema; sem uma referência semelhante, para além das necessidades e dos problemas que são os nossos, os conceitos acabam sendo abstratos (inúteis), e a filosofia deixa de ter qualquer interesse: “É preciso que haja uma necessidade, tanto na filosofia como em qualquer outra parte, senão não há nada a se fazer. [...] Um criador não é um ser que trabalhe por prazer. Um criador não faz mais que aquilo de que tem absoluta necessidade” (DELEUZE, 2003, p. 292-294).

Agora, o presente não denota para Deleuze um espaço neutral ou dado (ready-made30), e nessa medida vai problematizar a

aparente evidência que semelhante formulação parece apresentar em si. Efetivamente, o que queremos dizer quando falamos de conceitos da nossa época ou de uma época qualquer? Se os conceitos não são eternos, qual é a sua temporalidade específica? E qual é a forma filo- sófica dos problemas da época atual? Em todo o caso, pode deduzir- -se a superioridade de certos conceitos sobre outros simplesmente porque respondem às exigências da época? O que significa responder às exigências? Por fim, que relação há entre os movimentos ou traços diagramáticos de uma imagem do pensamento e os movimentos ou traços sócio-históricos de uma época?

De todas essas perguntas, que em maior ou em menor medida enfrentamos nos capítulos precedentes, queria resgatar agora

30 “O presente não denota um espaço neutral ready-made, mas só pode ser aberto com a ajuda de uma topologia do pensamento, uma que “liberte um sentido de tempo” para nós, levando-nos a um encontro entre o passado e o futuro, concebido como um dentro e um fora, “no limite do presente vivente”. Esta é a tarefa implicada na concepção deleuziana da praxis, ins- pirada pela concepção foucaultiana de uma “ontologia crítica do presente”, e que constitui para Foucault a “única continuidade” entre passado e pre- sente assim como o caminho no qual o passado devém para o presente” (PEARSON, 1999, p. 79).

uma que me parece assinalar uma hipótese de trabalho produtiva: a preocupação em definir um modo especificamente filosófico de colocar os problemas da atualidade. Acho que essa é a pergunta que atravessa, de uma ponta a outra, todos os capítulos do livro. Quero dizer que Qu’est-ce que la philosophie? pode ser lido de um modo produtivo como o intento de distinguir a filosofia da ciência e da religião, a arte e a opinião, sobre o mapa do pensamento atual. Reflexão, ou, melhor, problematização da posição (autoposição) da filosofia no meio de todas essas práticas e disciplinas que disputam corpos e discursos. Diagnóstico, por fim, de uma relação de forças concreta, mas também programa para uma (re)ação com respeito aos diversos dispositivos de poder nos quais semelhante relação tende a tornar-se efetiva.

Porque a filosofia sempre teve rivais (desde os “pretenden- tes” de Platão, dizia Deleuze, até ao bufão de Zaratustra), que aspi- ram à hegemonia da relação que conecta o pensamento ao presente, à época, à atualidade, e perante os quais o filósofo está obrigado a desenvolver conceptualmente o modo específico ou propriamente filosófico de entender (e pôr em prática) semelhante relação.

Onde se situa a filosofia? Qual é o lugar do filósofo? E qual é o seu modo de se comportar, de intervir, de atuar, de se mover, de fazer e propagar o movimento, de propiciar e prolongar, ou de criti- car e contraefetuar os acontecimentos?

Fontes e significação da terminologia territorial A questão da autoposição implica uma componente espa- cial, ou, melhor, política, isto é, procura elaborar a relação do pen- samento com o presente enquanto relação do filósofo e da filosofia a respeito da cidade, das instituições, do Estado, e, em geral, do que está para além de tudo isso (extramuros). Para Deleuze essa questão é de uma importância fundamental, mas não é, certamente, de fácil resolução. De fato, a filosofia não pode contentar-se com “tomar posição”, mesmo concretamente, a respeito de tal ou tal problema da

atualidade. Não lhe basta, não nos basta, exercer o direito à opinião, nem participar ou conduzir o diálogo acerca dos assuntos que são levados ao espaço público pelas instituições, os partidos políticos, os meios de comunicação, a opinião pública. A filosofia não vale nada se não reclama um espaço próprio, se não agencia o espaço de uma maneira própria, específica, se não manifesta um modo intrínseco de agenciar o espaço de redistribuir o público e o privado, o indivi- dual e o coletivo.

Nessa direção, encontramos uma detalhadíssima elabora- ção de toda uma série de conceitos que, tendo por foco o par territó- rio/terra, procura uma alternativa à dupla tradicional sujeito/objeto, com o propósito de redefinir a relação do pensamento com o mundo. Porque, como escrevem Deleuze e Guattari (1991, p. 82): “O sujeito e o objeto dão uma má aproximação do pensamento. Pensar não é um fio esticado entre um sujeito e um objeto, nem uma revolução de um ao redor do outro. Pensar faz-se antes com relação ao território e à terra”.

Trata-se, certamente, de um registo por completo inusitado no qual colocar as coisas, pelo que vale a pena que nos detenhamos um momento sobre esses termos, sobre as fontes que concorrem para defini-los, e sobre o sentido que ganham no exercício efetivo próprio da sua filosofia.

De onde tomam Deleuze e Guattari a linguagem do ter- ritório? A pergunta, à primeira vista simples, suscitou na crítica de língua inglesa um inesperado leque de respostas, nem sempre equi- paráveis, nem sempre convergentes, em todo o caso insatisfatórias.

Talvez a mais conhecida, a mais direta, mas também, por- ventura, a mais problemática, seja a de Eugene Holland. Enquanto que a maioria dos críticos aborda o problema em termos de uso (isto é, perguntam-se se o uso que Deleuze faz dos conceitos territoriais está associado ou é compatível com o de – digamos – certos biólogos, etólogos ou geógrafos), Holland encara de frente a questão e afirma taxativamente que a proveniência de toda a terminologia se encontra

na psicanálise lacaniana. Segundo Holland (1991, p. 55-65), o termo “territorialização” é utilizado por Lacan para falar da impressão da alimentação e do cuidado materno na libido da criança, processo que cria objetos parciais e zonas erógenas a partir da conjugação de órgãos e orifícios. Hipótese mais que interessante (sobretudo tendo em conta a importância desses fenômenos em Logique du sens), mas que Holland não ilustra com referência alguma (nem à obra de Deleuze nem à de Lacan), e que sem referência alguma é sucessiva- mente retomada por outros importantes críticos deleuzianos como Ronald Bogue, Paul Patton e Keith Ansell Pearson.

Não é que a hipótese lacaniana não nos pareça interessante; pelo contrário, estamos convencidos, em primeiro lugar, de que a gênese do sujeito psicanalítico em Logique du sens ganharia muito se fosse lida em termos de territorialização e desterritorialização; e, em segundo lugar, achamos que é justamente a partir de Lacan que Deleuze e Guattari recebem as suas primeiras referências ao tema do território com relação à análise dos regimes significantes – ainda que talvez não a partir deste preciso caso aludido por Holland. Ao fim e ao cabo, é num artigo de Guattari dedicado à psicanálise de grupo, de 1966 (época em que ainda participava do seminário de Lacan, no qual tinha ingressado em 1964), que o vocabulário dos movimentos territoriais aparece pela primeira vez com claridade. Como viria a refletir mais tarde, a descrição em termos de estrutura dos fenômenos biológicos, sociais e econômicos, parecia-lhe insu- ficiente. Motivo pelo qual, Guattari começa a falar a partir dessa época da identificação das massas com um líder carismático como de uma territorialização imaginária, uma corporalização fantasmá- tica de grupo que encarna a subjetividade, e do capitalismo como de uma força que decodifica, desterritorializa de acordo com a sua ten- dência (GUATTARI, 2003, p. 48). Na medida em que o encontro com Deleuze tem lugar em 1969, teríamos, portanto, que atribuir a Guattari a introdução desses conceitos. O próprio Deleuze parece fazê-lo assim nos Dialogues: “essas palavras que Félix inventa para fazer os coeficientes variáveis” (DELEUZE, 1977, p. 161).

Deleuze conhecia a biologia, estava interessado na teoria da evolução, lera Uexküll e Ruyer muito antes de começar a trabalhar com Guattari (de fato, esses autores estavam, por assim dizer, “no

Documentos relacionados